30/04/2024 - Edição 540

Especial

O ódio ganha as ruas

Publicado em 10/10/2018 12:00 -

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As manifestações de ódio que se tornaram marca do debate político na esfera virtual chegaram às ruas do país. Um levantamento realizado pela Agência Pública em parceria com a Open Knowledge Brasil afirma que, nos últimos dez dias, houve ao menos 70 ataques, entre agressões e ameaças, em 18 estados e no Distrito Federal. Em 50 casos, as ações são atribuídas a apoiadores do candidato Jair Bolsonaro (PSL). Contra eles há seis registros, e outros 15 casos têm situação indefinida. Embora o levantamento contabilize apenas os ataques desde 30 de setembro, houve uma intensificação expressiva das ocorrências a partir do primeiro turno da votação, no último domingo (7).

O ódio que se encrustou na eleitoral fez ao menos uma morte algumas horas depois de que 147 milhões de brasileiros se dirigiram às urnas. O mestre de capoeira e ativista cultural Romoaldo Rosário da Costa, mais conhecido como Moa do Katendê, de 63 anos, foi assassinado com 12 facadas na madrugada do último dia 8, em um bar de Salvador. O autor confesso do crime, Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, disse à polícia que o assassinato teve motivação política.

De acordo com a declaração que deu às autoridades, Santana, que votou e defendeu o candidato de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL), discutia com o dono do local, que votou em Fernando Haddad (PT), quando Moa uniu-se à conversa para também defender o petista. O assassino, então, foi à casa, pegou uma peixeira e voltou ao bar para atacar o capoeirista. A delegada Milena Calmon, responsável pelo caso, descreveu Santana ao EL PAÍS como um homem “intolerante e agressivo”.

Também no dia 8, uma jovem de 19 anos foi agredida por três homens em Porto Alegre. A vítima, que não quer falar com a imprensa por medo de sofrer novos ataques, relatou à Polícia Civil que após descer do ônibus, quando ia para casa, foi abordada pelos agressores porque estava usando uma camiseta com os dizeres #EleNão. Os homens teriam questionado ela sobre o motivo do uso da camiseta e a atingiram com socos. Na sequência, enquanto dois deles teriam segurado a vítima, o terceiro fez riscos com um canivete, similares a uma suástica, na região da barriga da jovem. A suástica é símbolo do regime nazista alemão.

Apesar da nítida vinculação da marca feita na pele da jovem ao nazismo, o delegado titular da 1ª Delegacia de Porto Alegre, Paulo Jardim, insistiu em outra leitura. "Não é uma suástica. Tenho absoluta convicção. O que temos é um símbolo milenar religioso budista. Símbolo de amor, paz e harmonia", disse, em entrevista à Rádio Gaúcha.

Na noite de terça-feira (9), um estudante recém-formado, cuja identidade foi preservada, foi agredido na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, por usar um boné do MST. A vítima, que estava reunida com amigos em uma praça do campus, foi espancada por membros de uma torcida organizada local sob gritos de “Aqui é Bolsonaro”, segundo testemunhas. “Eram uns 10 homens. Eles chegaram a quebrar garrafas na cabeça do rapaz”, conta M.H.O., presidente do Diretório Central de Estudantes, que presenciou a agressão e fez a denúncia. Os agressores também teriam depredado a Casa do Estudante da universidade, cujas janelas foram quebradas. A polícia foi acionada, mas os homens fugiram do local. A vítima foi atendida por uma ambulância e passa bem. “Seguiremos acompanhando as investigações. Temos que resistir”, diz M.H.O.

A pernambucana Érica Colaço também usou as redes sociais para expor as marcas de agressões no rosto e no braço da amiga Paula Guerra (foto abaixo) vítima de ataque num bar do Recife no último domingo, quando usava um adesivo do candidato Ciro Gomes (PDT) e bottons da campanha #EleNão.

