30/04/2024 - Edição 540

Especial

Ladeira abaixo

Publicado em 25/11/2021 12:00 -

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A fome no Brasil aumentou de forma exponencial em 2020 e os programas de auxílio emergencial criados pelo governo foram incapazes de lidar com o fenômeno. O alerta é de Maximo Torero, economista-chefe da FAO, que insiste que o governo brasileiro precisa, de maneira urgente, trabalhar para mapear os bolsões da fome no país e, assim, conseguir dar uma resposta à crise.

Os dados, segundo ele, indicam um cenário dramático. Em 2019, menos de 2,5% da população brasileira vivia numa situação de fome severa. Ao final de 2020, a taxa era de 8%. "Uma enorme mudança", disse o economista.

Quanto aos dados sobre fome moderada, a taxa chega a 24% da população em 2020, contra 16% em 2019 e apenas 11% em 2014. "É um enorme salto", insistiu Torero, apontando que nessa classificação está incluída a desnutrição. Os dados do IBGE, porém, são ainda mais alarmantes, passando de 27% para 35% em 2020.

Os dados recolocam o Brasil e toda a região latino-americana de volta ao radar da fome no mundo. "Foi um ano muito ruim, pela forma que lidaram com a pandemia", afirmou.

Outro dado destacado pela FAO aponta que, em 2018, 14% da população brasileira já não tinha acesso a uma alimentação saudável, o equivalente a 29 milhões de pessoas.

A realidade contrasta com a posição que o Brasil declara ter no mundo de ser responsável pela alimentação de 1 bilhão de pessoas pelo planeta, graças às exportações. Mas, para Torero, a desigualdade é o que marca a incapacidade de o país garantir alimentos a seus próprios cidadãos.

Um dos principais representantes da FAO no mundo espera que uma recuperação comece a ser vista em 2022 e que países como o Brasil registrem alguma queda nos índices de fome. Mas ele alerta que a volta aos números pré-pandemia só ocorrerá em uma década.

"Nossa projeção é de recuperação completa apenas a partir de 2030, tanto no mundo como na América Latina", disse.

Mesmo com a projeção de uma leve recuperação em 2022, um dos grandes desafios é a pressão da inflação. Se parte do aumento tem relação com a compra de commodities pela China, Torero destaca que a seca no Brasil, Rússia e EUA também afeta o trigo. O maior obstáculo, porém, vem dos preços de energia. "Isso é de grande preocupação".

Auxílio emergencial

Torero estima que não foi apenas o Brasil que sofreu na pandemia. Diante de uma taxa de informalidade de 50%, a América Latina também registrou uma alta enorme em casos de fome, incluindo no Peru, Argentina e outros países.

"A consequência do confinamento foi a perda de renda, principalmente na economia informal. Na economia formal, há certa proteção. Mas os informais não têm acesso a isso e foram deixados sem apoio", disse.

Em alguns casos, como no Peru, confinamentos de um ano acabaram agravando a crise social, diante da ausência da ajuda do estado.

Para Torero, existiam "várias opções" para se evitar tal crise. "Em primeiro lugar, alguns dos confinamentos foram desnecessariamente longos, já que não existiam medidas adequadas, como a testagem", disse.

Segundo ele, algumas das medidas de lockdown poderiam ter sido suavizadas se existissem medidas sanitárias coerentes para lidar com o vírus. Isso, porém, não foi implementado e o confinamento não surtiu o efeito que se esperava.

Outro problema foi a falta de dados sobre onde estava a fome na região, inclusive no Brasil. "Pensaram que a fome estava no mesmo grupo de pessoas que estava recebendo a ajuda em programas sociais. Parte importante do aumento da fome ocorreu em novos hotspots de fome, que estavam relacionados com trabalhadores informais", disse.

Para o chefe da FAO, o Brasil conseguiu evitar um aumento da pobreza, com a distribuição do auxílio emergencial. Mas, segundo ele, não estavam nesses beneficiários dos pacotes os riscos de fome.

Com a meta de superar essa crise, Torero espera agora que o governo brasileiro mergulhe em um trabalho para mapear onde a fome está. A partir dessa avaliação, sua proposta é de que programas focados nesses grupos sejam criados para começar a lidar com a crise.

Auxílio Brasil deixa fora pelo menos 558 mil famílias que vivem na miséria

O Auxílio Brasil começou a ser pago na semana passada a 14,5 milhões de famílias. O total de benefícios não é suficiente para atender nem as famílias em extrema pobreza (renda individual de até R$ 89 por mês). Há 15,06 milhões de famílias nessa situação. Ou seja, 558 mil famílias a mais do que os benefícios disponíveis. Até maio deste ano, o número de benefícios era maior que o de miseráveis. Com a crise e o crescimento da pobreza, isso se inverteu em junho e passou a piorar mês a mês.

Mas o número de famílias em extrema pobreza que não é atendido pode ser muito maior do que esses 558 mil. O programa é destinado não só a miseráveis, mas também a pobres (renda mensal de R$ 89,01 a R$ 178). Os miseráveis têm prioridade de atendimento, e todos deveriam ser beneficiados, para só depois entrarem os pobres. O governo não divulga quantos de cada categoria são atendidos. Então não é possível saber quantas das 15,06 milhões de famílias em extrema pobreza estão fora. Por isso o número pode ser bem maior.

