28/03/2024 - Edição 540

Mundo

Números no Lugar

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

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A saúde e a edu­cação são as duas prin­ci­pais ban­deiras do re­gime cu­bano. São também o prin­cipal ar­gu­mento de quem in­siste que uma di­ta­dura to­ta­li­tária pode ter seus mé­ritos. É lugar comum em um de­bate sobre Cuba ou­virmos como res­posta às de­nún­cias de falta de li­ber­dade na ilha ar­gu­mentos como este: “Mas… a saúde e a edu­cação são ma­ra­vi­lhosas”.

De fato, o re­gime dos Castro me­lhorou al­guns as­pectos nestas im­por­tantes áreas, mas há uma imensa la­cuna entre este fato e a pro­pa­gada trans­for­mação que o go­verno cu­bano diz ter ocor­rido após a re­vo­lução de 59. O blo­gueiro Fer­nando Dá­maso, que há menos de dois anos edita o blog Mer­me­lada no portal Des­de­cuba, tem se de­di­cado a des­mis­ti­ficar al­guns destes as­pectos. “Minha pre­o­cu­pação é res­gatar a his­tória po­li­ti­ca­mente ma­ni­pu­lada, dis­tor­cida”, ex­plica.

Se­gundo o blo­gueiro – que foi pu­bli­ci­tário e mi­litar e agora de­dica-se a expor a re­a­li­dade cu­bana na in­ternet – Cuba já ocu­pava na dé­cada de 50 os pri­meiros lu­gares em quan­ti­dade de mé­dicos, leitos de hos­pital e baixos ín­dices de mor­ta­li­dade in­fantil. “Não era per­feito, havia muito o que me­lhorar, mas já es­ta­vá­vamos no 2º ou no 3º lugar no ran­king dos países ibero-ame­ri­canos nestes que­sitos”.

“Na­quela época”, con­tinua Fer­nando, “muitos hos­pi­tais es­tavam equi­pados com o que havia de mais avan­çado em termos tec­no­ló­gicos. Hoje esses hos­pi­tais estão em con­di­ções muito pi­ores”. Para Fer­nando, a pro­pa­gada ex­ce­lência na saúde é um mito: “A saúde não é grátis, nunca foi. O sa­lário que dei­xamos de rei­vin­dicar é o que fi­nancia o que há de saúde. É um mito”, opina.

“Existe uma fila imensa de pessoas esperando para serem operadas. Muitos morrem por falta de medicamento adequado para fazer transplante. Temos amigos que estão há 18 anos fazendo hemodiálise e não se transplantam porque não tem coragem de operar, pois conhecem os fracassos. Todos que aqui fazem cirurgias são contaminados por hepatite B, pois os equipamentos são contaminados. Quem pode recebe agulhas, luvas e medicação de parentes que vivem fora”, afirma.

Educação

Fernando e os demais blogueiros que compõem o portal Desdecuba também denunciam os exageros relacionados a excelência da educação. Ele garante que o ensino oferecido antes da revolução era de melhor qualidade. “Nossa educação hoje é péssima. O aluno sai sem ortografia, sem cultura nenhuma, não sabe ler e escrever corretamente”.

Remexendo suas lembranças e experiências Fernando afirma que a qualidade do ensino começou a degringolar quando, na década de 60, o governo concluiu que os professores formados antes da revolução não podiam educar os filhos da revolução, pois eram burgueses. “Obrigaram todos os professores com mais de 25 anos a se aposentarem. Houve quem se aposentasse na plenitude de sua profissão. Começaram a suprir a falta de professores com camponeses. Professores instantâneos, preparados em seis meses”.

100% de aprovação

Nos anos 70 e 80 a qua­li­dade do en­sino me­lhorou (com o apoio fi­nan­ceiro do leste eu­ropeu), para de­sabar no­va­mente junto com o co­mu­nismo. A es­tra­tégia do go­verno, hoje, se­gundo Fer­nando é a de forçar os pro­fes­sores a apro­varem seus alunos: “Os alunos não re­petem o ano, pois se avalia o pro­fessor pelo ren­di­mento do aluno. E esta po­lí­tica não é de hoje, vem desde o início da re­vo­lução. Há uma obri­gação de aprovar 100% dos alunos, quando sa­bemos que em uma es­cola com 500 alunos há os me­di­anos, os bons e os ruins”.

