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Publicado em 19/12/2014 12:00 -
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“Em Cuba, o empreendedor vive como se estivesse sempre sob um ventilador de teto. Se ele quiser se elevar muito, lhe cortam a cabeça”, diz Túlio, um engenheiro mecânico, com espírito empresarial, cujo sonho é formar uma cooperativa de táxis composta por relíquias bem preservadas da década de 50. Túlio dirige um belíssimo Bel Air 1955, totalmente reformado, com ar condicionado de primeira, bancos impecáveis, DVD no quebra sol. Um luxo.
No entanto, seus planos de oferecer um serviço diferenciado, de se destacar entre a “concorrência”, esbarram na burocracia estatal e na desconfiança que o Estado cubano ainda mantém de iniciativas individuais. Apesar da abertura promovida no último ano, o incentivo à livre iniciativa ainda é muito singelo. “Aqui tudo funciona devagar quando o assunto é o fomento a um negócio particular. Temos que dar passos curtos para não chamar muito a atenção”, explica Túlio.
Passos curtos, no seu caso, é ter de pensar três vezes antes de se unir a outros taxistas – donos de relíquias tão bem preservadas quanto seu Bel Air – para atuarem em conjunto, oferecendo um serviço de qualidade aos turistas. “As dificuldades para algo simples como esta ‘sociedade’ são imensas. Por isso vamos devagar, tentando crescer de acordo com as possibilidades”, lamenta.
Por conta
Apesar de parecer a nós, brasileiros, um bicho de sete cabeças, as dificuldades vividas pelos empreendedores cubanos hoje são um mar de rosas se comparadas à realidade de um passado muito recente. De fato, a simples possibilidade de trabalhar por conta própria é algo muito novo no país e surgiu diante da crise econômica que ameaçava falir o estado cubano.
No início de 2011 o presidente Raúl Castro lançou um programa de reformas com o objetivo de reverter o caos econômico gerado pela estatização de todas as esferas da vida pública a partir de 1968 quando, por influência da experiência soviética e para esmagar o descontentamento de parte dos pequenos empresários com os rumos da revolução, Fidel ordenou que toda a propriedade passasse às mãos do Estado. Barbearias, cabeleireiros, restaurantes, bares, mercearias, oficinas, quase todos os setores foram estatizados.
O modelo sobreviveu enquanto pode contar com o apoio econômico da União Soviética. Entrou em colapso quando essa fonte de financiamento desapareceu, ganhou uma sobrevida quando as relações com Venezuela, China, Rússia e Brasil repuseram parte dos recursos internacionais perdidos, mas voltou a entrar em crise a partir de 2008.
A saída encontrada pelo presidente Raul Castro foi – óbvio – incentivar o empreendedorismo. O governo abriu uma nova parcela do varejo para a iniciativa privada, permitindo à população atuar em diversos tipos de serviços. No início do ano passado, por exemplo, cerca de 1.500 barbearias e salões de beleza particulares foram abertos em Havana.
Ex-funcionários públicos e empreendedores individuais – muitos trabalhando ilegalmente no passado – passaram a ter a possibilidade de pagar taxas para licenciar suas empresas e impostos conforme a envergadura de suas atividades. Túlio, por exemplo, paga cerca de 400 dólares por mês ao Estado para trabalhar. “Mas, vale o esforço. Hoje tenho um segundo carro – um Peugeot – que uso para auxilio no caso de haver algum problema com o Bel Air em uma viagem mais longa. Quero garantir ao cliente um serviço de primeira qualidade”, justifica.
Mudanças são bem vindas
Desde então, alguns milhares de cubanos entraram com pedido de licença para "trabalhar para eles mesmos", eufemismo usado pelo governo para descrever o pequeno varejo. Havana planeja ter até 40% da força de trabalho local no setor "não estatal" até 2016. No fim de 2010 eram apenas 15%.
A grande procura pela oportunidade de arriscar e trabalhar para si próprio tem explicação: quem está por conta própria ganha cerca de 25 vezes mais do que quem depende do salário do Estado. Desde janeiro, as modalidades de trabalho permitidas ao arrendamento foram ampliadas para 23, dentre os 181 ofícios aprovados para serem desenvolvidos pelo setor privado.
Ok, as mudanças são bem-vindas. Que o diga Túlio: “Eu não posso reclamar. Passei por bons empregos no Estado. Minha esposa também é trabalhadora. Mas meu sonho era de investir em um negócio meu, para que pudesse construir algo para meus filhos. Esta melhor agora. Apesar de todas as dificuldades a situação está melhorando com esta abertura”.
Benéfica, a aposta na iniciativa privada não deve ser vista como um pacote de bondades. É o resultado da falência econômica do país. No fim das contas fica a certeza de que o papel dos governos é criar as condições para o espírito empreendedor emergir. Cuba só vai crescer quando criar as condições para que o espírito empreendedor dos cubanos se manifeste.
Na China, por exemplo, este espírito está emergindo, apesar da ausência de liberdades individuais. Enquanto o Estado chinês não "liberou" a propriedade privada – ter coisas, poder vender sua produção de alimentos, poder sonhar em melhorar de vida, correndo riscos – sua economia não se desenvolveu. Em Cuba, o sonho comunista esbarrou no bloqueio ao empreendedor. A igualdade deste modelo de socialismo, sem riscos e paternalista, nivelou a qualidade de vida por baixo. Cabe aos cubanos reverterem esta incongruência que, em nome de uma pretensa justiça social, condenou-os a um atraso econômico colossal.
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