Os médicos tiveram de colocar uma placa em seu pulso, quebrado pelos agressores. No laudo médico constavam outras fraturas e diversos hematomas, inclusive no crânio. A vítima contou à amiga que só não foi morta porque os garçons do bar onde ela estava a puxaram para dentro da cozinha do estabelecimento. Depois de denunciar o ataque, Érica vem sofrendo ameaças nas redes.

O número de ocorrências chamam a atenção de organizações. "Temos recebido um número crescente de denúncias de ataques a pessoas que manifestam sua preferência por um candidato, inclusive o homicídio de um eleitor de Fernando Haddad na Bahia. Os ataques têm que ser investigados e seus autores responsabilizados de forma célere. As instituições, polícias e Ministério Público têm que cumprir sua função", explicou Juana Kweitel, diretora executiva da ONG Conectas Direitos Humanos. "O gestual do candidato Bolsonaro imitando o uso de armas vai claramente na direção contrária. Os dois candidatos no segundo turno devem chamar seus eleitores a agir de modo pacífico e tolerante e devem se manifestar de forma categórica perante os ataques noticiados", completou.

Antes do primeiro turno (no dia 6), em Maringá uma carreata de apoio ao candidato à presidência Fernando Haddad (PT) em Maringá (PR) foi atacada na tarde do dia 6 por um apoiador de Bolsonaro. O agressor, que dirigia uma motocicleta com um adesivo de campanha do militar da reserva, avançou contra o ato de rua, arrancou bandeiras dos militantes e as usou para quebrar os vidros das janelas do carro onde estava a presidente do Sindaen (Sindicato dos Trabalhadores nas empresas de água, esgoto e saneamento de Maringá e região noroeste do Paraná), Vera Pedroso, que teve a mão cortada por conta dos estilhaços. Ela foi atendida em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) local e levou cinco pontos.

Em Campo Grande (MS), o ator Anderson Lima também foi agredido quando estava parado em um sinal de trânsito no último dia 26. Ele foi surpreendido por um eleitor de Bolsonaro que desembarcou do banco de carona de um veículo, arrancou violentamente um cartaz com a hashtag #EleNão – que Anderson havia colado no vidro da sua Kombi – deu um soco no vidro e avisou: “Ele sim! Para limpar o Brasil de hippie nojento igual a você”. “Estou assustado. Muito assustado”, afirmou o ator.

Quem também sofreu agressões verbais foi a irmã da vereadora Marielle Franco (PSOL), brutalmente executada no dia 14 de março —ainda não se sabe por quem. Um dia depois das eleições, Anielle Franco andava perto de um shopping carioca com sua filha Mariah, de dois anos, no colo. Não usava nenhum tipo de broche, camiseta ou bandeira. Uma com a roupa da creche, a outra com a roupa do trabalho. Isso não impediu, conta Anielle, que fosse reconhecida por homens vestindo a camiseta de Bolsonaro, que se aproximaram e começaram a chamá-la de “piranha” e a gritar que ela era “da esquerda de merda” ou “sai daí feminista”.

“Hoje eu tive medo! Medo mesmo. Não deveria, mas tive. Foi assustador. Ainda mais com minha filha no colo”, relatou Anielle em seu perfil no Facebook. “Não estou escrevendo para que ninguém tenha pena. Mas para que repensem sua maneira de fazer política. Por conta de um antipetismo vocês preferem propagar o ódio e a violência?! O seu candidato, em suma, defende esse tipo de postura, e outras coisa bem piores!”

O medo tornou-se um sentimento comum entre muitos cidadãos pertencentes à comunidade negra, LGBT e outras minorias atacadas por Bolsonaro em inúmeras ocasiões —agora, na reta final da campanha, ele negou as ofensas, que estão registradas em vídeos. O presidenciável é réu no Supremo Tribunal Federal por incitação ao estupro por ter dito à deputada Maria do Rosário que não a violaria porque “ela não merece”. Bolsonaro enaltece a ditadura militar e já defendeu a tortura. Também já fez declarações racistas e misóginas, assim como já disse: “Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”.

