Mundo
Publicado em 19/12/2014 12:00 -
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Cento e quarenta quilômetros separam Havana de Varadero. A rodovia corre paralela a colinas verdes onde, aqui e ali, nesgas de um mar cor de esmeralda surgem à vista. Pequenos povoados – como Santa Maria del Mar e Guanacoa – passam rápidos diante de nossos olhos até que, enfim, alcançamos Matanzas, uma cidade com cerca de 150 mil habitantes, espalhada sobre uma bonita baía. Dali até a península de Varadero são mais trinta e cinco quilômetros emoldurados pelo belíssimo litoral cubano à esquerda e por manguezais à direita. Nessa estreita faixa de terra, com cerca de vinte quilômetros de comprimento por dois de largura, se concentram quarenta e cinco grandes hotéis e resorts. Logo na entrada do luxuoso balneário, um grande cartaz anuncia: “O que se arrecada aqui vai para o povo cubano.” Afinal, na terra de Fidel, quase tudo é administrado pelo Estado e, teoricamente, pelo povo.
“Eu não vou viver para conhecer o mundo, mas queria que as coisas mudassem para que meus filhos e netos possam conhecer outros lugares. Não para viver em outros países, mas apenas para conhecê-los. As pessoas de todo o mundo vem nos visitar, vem conhecer Cuba, mas os cubanos não podem conhecer o mundo”, diz Graciela, uma jovem senhora de 50 anos, cuja simpatia conquistou alguns hóspedes do segundo andar de um resort em Varadero.
Graciela trabalha há 20 anos no local. Veio de Havana para o balneário na década de 80 para casar com um pescador, pai de seus dois filhos. O mais novo estudo turismo em um curso técnico, o outro faz educação física. Ambos se preparam profissionalmente para integrarem o seleto grupo de cubanos que lidam diariamente com os milhares de turistas que desembocam na ilha caribenha e que formam uma espécie de “elite trabalhadora” com acesso a gorjetas em CUC (moeda cubana para uso turístico) e em moeda estrangeira. Orgulhosa, ela exibe as fotos dos dois filhos e do neto, de dois anos de idade. O marido pescador morreu há 15 anos. Hoje, ela vive em um apartamento com o filho mais novo, enquanto o mais velho, a nora e o neto moram em um apartamento defronte ao seu. Graciela é feliz, curiosa, como todos os cubanos com quem conversamos.
O melhor aspecto de Cuba? “A segurança” diz, de chofre. As críticas sobre a falta de liberdade na ilha? “As pessoas criticam a política em Cuba, mas ela (a política) não nos incomoda. Vamos vivendo a vida”, afirma. É o que pensa também Abdel, garçom do luxuoso restaurante Kike-Kcho, na Marina Gaviota. Simpático, educado e instruído ele reforça: “A tranquilidade que temos aqui é muito importante. Aqui não há drogas, não há banditismo”.
Sobre as criticas a política cubana, Abdel explica que àqueles que falam mal do Governo são os que não querem trabalhar. “Os que não querem se preparar para um trabalho falam mal do nosso governo. O governo quer aumentar os salários, mas não há dinheiro”. Abdel ganha cerca de 460 pesos cubanos por mês (18 dólares), fora as propinas (gorjetas). “Em Cuba não há classes sociais”, assegura, mas diz que se tivesse que se enquadrar em uma classe social, seria media-baixa.
Com dezenove anos de experiência na profissão – 10 atuando nos restaurantes de luxo da Marina – Abdel sabe lidar com a curiosidade dos turistas. Solícito, se deixa fotografar içando uma lagosta no tanque do restaurante e até faz uma pose marcial para outro clique. Mas, seu olhar inteligente, as ideias bem concatenadas reforçam a impressão – que eu já havia tido anteriormente ao conversar com outros cubanos – de que há um “discurso turístico” pronto a ser oferecido a cada estrangeiro curioso que lhes pergunta sobre política, liberdade de expressão e outros interesses “pequeno-burgueses”.
Vasos sanitários, papel higiênico e liberdade
Conversar com os cubanos é um exercício de intuição e reflexão. Afinal, quando se fala dos horrores dos totalitarismos (sejam de esquerda, de direita ou de matiz religiosa), a ideia que se forma em nossas mentes é a de países destroçados pela tristeza, pela opressão, onde o riso não prospera, onde nem os pássaros cantam. Ora, apenas os que nunca estiveram (ou viveram) em um país totalitário podem alimentar esta noção deturpada das coisas. Como em qualquer país do mundo, também nos que vivem sob o totalitarismo as pessoas são… pessoas. Elas sofrem, gozam, riem, choram, sonham, têm seus momentos de euforia e de depressão. São seres-humanos, afinal.
E então, lembro-me do jornalista Janer Cristaldo e de seu antigo artigo intitulado “A Velhinha de Havana”, onde ele aborda outro artigo, de Luís Fernando Veríssimo, no qual o prócere gaúcho misturava alhos e bugalhos a respeito das “necessidades básicas” do ser humano.
Jorge Furtado andou pela Disneylândia das Esquerdas e dela traz notícias.
Ao chegar no quarto do hotel, o cineasta gaúcho notou que a privada não tinha assento. Considerou que sem assento não se pode sentar numa privada.
Reclamou com a camareira e dela ouviu:
– Se puede, se puede…
O que Verissimo está dizendo, em verdade, é que há um grave problema no regime cubano: as privadas não têm assento. Observação nenhuma sobre liberdade de imprensa e de opinião, direitos humanos, eleições livres e outras ridicularias de umEstado contemporâneo. A grande falha do socialismo tropical parece ser as privadas sem assento.
Pode-se viver sem muita coisa, reflete Cristaldo, até mesmo sem assento de privada e papel higiênico. Também se pode viver sem as lagostas içadas por Abdel. Milhões de cubanos vivem sem elas, apesar de sua abundância nos mares caribenhos. É que as lagostas são para consumo exclusivo dos turistas que levam dólares e euros a Cuba. São consumidas em restaurantes como o Kike-Kcho onde até muito pouco tempo os cubanos eram proibidos de entrar. Mas, é perfeitamente possível viver sem lagostas.
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