25/04/2024 - Edição 540

Mundo

Túlio: O Empreendedor

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

“Em Cuba, o em­pre­en­dedor vive como se es­ti­vesse sempre sob um ven­ti­lador de teto. Se ele quiser se elevar muito, lhe cortam a ca­beça”, diz Túlio, um en­ge­nheiro me­câ­nico, com es­pí­rito em­pre­sa­rial, cujo sonho é formar uma co­o­pe­ra­tiva de táxis com­posta por re­lí­quias bem pre­ser­vadas da dé­cada de 50. Túlio di­rige um be­lís­simo Bel Air 1955, to­tal­mente re­for­mado, com ar con­di­ci­o­nado de pri­meira, bancos im­pe­cá­veis, DVD no quebra sol. Um luxo.

No en­tanto, seus planos de ofe­recer um ser­viço di­fe­ren­ciado, de se des­tacar entre a “con­cor­rência”, es­barram na bu­ro­cracia es­tatal e na des­con­fi­ança que o Es­tado cu­bano ainda mantém de ini­ci­a­tivas in­di­vi­duais. Apesar da aber­tura pro­mo­vida no úl­timo ano, o in­cen­tivo à livre ini­ci­a­tiva ainda é muito sin­gelo. “Aqui tudo fun­ciona de­vagar quando o as­sunto é o fo­mento a um ne­gócio par­ti­cular. Temos que dar passos curtos para não chamar muito a atenção”, ex­plica Túlio.

Passos curtos, no seu caso, é ter de pensar três vezes antes de se unir a ou­tros ta­xistas – donos de re­lí­quias tão bem pre­ser­vadas quanto seu Bel Air – para atu­arem em con­junto, ofe­re­cendo um ser­viço de qua­li­dade aos tu­ristas. “As di­fi­cul­dades para algo sim­ples como esta ‘so­ci­e­dade’ são imensas. Por isso vamos de­vagar, ten­tando crescer de acordo com as pos­si­bi­li­dades”, la­menta.

Por conta

Apesar de pa­recer a nós, bra­si­leiros, um bicho de sete ca­beças, as di­fi­cul­dades vi­vidas pelos em­pre­en­de­dores cu­banos hoje são um mar de rosas se com­pa­radas à re­a­li­dade de um pas­sado muito re­cente. De fato, a sim­ples pos­si­bi­li­dade de tra­ba­lhar por conta pró­pria é algo muito novo no país e surgiu di­ante da crise econô­mica que ame­a­çava falir o es­tado cu­bano.

No início de 2011 o presidente Raúl Castro lançou um programa de reformas com o objetivo de reverter o caos econômico gerado pela estatização de todas as esferas da vida pública a partir de 1968 quando, por influência da experiência soviética e para esmagar o descontentamento de parte dos pequenos empresários com os rumos da revolução, Fidel ordenou que toda a propriedade passasse às mãos do Estado. Barbearias, cabeleireiros, restaurantes, bares, mercearias, oficinas, quase todos os setores foram estatizados.

O modelo sobreviveu enquanto pode contar com o apoio econômico da União Soviética. Entrou em colapso quando essa fonte de financiamento desapareceu, ganhou uma sobrevida quando as relações com Venezuela, China, Rússia e Brasil repuseram parte dos recursos internacionais perdidos, mas voltou a entrar em crise a partir de 2008.

A saída encontrada pelo presidente Raul Castro foi – óbvio – incentivar o empreendedorismo. O governo abriu uma nova parcela do varejo para a iniciativa privada, permitindo à população atuar em diversos tipos de serviços. No início do ano passado, por exemplo, cerca de 1.500 barbearias e salões de beleza particulares foram abertos em Havana.

