28/03/2024 - Edição 540

Mundo

Um olhar crítico e amoroso sobre a ilha dos Castro

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Em 2012 estive em Cuba. Fui a passeio. No entanto, nos sete dias em que passei na ilha, conversei com gente de todo o tipo. Garçons, músicos, camareiras, taxistas, vendedores, professores, médicos, engenheiros. O resultado desta viagem traduziu-se em dez artigos publicados na revista digital Semana Online naquele ano – que reproduzimos aqui na Semana On  como um documento diante dos novos paradigmas que o país viverá com a distensão do relacionamento com os Estados Unidos. A Semana On deseja que os artigos, focados no dia a dia de cubanos comuns – uma gente esmagada por seus próprios sonhos – transformem-se em breve em apenas uma lembrança de dias amargos e que os cubanos possam decidir seu destino e gerar uma nova história a partir de 2015.

 

Camilo: o Comunista

Engenheiro aeronáutico, ele optou pelo táxi para ganhar mais

“És pe­ri­o­dista?”, per­guntou-me Ca­milo, olhando-me, des­con­fiado, pelo re­tro­visor do táxi que me le­vava de Va­ra­dero a Ha­vana em uma manhã en­so­la­rada de março. “Não”, menti. Du­rante duas horas con­ver­samos ami­ga­vel­mente sobre vá­rios as­pectos da so­ci­e­dade cu­bana, até que, no final da vi­agem, per­guntei sua opi­nião sobre li­ber­dade de ex­pressão e de im­prensa.

Ca­milo tem 48 anos, é en­ge­nheiro ae­ro­náu­tico e na dé­cada de 80 viveu seis anos na an­tiga União So­vié­tica. Fala russo e in­glês flu­en­te­mente. Optou por trocar a en­ge­nharia por um táxi para ter acesso aos co­bi­çados CUC’s, a moeda cu­bana usada apenas pelos tu­ristas e que vale um pou­quinho mais que o dólar. É nas “pro­pinas” (as gor­jetas) em CUC´s que os cu­banos en­vol­vidos na in­dús­tria do tu­rismo se di­fe­ren­ciam dos de­mais. Estas gor­jetas fazem a di­fe­rença entre ter ou não uma vida me­lhor. Entre estar ou não imerso na ca­restia de ali­mentos e bens de con­sumo que im­pera na ilha.

­Assim como Ca­milo, mi­lhares de “li­cen­ci­ados” em en­ge­nharia, me­di­cina, eco­nomia, con­ta­bi­li­dade, gente capaci­tada em áreas chave, tentam dri­blar a po­breza pe­dindo a auto­ri­zação ao Es­tado para mudar de ati­vi­dade. Esta au­to­ri­zação, no en­tanto, não é dada a qual­quer um, fun­ciona como um prêmio por ser­viços pres­tados à nação.

Ca­milo conta que nos anos 80, antes da queda do co­mu­nismo no leste eu­ropeu, se vivia bem em Cuba com 10 dó­lares por mês. Hoje, ele ga­rante, são ne­ces­sá­rios 100 dó­lares para “estar bien”. Um mé­dico cu­bano ganha 26 dó­lares ao mês, um mú­sico cerca de 7 dó­lares.

Jornalismo objetivo e Liberdade de expressão

Para Ca­milo, há li­ber­dade de im­prensa e de ex­pressão na ilha, “mas não são os mesmos ca­nais que existem nas so­ci­e­dades ca­pi­ta­listas”, ex­plica, em­bora ele mesmo se au­to­cen­sure com medo de que eu seja um pe­ri­goso jor­na­lista. “Aqui”, diz ele, “os jor­nais são ob­je­tivos, não são sen­sa­ci­o­na­listas e po­demos nos ex­pressar nos ca­nais apro­pri­ados para isso”.

Ele su­geriu que eu com­prasse o Granma (jornal diário es­tatal) de sexta-feira para checar a seção aberta às cartas dos lei­tores, onde “todos os cu­banos podem dizer o que pensam”. Segui o con­selho e che­guei à con­clusão de que li­ber­dade de im­prensa para Ca­milo e para mi­lhões de cu­banos se re­sume a cartas de ca­ráter pon­tual sobre pro­blemas de bairro como atrasos no trans­porte co­le­tivo ou fa­lhas no ser­viço de energia. Ne­nhuma pa­lavra sobre po­lí­tica. Ne­nhum es­paço para o con­tra­di­tório.

O blo­gueiro cu­bano Fer­nando Dá­maso con­fi­den­ciou-me que du­rante um ano es­creveu ao Granma todas as se­manas. “Nunca me pu­bli­caram. Re­cebia sempre uma res­posta que dizia: “Sua carta foi re­ce­bida, ela será ana­li­sada e se se en­qua­drar nos cri­té­rios de pu­bli­cação será pu­bli­cada”. O que nunca ocorreu. De fato, a sim­ples reu­nião não au­to­ri­zada de ci­da­dãos por­tando faixas e car­tazes nas ruas é mo­tivo para que a po­lícia  entre em ação.