“Um governo de Bolsonaro dá medo porque ele é muito extremista, mas é ainda mais assustador ver que as pessoas vão se sentir legitimadas a praticar esse discurso de ódio e violência”, resumiu Júlia*, lésbica, de 30 anos, depois de votar na Vila Formosa, zona leste de São Paulo, no domingo. Esse sentimento é compartilhado pela candomblecista Janaí Martins do Nascimento, paulistana de 35 anos. “O cara é totalmente contra o Estado laico e mesmo com o Estado sendo laico, já é difícil para gente. O que eu posso esperar dele em relação a minha religião? Nada. Para mim, ele vai destruir tudo”, disse ela no domingo. “Eu só vim votar por medo dele”, acrescentou.

LGBT como alvos

Entre os casos dos últimos dias, chama atenção a proporção de ataques contra a comunidade LGBT. Três dias antes das eleições, viralizou nas redes sociais um vídeo em que um grupo de homens (alguns deles torcedores do Palmeiras) entoavam um cântico homofóbico no metrô de São Paulo: “Ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar veado”. Para Henrique Barum, homem gay de 23 anos, essas atitudes são um exemplo da banalização da violência. “Eu cresci sofrendo bullying, escutando que era um ‘veadinho de merda’ e agora escuto que um possível presidente vai matar gente como eu. Já estamos vivendo a ditadura do medo”, diz o estudante, que se mudou há oito meses de Pelotas (RS) para Portugal, onde faz mestrado em Estudos Culturais.

Barum conta que, no domingo (7), quando se confirmou que o candidato do PSL iria para o segundo turno com 46% dos votos, seus pais telefonaram, preocupados. “Olhando para mim, qualquer pessoa sabe que sou gay. Trabalho com maquiagem e saio maquiado nas ruas. Eu sei que, durante esse governo, não me sentiria confortável de me expressar como sou”. O estudante diz estar dividido entre o “alívio” de estar longe do país e a “angústia”. “Penso em amigos e familiares que estão na mesma situação que eu. Por mais que eu queira lutar ao lado deles, meus pais dizem que minha segurança é prioridade. Pedem que fique aqui, que eles virão me visitar”.

Gabriela Reis, pernambucana de 25 anos, anda com medo de sair com a namorada em Caruaru, onde vivem. Ela, mulher negra e lésbica, diz que já está acostumada aos “olhares feios” quando sai de turbante na rua, mas sente que agora a situação será pior. “Há muita tensão e vejo mais olhares agressivos para nós. As pessoas se sentem mais seguras para expor seus preconceitos. O que antes era só olhar, agora pode virar agressão, porque o discurso do Bolsonaro naturaliza a violência”, conta.

Para o paulistano Lucas*, de 36 anos, esse receio se concretizou no domingo. Ele e o namorado estavam em um engarrafamento na capital paulista, quando outros motoristas começaram a “cortar” seu veículo para ocupar o corredor exclusivo de ônibus. O namorado de Lucas buzinou para reclamar e lhes choveram xingamentos como “veados” e “vão dar o cu”. “Respondi a agressão jogando beijos para eles, e então um dos carros, um veículo grande, caro, de cor prata, virou à direita e passou por nós apontando uma arma, também prateada. O motorista era um senhor de uns 50 anos”, conta.

Depois que compartilhou o ocorrido com amigos, Lucas escutou mais relatos de agressões homofóbicas ocorridas durante os últimos dias. Um de seus colegas, que estava com uma camiseta rosa no metrô, ouviu de outros passageiros: “aproveita agora, porque daqui a pouco veado não vai mais existir”. O maior medo do paulistano é a institucionalização desse preconceito, com leis que revoguem o direito ao matrimônio igualitário ou que dificultem ainda mais o acesso ao trabalho e serviços de saúde para LGBTs. “Tenho medo de que o governo possa nos converter em cidadãos ‘ficha-suja’, que nos considere quase criminosos”, confessa.

