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Mundo

Mensagem na Garrafa

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

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Quando em 27 de ou­tubro de 2010 a fi­ló­loga Yoani San­chez criou a Aca­demia Blogger de Cuba, Re­gina Coyula foi uma das pri­meiras a se ma­tri­cular no “curso”, que pre­tendia, com a ajuda de 28 pes­soas, ser um centro de es­tudos de­di­cado à for­mação de blo­gueiros. A ideia era en­sinar aos in­te­res­sados téc­nicas de ad­mi­nis­tração de um blog, jor­na­lismo ci­dadão, fo­to­grafia e vídeo, cul­tura e ju­ris­pru­dência cu­bana. Re­gina foi uma das 27 pes­soas que pas­saram a se reunir se­ma­nal­mente no pe­queno apar­ta­mento de Yoani e que for­maram o nú­cleo de uma re­vo­lução mi­diá­tica que deu voz a de­zenas de cu­banos até então ca­lados pela au­sência de ca­nais de co­mu­ni­cação na ilha.  

Como re­sul­tado, há dois anos e meio ela edita o blog La Mala Letra (si­tuado no portal Des­de­cuba) onde fala de as­suntos re­la­ci­o­nados à so­ci­e­dade cu­bana. Foi na casa de Re­gina, em um bairro re­si­den­cial de Ha­vana, que pude co­nhecer e con­versar por cerca de duas horas e meia com ou­tros blo­gueiros que in­te­gram esta fauna mi­diá­tica que tanto in­fer­niza os ve­lhos ge­ne­rais e bu­ro­cratas do Par­tido Co­mu­nista Cu­bano (PCP).

“Em 2008 Yoani me disse que ia criar um blog. Como fun­ciona isso, per­guntei. Ela tentou me ex­plicar, mas para quem não co­nhece é como se não exis­tisse. Ela me dizia ‘é como um cor­reio de guerra’. Não en­tendia e a deixei com seu pro­jeto. Só des­cobri o que era um blog em 2009, quando puder ir à Es­panha. Voltei à Cuba ob­ses­siva com a ideia de ter um. Foi pouco antes de Yoani or­ga­nizar o curso”, ex­plica.

Li­cen­ciada em His­tória, Re­gina Coyula tra­ba­lhou entre 1972 e 1989 no de­par­ta­mento de Contra In­te­li­gência do Mi­nis­tério do In­te­rior. Em 1990 re­solveu se desvincular ao máximo do Estado. Foi motorista, massagista, artesã, vendedora e dona de casa. Mas foi no jornalismo cidadão exercido através do blog que ela se realizou. “Por meio dele leio e estudo, me interesso por coisas que havia praticamente esquecido. O blog me dá vida”, explica.

O fenômeno dos blogs em Cuba é uma resposta à ausência de canais de expressão fora da esfera oficial. “Se quero organizar um protesto porque estão cortando as árvores de minha rua, ou jogando lixo indiscriminadamente, algo totalmente inócuo do ponto vista político, isso é motivo para comoção. Já é um problema”, diz Regina. O blog, neste contexto, surgiu como uma válvula de escape.

Como os cubanos não possuem internet em casa, as postagens são feitas em hotéis ou em embaixadas estrangeiras que abrem suas portas para que os cubanos acessem a rede por algumas horas semanais. No caso de Regina, que utiliza a plataforma wordpress, as postagens são feitas via e-mail. “O acesso em um hotel custa o equivalente a um salário de um médico rico. Às vezes alguém nos dá um cartão de internet de uma hora, que, comprovadamente, nunca dura uma hora. Quando olha para a tela, já se acabou…”, reclama.

Garrafas no Mar

Sem acesso a rede, poucos cu­banos podem ler à pro­fícua pro­dução destes blo­gueiros re­beldes. Num pri­meiro mo­mento, diz Re­gina, “cada pos­tagem era como se jo­gás­semos men­sa­gens en­gar­ra­fadas ao mar”.

No en­tanto, seus textos re­che­ados de um re­a­lismo so­cial cu­bano que pode pa­recer sur­real a quem pro­cede de uma de­mo­cracia ca­pi­ta­lista che­garam a muitas praias, atin­gindo a um pú­blico va­riado mundo afora. Os cu­banos também leem o que seus com­pa­tri­otas es­pa­lham pela in­ternet. Mesmo sem acesso a rede, eles fazem seus textos cir­cular através de CDs e pen­drives que passam de mão em mão.

“É um fenô­meno que vai se tor­nando mais co­nhe­cido e que nos faz sentir um pouco co­mu­ni­ca­dores. Do nú­cleo ori­ginal de blo­gueiros sur­giram ou­tros grupos, que por sua vez le­varam esta se­mente a ou­tras pes­soas. Em prin­cípio o sen­ti­mento era o de que éramos náu­fragos, ati­rados a um mar vir­tual. Hoje o portal (Des­de­cuba) está cres­cido e existem muitos ou­tros blogs. Pa­rece um anúncio da Color Be­netton (risos). Assim vamos fa­lando ao mundo sobre o que ocorre em nosso país”, afirma.

Exorcizando Demônios

Expor o con­tra­ponto po­lí­tico em Cuba não é brin­ca­deira para ini­ci­antes. Muita gente já foi ame­a­çada, es­pan­cada e presa por le­vantar a voz contra o re­gime. Apesar do pe­rigo, os blo­gueiros que compõe este “co­le­tivo de in­di­vi­du­a­li­dades” não se rende. Por meio de sua in­sis­tência em exercer seu di­reito a opi­nião cri­aram um es­pí­rito, uma ar­téria, uma es­pécie de co­mu­ni­dade de in­te­resses afins com o ob­je­tivo de ir­romper o medo, exor­cizar seus demô­nios.

“Hoje, a coisa mais sub­ver­siva que digo é que não tenho medo, me nego a viver todos os dias de minha vida com medo. Terei medo de um dia morrer, claro. Eu cos­tumo calar quando tenho à minha porta a po­lícia po­lí­tica. Eu tenho que calar quando falo ao te­le­fone. É sempre uma pos­si­bi­li­dade que ocorra algo. No sub­cons­ci­ente esta pos­si­bi­li­dade é sempre pre­sente. Não penso ‘co­migo não vai acon­tecer nada’, pois pode acon­tecer… mas o temor dessa con­sequência é o preço a pagar por esta li­ber­dade in­te­rior que eu en­con­trei”, fi­na­liza Re­gina.

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