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Mundo

Danilo: o Músico

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

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Se ainda há uma aura de ino­cência na Ha­vana ro­mân­tica, ela esta na alma de cada mú­sico que ocupa suas ruas, es­quinas, bares e res­tau­rantes, onde o som ca­rac­te­rís­tico das claves, das ma­racas e congas marca o ritmo alegre da rumba, da conga, do mambo, do chá-chá-chá e também da me­lan­có­lica gua­jira. É im­pos­sível cir­cular pelo centro de Ha­vana, pela Ha­vana Velha, sem ouvir os muitos com­passos que em­balam esta ci­dade tão mu­sical, sem se deixar levar pela es­tranha emoção que nos atinge – la­tinos que somos – pelas ruas da ca­pital de Cuba.

Via de regra, qual­quer res­tau­rante ou bar em Ha­vana abriga boa mú­sica cu­bana, um re­per­tório cuja base está fin­cada nos com­po­si­tores clás­sicos da mú­sica local, além de todas as can­ções que se fi­zeram co­nhe­cidas mun­di­al­mente a partir do es­tron­doso su­cesso do Buena Vista So­cial Club.

Assim como as no­velas, a mú­sica bra­si­leira também é muito apre­ciada pelos cu­banos. Ela cir­cula em fitas cas­sete e CD´s – tra­zidos para a ilha por tu­ristas – que acabam indo parar nas mãos dos na­tivos. Foi exa­ta­mente esta paixão pela mú­sica bra­si­leira que abriu as portas para uma con­versa de mais de duas horas entre eu e o vi­o­lo­nista Da­nilo Sancho, em uma tarde re­gada a mo­jitos na afa­mada La Bo­de­guita Del Medio, um bar lo­ca­li­zado na Velha Ha­vana, imor­ta­li­zado pelo es­critor Her­nest He­mingway. En­quanto ele exe­cu­tava as peças do re­per­tório, ao lado de mais quatro mú­sicos, eu ob­ser­vava o mo­vi­mento na Bo­de­guita. Nos in­ter­valos, en­ta­bu­lá­vamos nosso papo.

Mú­sico au­to­di­data, con­ta­bi­lista por for­mação, Da­nilo é o pro­tó­tipo do cu­bano: alegre, co­mu­ni­ca­tivo, cu­rioso. “Amo a mú­sica bra­si­leira. Ro­berto Carlos, Tim Maia, Elis Re­gina, Chico Bu­arque, Ca­e­tano Ve­loso… tenho muita coisa deles”, avisou. A mai­oria do acervo mu­sical de Da­nilo foi reunido a partir de doações. “Se puderes mande-me José Augusto. Maravilhoso interprete. Tenho alguns de seus discos em espanhol, mas me faltam os primeiros”, explicou, anotando seu endereço em um guardanapo. Comprometi-me a localizar as preciosidades de meu amigo e lhe enviar por correio.

Casado, pai de um filho, Danilo, como todos os músicos que atuam nos bares e restaurantes cubanos, é funcionário do Estado. Ganha 157 pesos cubanos (6,40 CUCs ou 6 dólares) por mês para tocar das 8h às 17h. Esta renda é complementada pelas gorjetas (honestamente divididas pelos integrantes do grupo ao final do dia) e pela venda de CD´s de música cubana. Desta forma, no final do mês, ele consegue angariar cerca de 3.500 pesos cubanos (140 CUC´s ou 135 dólares), o que lhe permite se classificar como uma pessoa de classe média baixa. “Vivo como uma empregada doméstica no Brasil. Não tenho carro, nem luxos. Como, estudo, vivo cada dia”, explica, usando o exemplo que lhe vem à mente a partir das nossas novelas.

Curioso a respeito do modo de vida em uma democracia liberal, Danilo se mostra surpreso ao ouvir-me explicar o funcionamento dos três poderes. “Lula não pode fazer o que quer? Tem que ter autorização dos políticos?”, perguntou, tentando decifrar a relação entre o Executivo e o Legislativo no Brasil.

