28/03/2024 - Edição 540

Mundo

Graziela e Abdel: a Camareira e o Garçom

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

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Cento e qua­renta quilô­me­tros se­param Ha­vana de Va­ra­dero. A ro­dovia corre pa­ra­lela a co­linas verdes onde, aqui e ali, nesgas de um mar cor de es­me­ralda surgem à vista. Pe­quenos po­vo­ados – como Santa Maria del Mar e Gua­nacoa – passam rá­pidos di­ante de nossos olhos até que, enfim, al­can­çamos Ma­tanzas, uma ci­dade com cerca de 150 mil ha­bi­tantes, es­pa­lhada sobre uma bo­nita baía. Dali até a pe­nín­sula de Va­ra­dero são mais trinta e cinco quilô­me­tros emol­du­rados pelo be­lís­simo li­toral cu­bano à es­querda e por man­gue­zais à di­reita. Nessa es­treita faixa de terra, com cerca de vinte quilô­me­tros de com­pri­mento por dois de lar­gura, se con­centram ­qua­renta e cinco grandes ho­téis e re­sorts. Logo na en­trada do lu­xuoso bal­neário, um grande cartaz anuncia: “O que se ar­re­cada aqui vai para o povo cu­bano.” Afinal, na terra de Fidel, quase tudo é ad­mi­nis­trado pelo Es­tado e, te­o­ri­ca­mente, pelo povo.

“Eu não vou viver para co­nhecer o mundo, mas queria que as coisas mu­dassem para que meus fi­lhos e netos possam co­nhecer ou­tros lu­gares. Não para viver em ou­tros países, mas apenas para co­nhecê-los. As pes­soas de todo o mundo vem nos vi­sitar, vem co­nhecer Cuba, mas os cu­banos não podem co­nhecer o mundo”, diz Gra­ciela, uma jovem se­nhora de 50 anos, cuja sim­patia con­quistou al­guns hós­pedes do se­gundo andar de um re­sort em Va­ra­dero.

Gra­ciela tra­balha há 20 anos no local. Veio de Ha­vana para o bal­neário na dé­cada de 80 para casar com um pes­cador, pai de seus dois fi­lhos. O mais novo es­tudo tu­rismo em um curso téc­nico, o outro faz edu­cação fí­sica. Ambos se pre­param pro­fis­si­o­nal­mente para integrarem o seleto grupo de cubanos que lidam diariamente com os milhares de turistas que desembocam na ilha caribenha e que formam uma espécie de “elite trabalhadora” com acesso a gorjetas em CUC (moeda cubana para uso turístico) e em moeda estrangeira. Orgulhosa, ela exibe as fotos dos dois filhos e do neto, de dois anos de idade. O marido pescador morreu há 15 anos. Hoje, ela vive em um apartamento com o filho mais novo, enquanto o mais velho, a nora e o neto moram em um apartamento defronte ao seu. Graciela é feliz, curiosa, como todos os cubanos com quem conversamos.

O melhor aspecto de Cuba? “A segurança” diz, de chofre. As críticas sobre a falta de liberdade na ilha? “As pessoas criticam a política em Cuba, mas ela (a política) não nos incomoda. Vamos vivendo a vida”, afirma. É o que pensa também Abdel, garçom do luxuoso restaurante Kike-Kcho, na Marina Gaviota. Simpático, educado e instruído ele reforça: “A tranquilidade que temos aqui é muito importante. Aqui não há drogas, não há banditismo”.

Sobre as criticas a política cubana, Abdel explica que àqueles que falam mal do Governo são os que não querem trabalhar. “Os que não querem se preparar para um trabalho falam mal do nosso governo. O governo quer aumentar os salários, mas não há dinheiro”. Abdel ganha cerca de 460 pesos cubanos por mês (18 dólares), fora as propinas (gorjetas). “Em Cuba não há classes sociais”, assegura, mas diz que se tivesse que se enquadrar em uma classe social, seria media-baixa.

Com de­ze­nove anos de ex­pe­ri­ência na pro­fissão – 10 atu­ando nos res­tau­rantes de luxo da Ma­rina – Abdel sabe lidar com a cu­ri­o­si­dade dos tu­ristas. So­lícito, se deixa fo­to­grafar içando uma la­gosta no tanque do res­tau­rante e até faz uma pose mar­cial para outro clique. Mas, seu olhar in­te­li­gente, as ideias bem con­ca­te­nadas re­forçam a im­pressão – que eu já havia tido an­te­ri­or­mente ao con­versar com ou­tros cu­banos – de que há um “dis­curso tu­rís­tico” pronto a ser ofe­re­cido a cada es­tran­geiro cu­rioso que lhes per­gunta sobre po­lí­tica, li­ber­dade de ex­pressão e ou­tros in­te­resses “pe­queno-bur­gueses”.

Vasos sa­ni­tá­rios, papel hi­gi­ê­nico e li­ber­dade

Con­versar com os cu­banos é um exer­cício de in­tuição e re­flexão. Afinal, quando se fala dos hor­rores dos to­ta­li­ta­rismos (sejam de es­querda, de di­reita ou de matiz re­li­giosa), a ideia que se forma em nossas mentes é a de países des­tro­çados pela tris­teza, pela opressão, onde o riso não pros­pera, onde nem os pás­saros cantam. Ora, apenas os que nunca es­ti­veram (ou vi­veram) em um país to­ta­li­tário podem ali­mentar esta noção de­tur­pada das coisas. Como em qual­quer país do mundo, também nos que vivem sob o to­ta­li­ta­rismo as pes­soas são… pes­soas. Elas so­frem, gozam, riem, choram, so­nham, têm seus mo­mentos de eu­foria e de de­pressão. São seres-hu­manos, afinal.

E então, lembro-me do jor­na­lista Janer Cris­taldo e de seu an­tigo ar­tigo in­ti­tu­lado “A Ve­lhinha de Ha­vana”, onde ele aborda outro ar­tigo, de Luís Fer­nando Ve­rís­simo, no qual o pró­cere gaúcho mis­tu­rava alhos e bu­ga­lhos a res­peito das “ne­ces­si­dades bá­sicas” do ser hu­mano.

Jorge Fur­tado andou pela Dis­ney­lândia das Es­querdas e dela traz no­tí­cias.
Ao chegar no quarto do hotel, o ci­ne­asta gaúcho notou que a pri­vada não tinha as­sento. Con­si­derou que sem as­sento não se pode sentar numa pri­vada.
Re­clamou com a ca­ma­reira e dela ouviu:
– Se puede, se puede…

O que Verissimo está dizendo, em verdade, é que há um grave problema no regime cubano: as privadas não têm assento. Observação nenhuma sobre liberdade de imprensa e de opinião, direitos humanos, eleições livres e outras ridicularias de umEstado contemporâneo. A grande falha do socialismo tropical parece ser as privadas sem assento.

Pode-se viver sem muita coisa, reflete Cristaldo, até mesmo sem assento de privada e papel higiênico. Também se pode viver sem as lagostas içadas por Abdel. Milhões de cubanos vivem sem elas, apesar de sua abundância nos mares caribenhos. É que as lagostas são para consumo exclusivo dos turistas que levam dólares e euros a Cuba. São consumidas em restaurantes como o Kike-Kcho onde até muito pouco tempo os cubanos eram proibidos de entrar. Mas, é perfeitamente possível viver sem lagostas.

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