Em junho, os números pioraram

Veja como, a partir de junho deste ano, ficou maior o número de famílias em extrema pobreza em relação ao total de famílias atendidas. É uma redução inédita no programa social:

Os números são do Cadastro Único (CadÚnico), do governo federal. Esse banco de informações é usado para definir quem tem e quem não tem direito ao benefício. São as próprias famílias que informam os dados.

Os dados de outubro e novembro ainda não foram divulgados no CadÚnico, mas a follha de pagamento do Auxílio Brasil mostra que em novembro foram pagos 14,5 milhões de benefícios, o que dá a diferença de 558 mil em relação às famílias na miséria.

Redução de beneficiários

Além do déficit crescente a partir de junho, o novo Auxílio Brasil começou a ser pago em novembro com uma redução de 148 mil beneficiários em relação ao último pagamento do extinto Bolsa Família, em outubro.

Além dessas famílias na miséria, outras 2,9 milhões de famílias estavam em situação de pobreza (com renda de R$ 89,01 a R$ 178). Todas elas são elegíveis e deveriam ter acesso ao benefício social. Com isso, a fila de espera hoje deve ter em torno de 3,5 milhões de famílias.

Governo havia prometido atender 17 milhões

A promessa do ministro João Roma (Republicanos) era de que o Auxílio Brasil ajudasse 17 milhões, segundo ele estimou em outubro. Agora, o governo diz que esse número só deverá ser alcançado em dezembro. Com isso, cerca de 2,5 milhões de famílias aguardam ingresso no programa em uma fila de espera.

Desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o poder, em janeiro de 2019, o número de famílias em extrema pobreza inscritas no Cadastro Único cresceu 2,3 milhões (eram 12,7 milhões em dezembro de 2018).

Redução nos atendidos em 26 estados

No primeiro mês de pagamento, o Auxílio Brasil teve um encolhimento de 148 mil famílias, ou 1% em relação ao último pagamento do Bolsa Família.

A redução de beneficiários em novembro ocorreu em 26 das 27 unidades da federação. O Distrito Federal foi a única exceção, com ganho de 123 beneficiários em relação à folha de outubro.

O estado que mais perdeu foi São Paulo, com 23,6 mil benefícios a menos. Em termos percentuais, a maior queda foi no Paraná: 2,2% no total.

Governo diz que aumentou valores pagos

O Ministério da Cidadania disse que houve uma transferência automática dos beneficiados de um mês para o outro. "Em novembro foram migradas automaticamente as famílias do Bolsa Família que estavam na folha de pagamento de outubro, com exceção daquelas em que foi verificado, em qualquer momento do mês de outubro, o descumprimento das regras de gestão de benefícios do Programa Bolsa Família", diz nota enviada à reportagem.

Segundo o governo, o benefício médio pago às famílias aumentou 20% e passou de R$ 186,68 para R$ 224,41. Neste mês, os pagamentos somaram R$ 3,25 bilhões.

Auxílio Brasil nasce com uma solidez de gelatina

O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Mas não consegue resolver o problema da fome pelo Ministério da Agricultura. Também não se mostra capaz de resolver o problema da renda pelo Ministério da Economia. Ou pela pasta do Trabalho, recriada recentemente. Por isso, nenhuma lista de prioridades nacionais será completa se não incluir um programa social sustentável de socorro aos cidadãos que sobrevivem na miséria. Embora não ignore a gravidade da encrenca, o governo lida com ela na base do improviso.

Foi nesse ambiente que a Câmara aprovou no último dia 25 a medida provisória que cria o Auxílio Brasil. O programa nasce sólido como uma porção de gelatina. Bolsonaro prometia há mais de um ano um programa para manter o socorro aos pobres na fase pós-pandemia. Seria perene como o Bolsa Família, só que mais gordo e com um número bem maior de beneficiários. A equipe econômica sugeriu um valor mensal de R$ 300. O presidente elevou para R$ 400. O novo benefício começou a ser pago há duas semanas. O valor médio é de R$ 217. Mais de 20 milhões de beneficiários do socorro da pandemia ficaram ao relento.

O Bolsa Família, que fez aniversário de 18 anos, foi extinto. A medida provisória que cria o substituto ainda depende da apreciação do Senado. E o pagamento de R$ 400 está condicionado à aprovação da PEC dos precatórios, também pendente de votação no Senado. No seu formato original, o benefício tinha a aparência de uma empulhação eleitoral, pois valeria apenas até dezembro de 2022. O risco de derrota forçou o governo a tornar o benefício permanente.

O problema é que o líder de Bolsonaro no Senado, Fernando Bezerra, relator da PEC dos Precatórios, não indicou a fonte de recursos para o auxílio de R$ 400. Pior, ele sugeriu que o Congresso dê um drible na Lei de Responsabilidade Fiscal, incluindo na Constituição um dispositivo que dispensa o governo de encontrar uma fonte de receita para financiar o programa. Quem for eleito para governar a partir de 2023 que se vire para tapar o buraco.

Incapaz de planejar adequadamente a resolução do problema da fome, o governo se revela genial em organizar a próxima confusão.


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