Como todas as pro­fis­sões cu­banas que não tem li­gação com o tu­rismo (e em con­sequência com a pos­si­bi­li­dade de re­ceber gor­jetas em moeda forte), o ma­gis­tério também é muito mal re­mu­ne­rado. Na dé­cada de 1940, afirma Fer­nando, todos os pro­fes­sores cu­banos eram con­tra­tados pelo Mi­nis­tério da Edu­cação, pos­suíam ti­tu­lação e ti­nham que co­meçar a pro­fissão no campo. “Ti­nham uma boa po­sição econô­mica, os pro­fes­sores eram de classe média alta. Com um sa­lário das fé­rias po­diam passar três meses em Nova Iorque, Miami, Mé­xico. Hoje com o que ga­nham mal podem tomar banho com sa­bo­nete todos os dias”.

Se­gundo o blo­gueiro, tanto na saúde quanto na edu­cação a re­vo­lução partiu de sis­temas que já fun­ci­o­navam. O cres­ci­mento, se­gundo Fer­nando, se deu de forma na­tural para uma so­ci­e­dade que era com­posta por 100 mil ha­bi­tantes e que hoje atinge os 11 mi­lhões: “Tudo se de­sen­volveu, mas há muita pro­pa­ganda. O Es­tado tem o mo­no­pólio da in­for­mação e é ele quem di­vulga os ín­dices de anal­fa­be­tismo, mor­ta­li­dade in­fantil, mas não são dados con­fiá­veis”, as­se­gura.

Os números mentem?

Se­gundo os nú­meros pro­pa­gados ofi­ci­al­mente Cuba tem sis­temas in­ve­já­veis de edu­cação e saúde, com ín­dices de efi­ci­ência dignos de país de­sen­vol­vido. Quase não há anal­fa­betos na ilha, en­quanto o nú­mero de pro­fes­sores, mé­dicos e leitos de hos­pital por ha­bi­tante é o maior da Amé­rica La­tina. No en­tanto, nú­meros da Or­ga­ni­zação Mun­dial de Saúde (OMS) e da Unesco mos­tram que Fer­nando tem razão em al­guns as­pectos. De acordo com estes es­tudos Cuba já apre­sen­tava bons in­di­ca­dores de de­sen­vol­vi­mento so­cial e hu­mano antes de Fidel chegar ao poder.

A re­vo­lução teve efeito po­si­tivo sobre al­guns desses in­di­ca­dores. O nú­mero de mé­dicos e den­tistas, por exemplo, era de 128 para cada 100 mil ha­bi­tantes em 1957 (3º me­lhor ín­dice da Amé­rica La­tina). Hoje, é de 680 (1º lugar entre os países la­tino-ame­ri­canos). Nos úl­timos 50 anos, o país mul­ti­plicou por cinco o nú­mero de pro­fis­si­o­nais de saúde. O pro­blema tem sido a ex­por­tação dos pro­fis­si­o­nais mais ca­pa­ci­tados para tra­ba­lhar no ex­te­rior e o mer­cado negro de re­mé­dios que vi­ceja no sis­tema.

Na edu­cação os nú­meros são po­si­tivos, mas estão longe de re­tratar a re­vo­lução pro­pa­gada pelo re­gime. Cuba é o país com maior ín­dice de al­fa­be­ti­zação do con­ti­nente. O en­sino é gra­tuito até o nível su­pe­rior. Em com­pen­sação, segue a car­tilha do Par­tido Co­mu­nista, que vê cada aluno como fu­turo sol­dado da re­vo­lução. Em 1957 o nível de al­fa­be­ti­zados era de 76% (3º lugar na Amé­rica La­tina), hoje atinge os 99,8% (1º lugar na Amé­rica La­tina).

Proporcionalmente, o investimento na educação caiu para menos da metade em 50 anos de revolução. Ainda assim, Cuba manteve-se em 1º lugar no ranking latino-americano de países que mais aplicam dinheiro público no setor da educação. Em 1957 o percentual do PIB investido no setor era de 23% (1º na América Latina). Hoje o país mantém a posição com um investimento de 10% do PIB.

O avanço no que se refere ao combate á mortalidade infantil foi enorme – com redução de 82%. Mas isso ocorreu em quase todos os países do mundo. No ranking internacional, os cubanos caíram 30 posições da década de 1950 para cá. Estavam na 13º no mundo e hoje estão em 43º (de 1950 para cá eles se mantém no 1º na América Latina).

Por outro lado, algumas estatísticas são francamente desfavoráveis. Em 1957, por exemplo, o consumo diário de calorias por cubano era o 3º maior da América Latina (2.730 calorias/dia). Passadas cinco décadas de regime comunista, Cuba agora está em 11º lugar com o consumo de 2.291 calorias/dia. Para os defensores do regime, a alimentação piorou nas últimas cinco décadas por culpa do embargo econômico. Mas para os críticos o verdadeiro problema é outro: ineficiência crônica da agricultura.

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