“Então você é jornalista? Mas, trabalha para algum jornal? Para uma emissora de TV?”. Explico que não, digo que sou um aventureiro midiático que tenta estabelecer um negócio próprio em meio à prostituição da informação. Danilo se mostra surpreso. “Mas como ganhas dinheiro?”. Novamente, explico que vivo da publicidade veiculada na revista, já que seu acesso pela internet é gratuito.

“Não temos internet aqui. Então, alguém lhe paga para que você coloque um anúncio em sua revista. Não há publicidade aqui em Cuba, apenas os cartazes do partido e da revolução”, disse Danilo antes de ser convocado para executar Chan Chan, composição do mítico Compay Segundo.

Todos no bote Buena Vista

O fenô­meno mun­dial do Buena Vista So­cial Club, sur­gido em 1996, serviu como um bote salva-vidas para cen­tenas de ta­lentos da velha guarda da mú­sica cu­bana e, também, para os ilus­tres des­co­nhe­cidos  que hoje vivem da mú­sica na ilha. “De­pois do Buena Vista o tu­rismo au­mentou, au­mentou também o in­te­resse pela nossa mú­sica”, ex­plica Omar, bai­xista que acom­panha Da­nilo na Bo­de­guita.

A ideia do mú­sico cu­bano Juan de Marcos Gon­zález era reunir ar­tistas de vá­rias ge­ra­ções para gravar um disco. O gui­tar­rista ame­ri­cano Ry Co­oder topou o de­safio de pro­duzir o tra­balho. O re­sul­tado foi um su­cesso ines­pe­rado com mais de um mi­lhão de có­pias ven­didas. O tra­balho atraiu a atenção do ci­ne­asta alemão Win Wen­ders que in­vestiu em um do­cu­men­tário. O disco levou Grammy em 97 e o filme al­guns prê­mios e vá­rias in­di­ca­ções, in­clu­sive ao Oscar.

O Buena Vista reuniu ins­tru­men­tistas e can­tores que, em sua mai­oria, vivia de apo­sen­ta­doria do Es­tado ou bicos. Ibrahim Ferrer, por exemplo, ícone do grupo, com­ple­tava o or­ça­mento como en­gra­xate. Gente como Compay Se­gundo, Bar­ba­rito Torres, Ama­dito Valdéz, a diva Omara Por­tu­ondo e o vi­o­lo­nista Eli­ades Ochoa, além de ou­tros, saíram do os­tra­cismo de mais de 40 anos para re­co­meçar a car­reira em grande es­tilo. Esta re­vo­lução mu­sical atingiu também a Danilos e Omares.

As­sisti ao show “Buena Vista So­cial Club Ofi­cial” no Café Ta­berna. À pri­meira vista a im­pressão era de que se tra­tava de um cover do que nós co­nhe­cemos como Buena Vista So­cial Club. Um naipe de me­tais, acom­pa­nhado por ins­tru­mentos tí­picos, gui­tarra, ba­teria e con­tra­baixo fa­ziam a base para que um grupo de can­tores e can­toras das an­tigas re­cor­dasse os su­cessos cu­banos da dé­cada de 50 e 60. Pouco a pouco fui per­ce­bendo, e con­fir­mando com bom papo, que aqueles se­nhores e se­nhoras ali de pé eram ícones da mú­sica local, assim como Compay, Omara e Ibrahim. “Eles não são tão fa­mosos no ex­te­rior, mas são bem co­nhe­cidos aqui. Há al­guns anos vol­taram à ativa”, me ex­plicou um garçom.

Ao voltar ao hotel apro­veitei para com­prar cha­rutos. Uma ven­de­dora per­guntou sobre minha noite. Disse a ela de minha ex­pe­ri­ência no Café Ta­berna e que, apesar de ter amado a mú­sica, havia fi­cado com um pouco de pena da­queles “ve­lhi­nhos” can­tando suas ve­lhas can­ções para os tu­ristas. Ela me olhou e disse: “Não se pre­o­cupe, eles gostam. É isso o que os mantém vivos”. 

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