Da mesma forma, uma sin­gela crí­tica ao sis­tema pode re­sultar em ações pe­nais. A le­gis­lação vi­gente pro­tege os di­ri­gentes, fun­ci­o­ná­rios e as ins­ti­tui­ções do Es­tado contra as ex­pres­sões e opi­niões ne­ga­tivas da ci­da­dania. Em ou­tras pa­la­vras a crí­tica em Cuba pode ser um de­lito. Con­dena-se com multa ou pri­vação da li­ber­dade de três meses a um ano o que “ameace, ca­lunie, di­fame, in­sulte, in­jurie ou de qual­quer modo ul­traja ou ofenda, por pa­lavra ou es­crita, em seu de­coro e dig­ni­dade uma au­to­ri­dade, fun­ci­o­nário pú­blico ou seus agentes ou au­xi­li­ares no exer­cício de suas fun­ções”. A pena ini­cial do dis­si­dente Or­lando Za­pata Ta­mayo – morto na prisão após 86 dias de greve de fome – foi de­vido a este de­lito.

Pela Igualdade Ficamos Todos Aqui

Sobre as imensas di­fi­cul­dades cri­adas pelo go­verno para im­pedir que os ci­da­dãos vi­agem ao ex­te­rior Ca­milo tem uma ex­pli­cação ló­gica, sob seu ponto de vista: “Muitos cu­banos vi­ajam para fora do país. Mas temos que manter a igual­dade e uma coisa que di­fe­rencia as pes­soas é a pos­si­bi­li­dade de vi­ajar“. Em nome da igual­dade cer­ceia-se o di­reito de ir e vir. Ca­milo diz já ter tra­ba­lhado para o go­verno Cu­bano no Mé­xico e, por isso, pôde levar a fa­mília a Cancun certa vez. Com a par­cimônia dos pe­quenos pri­vi­le­gi­ados da classe média cu­bana ele fi­lo­sofa: “Gos­taria que todos os cu­banos pu­dessem fazer isso”.

O fato é que sair de Cuba é um su­plício para qual­quer cu­bano, além de caro. Não basta uma carta con­vite de al­guma ins­ti­tuição ou pessoa fí­sica re­si­dente no país a ser vi­si­tado, não basta o visto deste país (que também é di­fícil, dado que um cu­bano é sempre visto como um pos­sível imi­grante ilegal), não basta o visto de saída cu­bano. Além disso, é pre­ciso pagar ao es­tado cerca de 150 dó­lares, uma pe­quena for­tuna para um país em que um pro­fessor ganha cerca de 15 dó­lares ao mês. E mais: esta ma­ra­tona kaf­kiana é para quem está de bem com o re­gime. Crí­ticos do sis­tema, como a blo­gueira Yoani Sán­chez, não têm tanta sorte assim. Re­cen­te­mente ela teve seu visto de saída do país ne­gado pela 19ª vez.

Cuidado com os Inteligentes…

En­quanto avan­çá­vamos rumo a Ha­vana, Ca­milo me con­fi­den­ciou que, por ter tra­ba­lhado a ser­viço do go­verno fora do país, pode com­prar um carro mo­derno, um Kia. Um pri­vi­légio para poucos. Re­cen­te­mente o go­verno au­to­rizou a compra e a venda de carros, proi­bidas du­rante meio sé­culo.

Parte da po­lí­tica de “aber­tura” econô­mica pro­mo­vida por Raul Castro, a compra de carros novos foi li­be­rada aos cu­banos que obtém rendas em mo­edas es­tran­geira ou CUC’s por "seu tra­balho em fun­ções de­sig­nadas pelo Es­tado ou no in­te­resse deste", e de­pen­dendo da per­missão do mi­nis­tério do Trans­porte. Até então os cu­banos só po­diam com­prar e vender os mo­delos de antes da vi­tória da re­vo­lução de 1959, quase todos de fa­bri­cação ame­ri­cana, co­nhe­cidos po­pu­lar­mente como "al­men­drones" (va­ri­ação da pa­lavra amên­doas).

Mi­lhares de pro­fis­si­o­nais, que pu­deram com­prar carros so­vié­ticos con­ce­didos por seu tra­balho antes de 1990, podem agora vendê-los a qual­quer cu­bano ou es­tran­geiro re­si­dente, que agora pode ter mais de um carro – o caso de Ca­milo, que tem dois. Também estão in­cluídos na aber­tura carros mo­dernos, que, du­rante os úl­timos anos, pu­deram ser im­por­tados ou com­prados de se­gunda mão por ar­tistas e es­por­tistas de des­taque, assim como por mé­dicos que cum­prem mis­sões ofi­ciais em ou­tros países.

Ao me deixar na porta do hotel Ca­milo, ainda em­ba­tu­cado com a pos­si­bi­li­dade de ter con­ver­sado por duas longas horas com um jor­na­lista e sua cúm­plice, sus­surrou-me: “Cui­dado em Ha­vana. Cui­dado com os in­te­li­gentes”.

Confira os demais artigos do Especial Cuba

Túlio: O Empreendedor – Quando a vontade de crescer esbarra na ideologia

Orcília: A Pedinte – A homogeneização da pobreza na Cuba igualitária

Danilo: o Músico – A alma de Cuba ainda repousa na boa música que embala a ilha

Graziela e Abdel: a Camareira e o Garçom – É possível viver sem papel higiênico e lagostas. E sem liberdade?

Leandro e seu Coco Taxi – O embargo como causador de todos os males

Mensagem na Garrafa – A blogueira Regina Coyula explica o fenômeno dos blogs cubanos

Números no Lugar – O blogueiro Fernando Dámaso fala sobre saúde e educação em Cuba

Imprensa Agrilhoada – Rebeca Monzo fala de jornalismo em Cuba

Vivendo o totalitarismo – A historiadora e antropóloga Miriam Celaya fala sobre a vida cotidiana em Cuba


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *