Mundo
Publicado em 19/12/2014 12:00 -
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Em 2012 estive em Cuba. Fui a passeio. No entanto, nos sete dias em que passei na ilha, conversei com gente de todo o tipo. Garçons, músicos, camareiras, taxistas, vendedores, professores, médicos, engenheiros. O resultado desta viagem traduziu-se em dez artigos publicados na revista digital Semana Online naquele ano – que reproduzimos aqui na Semana On como um documento diante dos novos paradigmas que o país viverá com a distensão do relacionamento com os Estados Unidos. A Semana On deseja que os artigos, focados no dia a dia de cubanos comuns – uma gente esmagada por seus próprios sonhos – transformem-se em breve em apenas uma lembrança de dias amargos e que os cubanos possam decidir seu destino e gerar uma nova história a partir de 2015.
Camilo: o Comunista
Engenheiro aeronáutico, ele optou pelo táxi para ganhar mais
“És periodista?”, perguntou-me Camilo, olhando-me, desconfiado, pelo retrovisor do táxi que me levava de Varadero a Havana em uma manhã ensolarada de março. “Não”, menti. Durante duas horas conversamos amigavelmente sobre vários aspectos da sociedade cubana, até que, no final da viagem, perguntei sua opinião sobre liberdade de expressão e de imprensa.
Camilo tem 48 anos, é engenheiro aeronáutico e na década de 80 viveu seis anos na antiga União Soviética. Fala russo e inglês fluentemente. Optou por trocar a engenharia por um táxi para ter acesso aos cobiçados CUC’s, a moeda cubana usada apenas pelos turistas e que vale um pouquinho mais que o dólar. É nas “propinas” (as gorjetas) em CUC´s que os cubanos envolvidos na indústria do turismo se diferenciam dos demais. Estas gorjetas fazem a diferença entre ter ou não uma vida melhor. Entre estar ou não imerso na carestia de alimentos e bens de consumo que impera na ilha.
Assim como Camilo, milhares de “licenciados” em engenharia, medicina, economia, contabilidade, gente capacitada em áreas chave, tentam driblar a pobreza pedindo a autorização ao Estado para mudar de atividade. Esta autorização, no entanto, não é dada a qualquer um, funciona como um prêmio por serviços prestados à nação.
Camilo conta que nos anos 80, antes da queda do comunismo no leste europeu, se vivia bem em Cuba com 10 dólares por mês. Hoje, ele garante, são necessários 100 dólares para “estar bien”. Um médico cubano ganha 26 dólares ao mês, um músico cerca de 7 dólares.
Jornalismo objetivo e Liberdade de expressão
Para Camilo, há liberdade de imprensa e de expressão na ilha, “mas não são os mesmos canais que existem nas sociedades capitalistas”, explica, embora ele mesmo se autocensure com medo de que eu seja um perigoso jornalista. “Aqui”, diz ele, “os jornais são objetivos, não são sensacionalistas e podemos nos expressar nos canais apropriados para isso”.
Ele sugeriu que eu comprasse o Granma (jornal diário estatal) de sexta-feira para checar a seção aberta às cartas dos leitores, onde “todos os cubanos podem dizer o que pensam”. Segui o conselho e cheguei à conclusão de que liberdade de imprensa para Camilo e para milhões de cubanos se resume a cartas de caráter pontual sobre problemas de bairro como atrasos no transporte coletivo ou falhas no serviço de energia. Nenhuma palavra sobre política. Nenhum espaço para o contraditório.
O blogueiro cubano Fernando Dámaso confidenciou-me que durante um ano escreveu ao Granma todas as semanas. “Nunca me publicaram. Recebia sempre uma resposta que dizia: “Sua carta foi recebida, ela será analisada e se se enquadrar nos critérios de publicação será publicada”. O que nunca ocorreu. De fato, a simples reunião não autorizada de cidadãos portando faixas e cartazes nas ruas é motivo para que a polícia entre em ação.
Da mesma forma, uma singela crítica ao sistema pode resultar em ações penais. A legislação vigente protege os dirigentes, funcionários e as instituições do Estado contra as expressões e opiniões negativas da cidadania. Em outras palavras a crítica em Cuba pode ser um delito. Condena-se com multa ou privação da liberdade de três meses a um ano o que “ameace, calunie, difame, insulte, injurie ou de qualquer modo ultraja ou ofenda, por palavra ou escrita, em seu decoro e dignidade uma autoridade, funcionário público ou seus agentes ou auxiliares no exercício de suas funções”. A pena inicial do dissidente Orlando Zapata Tamayo – morto na prisão após 86 dias de greve de fome – foi devido a este delito.
Pela Igualdade Ficamos Todos Aqui
Sobre as imensas dificuldades criadas pelo governo para impedir que os cidadãos viagem ao exterior Camilo tem uma explicação lógica, sob seu ponto de vista: “Muitos cubanos viajam para fora do país. Mas temos que manter a igualdade e uma coisa que diferencia as pessoas é a possibilidade de viajar“. Em nome da igualdade cerceia-se o direito de ir e vir. Camilo diz já ter trabalhado para o governo Cubano no México e, por isso, pôde levar a família a Cancun certa vez. Com a parcimônia dos pequenos privilegiados da classe média cubana ele filosofa: “Gostaria que todos os cubanos pudessem fazer isso”.
O fato é que sair de Cuba é um suplício para qualquer cubano, além de caro. Não basta uma carta convite de alguma instituição ou pessoa física residente no país a ser visitado, não basta o visto deste país (que também é difícil, dado que um cubano é sempre visto como um possível imigrante ilegal), não basta o visto de saída cubano. Além disso, é preciso pagar ao estado cerca de 150 dólares, uma pequena fortuna para um país em que um professor ganha cerca de 15 dólares ao mês. E mais: esta maratona kafkiana é para quem está de bem com o regime. Críticos do sistema, como a blogueira Yoani Sánchez, não têm tanta sorte assim. Recentemente ela teve seu visto de saída do país negado pela 19ª vez.
Cuidado com os Inteligentes…
Enquanto avançávamos rumo a Havana, Camilo me confidenciou que, por ter trabalhado a serviço do governo fora do país, pode comprar um carro moderno, um Kia. Um privilégio para poucos. Recentemente o governo autorizou a compra e a venda de carros, proibidas durante meio século.
Parte da política de “abertura” econômica promovida por Raul Castro, a compra de carros novos foi liberada aos cubanos que obtém rendas em moedas estrangeira ou CUC’s por "seu trabalho em funções designadas pelo Estado ou no interesse deste", e dependendo da permissão do ministério do Transporte. Até então os cubanos só podiam comprar e vender os modelos de antes da vitória da revolução de 1959, quase todos de fabricação americana, conhecidos popularmente como "almendrones" (variação da palavra amêndoas).
Milhares de profissionais, que puderam comprar carros soviéticos concedidos por seu trabalho antes de 1990, podem agora vendê-los a qualquer cubano ou estrangeiro residente, que agora pode ter mais de um carro – o caso de Camilo, que tem dois. Também estão incluídos na abertura carros modernos, que, durante os últimos anos, puderam ser importados ou comprados de segunda mão por artistas e esportistas de destaque, assim como por médicos que cumprem missões oficiais em outros países.
Ao me deixar na porta do hotel Camilo, ainda embatucado com a possibilidade de ter conversado por duas longas horas com um jornalista e sua cúmplice, sussurrou-me: “Cuidado em Havana. Cuidado com os inteligentes”.
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