Higor S., de 22 anos, é da pequena Serra Talhada, em Pernambuco —a terra de Lampião, estereótipo de “cabra macho”—, mas conta que nunca tinha sofrido homofobia antes das eleições. “Minha tia me acompanhou para votar, justamente porque tinha medo de que eu sofresse agressões, mas voltei para casa sozinho. Passei por uma laje onde um grupo de homens de camiseta verde e amarela fazia um churrasco e escutei risadinhas e gritos de ‘bichinha’. Percebi que apontavam para mim e um deles gritou: ‘É melhor já ir se acostumando, que isso aí [referindo-se à homossexualidade] vai acabar logo’, relembra o estudante, que correu para casa.

Higor já havia sido agredido dias antes por um eleitor de Bolsonaro na sala de aula. “Ele me mandou tomar naquele lugar e seus amigos tiveram que segurá-lo para ele não me bater”. Ele conta que ele o namorado, que já saíam pouco juntos, agora acham melhor não se expor mais publicamente. “Todos sabemos que não é o Bolsonaro que vai sair matando a gente, mas seus apoiadores vão se sentir legitimados para fazer isso”, lamenta e, depois de alguns segundos em silêncio, acrescenta: “Espero estar errado”.

Em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro, a cantora Julyanna Barbosa, que é transsexual, estava subindo uma passarela quando ouviu gritos de vendedores ambulantes direcionados a ela: "Bolsonaro vai ganhar para acabar com os veados, essa gente lixo tem que morrer", relatou.

Ao responder que merecia respeito, um dos homens começou a agredi-la com uma barra de ferro. Ele desferiu golpes na cabeça e no pescoço. Já no chão, recebeu chutes e socos de outros três homens. Socorrida por pessoas que passavam pelo local, ela levou dez pontos na cabeça e prestou depoimento numa delegacia.

O caso de Julyanna foi um dos 15 encaminhados ao Grupo Arco-Íris de Cidadania. Em entrevista à DW, o coordenador executivo da organização, Claudio Nascimento, relatou que a comunidade LGBTI está aterrorizada com os ataques e intimidações que vêm acontecendo. A orientação do grupo é para que evitem andar sozinhos, em horários de pouco movimento e só marquem encontros em aplicativos de paquera com a condição de compartilhar informações com amigos.

"A gente fala isso com dor no coração. Conquistamos duramente as liberdades individuais e estamos pedindo para as pessoas limitarem o exercício delas. Neste momento é preciso cautela para atravessar essa onda e conseguir superá-la, fazer o que a gente fazia nos anos 80 e 90. Estamos voltando no tempo, quando o Brasil havia conquistado algo tão importante no marco civilizatório", lamenta.

Nascimento conta que as ameaças ao direito de existência dos LGBTIs vinculadas à vitória do candidato do PSL são uma constante nas denúncias que chegam ao grupo. "No domingo, quando fui votar, três eleitores dele me xingaram. Com medo do que poderiam fazer comigo e com meu filho de 16 anos que estava comigo, fiquei calado", conta, emocionado.

"É uma situação que fere nosso direito de existência", diz. A gravidade do quadro motivou o Grupo Arco-Íris de Cidadania a apoiar um candidato à Presidência – Haddad – pela primeira vez em 25 anos.

Violência moral

Os atos de intolerância e violência de eleitores de Bolsonaro também se dão no campo moral. A médica infectologista Tereza Dantas, do Hospital Estadual Giselda Trigueiro, em Natal (RN), por exemplo, rasgou a receita do paciente José Alves de Menezes após ele dizer que votou em Fernando Haddad (PT) para a presidência. O caso aconteceu no dia 8.