Ex-funcionários públicos e empreendedores individuais – muitos trabalhando ilegalmente no passado – passaram a ter a possibilidade de pagar taxas para licenciar suas empresas e impostos conforme a envergadura de suas atividades. Túlio, por exemplo, paga cerca de 400 dólares por mês ao Estado para trabalhar. “Mas, vale o esforço. Hoje tenho um segundo carro – um Peugeot – que uso para auxilio no caso de haver algum problema com o Bel Air em uma viagem mais longa. Quero garantir ao cliente um serviço de primeira qualidade”, justifica.

Mudanças são bem vindas

Desde então, al­guns mi­lhares de cu­banos en­traram com pe­dido de li­cença para "tra­ba­lhar para eles mesmos", eu­fe­mismo usado pelo go­verno para des­crever o pe­queno va­rejo. Ha­vana pla­neja ter até 40% da força de tra­balho local no setor "não es­tatal" até 2016. No fim de 2010 eram apenas 15%.

A grande pro­cura pela opor­tu­ni­dade de ar­riscar e tra­ba­lhar para si pró­prio tem ex­pli­cação: quem está por conta pró­pria ganha cerca de  25 vezes mais do que quem de­pende do sa­lário do Es­tado. Desde ja­neiro, as mo­da­li­dades de tra­balho per­mi­tidas ao ar­ren­da­mento foram am­pli­adas para 23, dentre os 181 ofí­cios apro­vados para serem de­sen­vol­vidos pelo setor pri­vado.

Ok, as mu­danças são bem-­vindas. Que o diga Túlio: “Eu não posso re­clamar. Passei por bons em­pregos no Es­tado. Minha es­posa também é tra­ba­lha­dora. Mas meu sonho era de in­vestir em um ne­gócio meu, para que pu­desse cons­truir algo para meus fi­lhos. Esta me­lhor agora. Apesar de todas as di­fi­cul­dades a si­tu­ação está me­lho­rando com esta aber­tura”.

Be­né­fica, a aposta na ini­ci­a­tiva pri­vada não deve ser vista como um pa­cote de bon­dades. É o re­sul­tado da fa­lência econô­mica do país. No fim das contas fica a cer­teza de que o papel dos go­vernos é criar as con­dições para o es­pí­rito em­pre­en­dedor emergir. Cuba só vai crescer quando criar as con­di­ções para que o es­pí­rito em­pre­en­dedor dos cu­banos se ma­ni­feste.

Na China, por exemplo, este es­pí­rito está emer­gindo, apesar da au­sência de li­ber­dades in­di­vi­duais. En­quanto o Es­tado chinês não "li­berou" a pro­pri­e­dade pri­vada – ter coisas, poder vender sua pro­dução de ali­mentos, poder so­nhar em me­lhorar de vida, cor­rendo riscos – sua eco­nomia não se de­sen­volveu. Em Cuba, o sonho co­mu­nista es­barrou no blo­queio ao em­pre­en­dedor. A igual­dade deste mo­delo de so­ci­a­lismo, sem riscos e pa­ter­na­lista, ni­velou a qua­li­dade de vida por baixo. Cabe aos cu­banos re­ver­terem esta in­con­gruência que, em nome de uma pre­tensa jus­tiça so­cial, con­denou-os a um atraso econô­mico co­lossal. 

Confira os demais artigos do Especial Cuba

Um olhar crítico e amoroso sobre a ilha dos Castro

Orcília: A Pedinte – A homogeneização da pobreza na Cuba igualitária

Danilo: o Músico – A alma de Cuba ainda repousa na boa música que embala a ilha

Graziela e Abdel: a Camareira e o Garçom – É possível viver sem papel higiênico e lagostas. E sem liberdade?

Leandro e seu Coco Taxi – O embargo como causador de todos os males

Mensagem na Garrafa – A blogueira Regina Coyula explica o fenômeno dos blogs cubanos

Números no Lugar – O blogueiro Fernando Dámaso fala sobre saúde e educação em Cuba

Imprensa Agrilhoada – Rebeca Monzo fala de jornalismo em Cuba

Vivendo o totalitarismo – A historiadora e antropóloga Miriam Celaya fala sobre a vida cotidiana em Cuba


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *