Mundo
Publicado em 19/12/2014 12:00 -
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A Calle Obispo é uma das ruas mais conhecidas de Havana. Localizada no centro histórico da cidade, reúne lojas, restaurantes e hotéis, como o Florida e o Ambos Mundos, que nos anos 30 abrigou o escritor norte-americano Ernest Hemingway. Foi ali, nas proximidades do Ministério de Finanzas y Precios, na esquina com a Calle Cuba, que conversei por alguns minutos com Orcília, uma senhora de 80 anos que pedia esmola sentada em um degrau.
Minha primeira reação ao me deparar com aquela senhora de rosto vincado, cuja mão estendida ansiava por alguns trocados das centenas de turistas que batiam perna pela rua, foi pensar que em Cuba não deveria haver miséria. Curioso, me aproximei e perguntei seu nome. Ela respondeu. Perguntei se o Estado não a ajudava. Ela disse que sim. “Não é o suficiente?”, insisti. “Não”, ela respondeu, com olhos enevoados. “Não dá para finalizar o mês com este dinheiro. Sou sozinha no mundo. O senhor não tem um sabonete para me dar?”.
Fiquei com aquela cena entalada na garganta. Tirei uma nota de 5 CUC’s do bolso e estendi a ela. Para meu constrangimento Orcília levantou os dois braços como se comemorasse um gol. Pensei: “Preciso fotografar esta cena”. Peguei a câmera enquanto Orcília emitia um som de contentamento, alegria, os braços no alto. Enquadrei o foco e travei. Senti um engulho, um mal estar. Guardei a máquina, passei a mão naqueles cabelos brancos e continuei caminhando com olhos marejados.
Tudo por comida
Orcília come apenas uma refeição quente por dia. O desjejum é café mesclado (uma mistura de café com seja lá o que for), sem leite e um pedaço de pão de 80 gramas, sem manteiga. E nem sempre há isso tudo. “Às vezes como o pão da manhã durante o jantar”, explicou sentada naquele degrau da Calle Obispo.
Ela vive em uma casa velha na periferia de Havana, que há tempos precisa de uma mão de pintura e reparos no reboco. Viúva, sem filhos, Orcília faz parte dos milhões de cubanos que não tem acesso ao turismo ou parentes em Miami e, em consequência, não pode sentir na palma da mão a maciez dos CUC´s, dólares ou euros.
Aposentada, ela recebe cerca de 197 pesos cubanos por mês (cerca de 8 dólares) que se diluem na compra de comida. “Tudo o que ganho gasto com alimentos. Não é fácil. O arroz que me dão dura apenas duas semanas. Quando acaba, tenho que comprar com o dinheiro que consigo aqui na rua. Custa 5 pesos a libra (cerca de 450 gramas). Uma libra de tomate custa 6 pesos. Seis ovos custam 9 pesos. Feijões e carne de porco como umas duas vezes por mês”, explica.
Em abril de 2011, durante o VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), foi ratificado o fim da Carteira de Alimentos, uma antiga conquista que, ainda que reduzida, ajudava a mais da metade da população do país a sobreviver com os baixíssimos salários. Não se tratava de uma “gratuidade”, mas da venda subsidiada de produtos.
A Carteira possibilitava que cada cubano comprasse a valores reduzidos, por exemplo, dez ovos, 250 gramas de frango, 2.7 quilos de arroz, 400 gramas de massa, 1,3 quilo de açúcar, 115 gramas de café, 0,33 litro de óleo, 557 gramas de feijão por mês. Não era suficiente para que uma pessoa se alimentasse durante 30 dias, mas auxiliava em muito a população. Assim como os produtos de higiene (sabonete, pasta de dente), que já haviam sido retirados da Carteira, a “cesta básica” cubana também foi extinta.
Sistema Igualitário… Pero no mucho
Ricardo Alarcon, então membro do Birô do PCC defendeu o fim da Carteira afirmando que “havia que mudar o sistema que era igualitarista demais” e que “os preços que pagam os cubanos não tem nada a ver com o mercado mundial”. O que não disse Alarcon é que os salários em Cuba também não tem nada a ver com o “mercado mundial”. O salário médio de um cubano é de 480 pesos, ou 20 CUC’s, ou R$ 36.
São fatos como estes que colocam em cheque a imagem de um sistema igualitário. A burocracia governante do PCC sempre teve salários altos e privilégios (moradias suntuosas, carros de luxo, viagens e condições especiais), da mesma forma que os novos ricos cubanos. De um músico de rua com quem conversei (e cuja identidade preservo por motivos óbvios) ouvi o seguinte: “Nunca vi ninguém da hierarquia do PCC indo aos armazéns com a Carteira para recolher os 250 gramas de frango ou os dez ovos mensais”.
Dizer que não há pobreza em Cuba é faltar com a verdade. Afirmar que há miséria também o é. Não vi os bandos de crianças carentes que há, por exemplo, em Salvador, nem grandes contingentes de população de rua, como observamos em nossas grandes cidades. O que há, de fato, é uma carência generalizada, uma homogeneização da pobreza. É como viver de uma ração diária, suficiente para lhe manter de pé. Qualquer excesso, qualquer desejo que ultrapasse o possível, a média, é algo a se guardar, sublimar, ou concretizar com os frutos de uma economia informal que passa pela mendicância e pela venda de produtos no mercado negro.
Não é à toa que as ruas da Havana turística fervilham de vendedores que oferecem desde charutos (falsificados ou desviados dos canais oficiais), a lanches, souvenires, e até o direito de ser fotografado ao lado de um “autêntico cubano”. Muitas destas pessoas que tentam reforçar o orçamento familiar são professores, engenheiros, contadores, médicos, gente que ainda exerce sua profissão, ou que a abandonou por uma vida menos penosa no setor privado ou informal.
Não é preciso ir aos grotões rurais para perceber esta Cuba empobrecida, basta uma caminhada fora das ruas principais do centro ou da Velha Havana, onde os cortiços decadentes revelam moradores vendo a vida passar em suas varandas destroçadas, onde pequenos comércios oferecem duas ou três caixas de ovos e uns poucos legumes, onde idosos se aproximam oferecendo “puros” de origem duvidosa.
Armadilhas Ideológicas
Cair nas armadilhas ideológicas que o assunto “Cuba” suscita é fácil, mas é inevitável perceber o nivelamento da pobreza. Assim como é inevitável pensar sobre as palavras da ativistacubana Yoani Sánchez, em janeiro de 2009.
“Eu não havia nascido quando, em abril de 1961, se declarou o caráter socialista do processo cubano. ‘Esta é a revolução socialista dos humildes, pelos humildes e para os humildes…” anunciou Fidel Castro nas premonitórias portas do Cemitério de Colón. Muitos dos que lhe escutaram, jubilosos e otimistas, supuseram que o primeiro propósito revolucionário seria dar um fim a pobreza. Com esta ilusão, saíram a defender um futuro sem pobreza.
Ao observar, quase 50 anos depois, os destinatários deste anúncio, me pergunto quando a prosperidade deixará de ser vista como contra revolucionária. Querer viver em uma casa cujo telhado seja resistente ao vento deixará de ser, algum dia, uma fraqueza pequeno-burguesa? Todas as carências materiais que percebo questionam o sentido desta colossal guinada na história do país. Para deixar de haver ricos foi necessário que houvesse tantos pobres?
Se ao menos fossemos mais livres. Se todas estas necessidades materiais não se traduzissem também em uma imensa cadeia que transforma cada cidadão em um servo do Estado. Se as condições dos humildes fossem uma decisão voluntária e não uma prática imposta pelos que nos governam. Mas não. A renovada exaltação da humildade, lançada por Raul Castro neste primeiro de janeiro nos confirma o que temos aprendido há décadas de crise econômica: que a pobreza é um caminho que leva a obediência ”.
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