De acordo com José, que trabalhava na área de saúde e conhecia a médica, ele comparecia periodicamente no hospital para pegar a receita de um remédio que toma todos os dias. Ele contou que, desta vez, um dia após o primeiro turno da eleição, a médica estava com a receita na mão ao perguntá-lo sobre seu voto. Quando disse quer votou em Haddad, Tereza, então, rasgou sua receita. “Pois então não dou mais a receita”, teria dito a mulher antes de rasgar os papéis.

O aposentado ficou tão constrangido que procurou o diretor do hospital e abriu um boletim de ocorrência na Polícia Civil. O Conselho de Medicina local informou que vai apurar o caso.

A médica, por sua vez, disse estar arrependida da atitude de intolerância. “Eu pedi perdão a Deus e pedi que ele me ajudasse a tirar de mim essa mágoa. Eu nunca gostei de extremismos e estava me transformando em algo que não gosto. Não deveria ter feito isso, eu sei. Agi por impulso e, por isso, peço desculpas”, afirmou.

Dantas acabou afastada das atividades pela Secretaria Estadual de Saúde Pública (Sesap), que vai abrir uma sindicância para apurar o caso e tomar as medidas cabíveis.

Este, no entanto, não foi um caso isolado de violência moral contra opositores de Jair Bolsonaro, cometido por seus correligionários ligados à área da saúde.

Em Goiânia (GO), uma atendente do Hospital Vittá, vestida com a camiseta do presidenciável, foi gravada advertindo os pacientes que o ginecologista Cláudio Coelho de Vasconcelos se nega a atender quem não vote no candidato. Ela diz ainda que quem não vota em Bolsonaro nem deve entrar na sala, pois o médico “está muito estressado e até já expulsou pacientes por esse motivo”. A conversa foi gravada em vídeo por um paciente e pode ser vista abaixo:

Jornalistas também são alvos

Jornalistas também entraram na mira de agressores. No domingo (7), o jornalista Guilherme Daldin vestia uma camiseta com a imagem do ex-presidente Lula e estava acompanhado de amigos nas proximidades da Rua Trajano Reis, no centro de Curitiba, quando foi atropelado por um carro. Daldin estava parado ao lado de um bicicletário. “Eu conversava com os amigos e o carro foi jogado contra mim, o pneu passou por cima dos meus pés. O carro saiu em disparado e quando amigos conseguiram chegar perto do motorista ele ameaçou atirar dizendo que portava uma arma”.

A placa do carro foi identificada e através dela foi possível encontrar o perfil do Facebook do motorista que revela em suas postagens ódio e pedido de morte a quem apoia o PT. “O que aconteceu comigo é leve comparado a outros casos de violência praticados por grupos de milícia proto fascista que apoiam Bolsonaro que é um candidato que faz a campanha incitando ódio”, disse Daldin.

No dia 8, uma jornalista pernambucana, cuja identidade foi preservada, prestou queixa na polícia dizendo ter sido atacada por dois homens ao sair do colégio onde votou no Recife. Depois de terem visto seu crachá, os indivíduos —um deles com uma camiseta de Bolsonaro— chamaram-na de “riquinha de esquerda”, agrediram-na e ameaçaram estuprá-la, conta ela. Quando um carro passou buzinando, os criminosos fugiram do local e a jornalista foi às autoridades. O caso foi relatado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que registrou 137 episódios de agressão de profissionais da comunicação ao longo de 2018 "em contexto político, partidário e eleitoral". A entidade contabiliza "75 ataques por meios digitais (com 64 profissionais afetados) e outros 62 casos físicos (com 60 atingidos)". "A maior parte das ocorrências físicas", diz a Abraji, "está relacionada à cobertura de manifestações ou eventos de grande repercussão ligados a eleições".

Nos últimos dias, a jornalista Míriam Leitão, que trabalha em O Globo e na TV Globo, vem sofrendo uma série de ataques virtuais após opinar, no programa Bom Dia Brasil, que o PT e Bolsonaro não são equiparáveis: enquanto o primeiro sempre jogou de acordo com as regras democráticas, o segundo teve uma vida pública marcada pela defesa da tortura e da ditadura. Logo depois desse comentário, começaram a circular mensagens falsas dizendo que Leitão foi presa em 1968 após roubar, armada com um revólver calibre 38, 80.000 cruzeiros de uma agência do banco Banespa. A imagem que circula com a mensagem é do momento em que foi presa e torturada pela ditadura militar em 1972, quando tinha 19 anos, por pertencer ao PCdoB na época.

Sobre a intolerância, a jornalista Eliane Brum, em artigo, escreveu que “projetos que não acolham as diferenças, que querem eliminar – e inclusive exterminar – as diferenças e executar aqueles que encarnam as diferenças, estes não cabem na democracia. Porque defender a eliminação dos diferentes, dizendo que não deveriam existir ou que valem menos que os outros, não é uma opinião, mas um crime”.

Desde o início do ano até o dia 7 de outubro, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 137 agressões e ameaças contra jornalistas por conta da cobertura do processo eleitoral – boa parte delas ligadas a defensores do ex-capitão.

“Já fiz esse relato mas vale repetir. Perdi a quantidade de vezes que fui xingado e ameaçado ou que me acusaram de coisas que nunca fiz, aos gritos, em restaurantes, supermercados e outros espaços públicos nos últimos anos. Já fui perseguido e chegaram às vias de fato, tendo sido cuspido e derrubado na rua. Grandes empresas já pagaram campanhas de difamação, milícias digitais criaram notícias falsas contra mim. O Ministério Público Federal recebeu e solicitou investigação policial de ameaças graves que recebi. Afinal de contas, tratar de direitos humanos e trabalho escravo é crime no Brasil”, diz o jornalista Leonardo Sakamoto.

O que Bolsonaro tem a dizer sobre a violência envolvendo seus militantes?

Bolsonaro recebeu a solidariedade de todos os adversários quando sofreu o abominável atentado contra sua vida, no dia 6 de setembro, em Juiz de Fora (MG). Ao contrário de parte de eleitores de outros partidos, que se descolaram da realidade e negaram a facada, os candidatos até paralisaram suas ações de campanha por terem considerado grave o que aconteceu ao ex-capitão. Os políticos lembraram que diferenças se resolvem pelo diálogo, não calando ou matando o outro.

Por isso, pergunta-se por que Bolsonaro não tem repudiado de forma enérgica e consistente as perseguições, agressões e até assassinato cometidos por indivíduos de sua militância (indivíduos, não a massa de seus eleitores). Ele, mais do que ninguém, sentiu na pele o significado da loucura política e do ódio. E como é considerado exemplo e liderança para muita gente e prometeu, repetidas vezes, que iria pacificar o país, poderia começar pedindo a seus seguidores optarem pelo diálogo ao invés da violência, dizendo que esse comportamento será reprimido em seu governo. Pois o silêncio de hoje alimentará um monstro incapaz de ser controlado amanhã, levando à normalização da porrada como resposta à discordância política.

A extrema direita detém o monopólio da violência política – os registros de agressões por parte de membros e apoiadores do Partido dos Trabalhadores a jornalistas e outros militantes, pela mídia, ao longo dos anos, provam que não. Como foi o caso da agressão de um homem que bateu-boca com apoiadores do PT, em frente ao Instituto Lula, em abril deste ano, e teve que ser hospitalizado..

O grosso da população, incendiado no período eleitoral, deve voltar ao ''normal'' após a apuração dos votos no próximo dia 28 da mesma forma que houve uma descompressão após a votação do impeachment. O que não significa que parte da sociedade não se manterá em guerra, seja pela sensação de impunidade que a vitória política traz ou pelo ressentimento da derrota eleitoral. Vai demandar um exaustivo trabalho de redução de animosidades e de sinalização ao lado derrotado por parte do eleito. O problema é que nem todo mundo aceita essa distensão. Afinal, o medo é um excelente instrumento de governo.

Caso Bolsonaro vença, grupos radicais, sentindo-se empoderados pela mudança de governo, vão se estar à vontade de ir às ruas, atuando como milícias políticas, para monitorar e punir opositores do governo, ativistas dos direitos humanos e jornalistas? Ou, em caso de derrota, eles também sairão às ruas para se vingar? Bolsonaro terá coragem de se mostrar solidário com quem pensa diferente? Essas dúvidas pairam sem resposta.

Durante o processo de impeachment, o ''vermelho'' se tornou a cor errada por um longo tempo, levando a pessoas que vestisse essa cor fosse punido, com ameaças, socos e pontapés. A perseguição ideológica de um certo ''macarthismo à brasileira'' pode se instalar por aqui, bem como um clima de caça às bruxas a toda ideologia que não seja aquela que não se afirma como ideologia e que, por isso, mais ideológica é. Jornalistas, sejam eles conservadores ou progressistas, podem vir a ser calados, não necessariamente pelo governo, mas por milícias digitais e convencionais que atuariam livremente, caso não contem a ''verdade'' que interesse a quem esteja no poder.

É assustador saber que alguém visto como ''normal'' e ''comum'' pode ser capaz, nos contextos histórico, político e institucional apropriados, tornar-se o que convencionamos chamar de monstro. Ou seja, os monstros são nossos vizinhos ou podemos ser nós mesmos. Pessoas que colocam em prática o que leem todos os dias na rede e absorvem em redes sociais: que seus adversários políticos e ideológicos são a corja da sociedade e agem para corromper os valores morais, tornar a vida dos ''cidadãos pagadores de impostos'', um inferno, e a cidade, um lixo. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos do bem.

A dificuldade de colocar-se no lugar do outro e entender que ele merece a mesma dignidade que sonhamos para nós mesmos esteve sempre presente. Mas não estava distribuída pela internet, conectada pelas redes sociais, amplificada pela popularização de smartphones e organizada por grupos políticos interessados em moldar a opinião pública e o processo eleitoral por meio digital. Fábricas de notícias falsas anônimas estão aprofundando a ultrapolarização, ajudando a levar o país às vias de fato, incitando a população e municiando-a para o confronto. Mas o conflito deflagrado e fermentado pelo rancor ao antipetismo no período eleitoral pode ser apenas o início. O receio é o que pode acontecer no dia seguinte às eleições, dependendo do resultado.

O problema não é apenas um governo que não se preocupe com os direitos fundamentais e sim líderes que não controlem seus seguidores – que, nas ruas ou na rede, queiram eliminar os que são vistos como ameaças,

Mais violência: no vídeo acima, versão completa em que candidatos e apoiadores de Bolsonaro destroem placa em homenagem a vereadora Marielle Franco, o ex-juiz federal Wilson Witzel (PSC), azarão da eleição no Rio de Janeiro, aplaude o discurso segundo o qual o grupo vai “decapitar o pessoal do PC do B, do PSOL e do PT”.

Quem pode controlar agora a massa dos seguidores são os candidatos. “Espero que isso seja feito rapidamente, sob risco do surgimento de milícias ideológicas, punindo jornalistas e cidadãos comuns por não 'pensarem direito'’. A democracia, às vezes, não faz estardalhaço ao morrer. Pode ser de dia, ameaçada de estupro depois de votar. De madrugada, com 12 golpes de faca após discutir política. Ou de noite, como uma vereadora negra executada dentro de seu carro e, depois, difamada nas redes sociais”, afirma Sakamoto.

Bolsonaro lava as mãos

Bolsonaro foi questionado pelo repórter Gustavo Maia, do UOL, sobre os episódios de violência envolvendo militantes. Afirmou que a pergunta estava invertida, citando o atentado que sofreu no dia 6 de setembro. ''Quem levou a facada fui eu, pô. O cara lá que tem uma camisa minha e comete um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?'' Perguntado se condenava o ocorrido, respondeu que lamentava.

Disse não ter controle sobre isso – ''Peço ao pessoal que não pratique isso, mas eu não tenho controle sobre milhões e milhões de pessoas que me apoiam'' – e afirmou que ''a violência'' e ''a intolerância'', na verdade, vêm do outro lado. ''Eu sou a prova, graças a Deus, viva disso daí.'' Analisa o clima como ''acirrado'', mas que ''são casos isolados''.

Mais tarde, ele publicou em sua conta no Twitter que dispensa o voto de quem pratica violência e que repudia o nazismo.


O candidato não tem controle, mas tem influência – e muita. É, portanto, fundamental que reflita e se pergunte: isso é tudo o que tem a dizer sobre a violência envolvendo seus militantes aos seus militantes?

Para o doutor em Direito Henrique Abel, a resposta de Bolsonaro às agressões foi insuficiente e "mostra um desinteresse da parte dele em orientar seus seguidores". Algo que, em sua opinião, seria muito fácil fazer: bastaria "estabelecer uma diretriz, que teria um impacto psicológico muito importante" entre seus eleitores mais radicalizados. "Ele prefere sair com uma evasiva. Então, sim, há uma responsabilidade. Não diretamente, mas ele é considerado um símbolo e legitima práticas e condutas ilícitas ou abertamente criminosas, como dizer que ele iria 'fuzilar a petralhada' do Acre", argumenta. E acrescenta: "Mesmo que em um eventual governo ele não chegue a dar uma ordem de matar ou torturar alguém, o simples fato de simbolicamente legitimar essas práticas representa, aos olhos de quem será governado por ele, uma interpretação de que passam a ser permitidas. E de que não há nada de errado com elas".

Corpos Medrosos

Se o bolsonarismo tem acentuado a sensação de medo entre os campos progressistas e democráticos da sociedade, é preciso lembrar que esta produção do medo pode conter um elemento saudável, já que, ao gerar a percepção de algo que possa ser uma ameaça, permite, também, a construção de manejos e estratégias para enfrentar este risco, diz o médico sanitarista Emerson Elias Merhy, professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e livre-docente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No entanto, prossegue, é preciso diferenciar este “medo saudável” daquele que leva à construção de um “corpo medroso”, um corpo tão dominado pelo pânico que se paralisa, se submete, que passa a aceitar o poder da ameaça a tal ponto que se desvitaliza.

“O corpo medroso é uma construção que em diferentes civilizações sempre foi uma grande estratégia de governantes que exerciam um poder violento sobre o corpo do outro, o poder soberano, que é a construção de um poder que dita sobre a vida e morte do outro”, explica, citando como exemplo o poder soberano do cidadão grego sobre seu escravo, que não era um cidadão, portanto não era humano. “Criar no escravo não só o medo como o corpo medroso era uma estratégia de governo fundamental. Vemos este processo se repetindo em diferentes lógicas de organização societárias e, no Brasil de hoje, especialmente na extrema direita”.

Para Merhy, a estratégia é paralisar pela ameaça física, pela destruição exemplar de alguns para que os outros anulem o próprio desejo de se contrapor a este poder soberano violento e autoritário. “A morte de Marielle Franco, o assassinato de várias lideranças, a violência contra gays nas ruas, o assassinato de travestis e de homossexuais, as surras que são dadas em pessoas que pensam de forma diferente fazem parte desta estratégia da extrema direita”, afirma.

O combate a esta sensação de medo é necessário, sustenta Merhy. “Se você não é um corpo medroso, vai montar estratégias para se manifestar sem ser destruído. Vai participar de manifestações ao lado de muitas pessoas, e medir melhor a importância daquilo que você vai fazer na produção e consolidação de novas pessoas que possam perceber esta extrema direita como, de fato, algo que não é do interesse da maioria. Portanto, uma coisa é ter medo, outra é ser um corpo medroso.”

*Nome fictício, usado para preservar a identidade das fontes.


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