Artigo da Semana
Publicado em 04/09/2018 12:00 -
Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.
Jean-Marie Le Pen chegou ao segundo turno das presidenciais francesas em 2002. Mas jamais almejou a Presidência. Defensor infatigável do regime de Vichy, feudatário dos invasores nazistas na França, o seu único objetivo era quebrantar a legitimidade do sistema democrático restituído em 1944 pela Resistência.
Uma década depois, sua filha, Marine, começou a construir um projeto de poder a partir do núcleo de reacionários organizado pelo seu pai. Ela se cercou de quadros da elite meritocrática, abriu as portas do partido para a diversidade e construiu pontes com o mercado.
Ícone dessa nova era, o seu “posto Ipiranga”, Florian Phillipot, é um admirador de Charles de Gaulle, patriarca da direita republicana, formado na Escola de Nacional de Administração, um viveiro de altos funcionários e executivos, e homossexual assumido, para desagrado de muitos eleitores do FN.
Numa tentativa de romper definitivamente com o passado, Marine expulsou Jean-Marie da formação que ele criou. Um parricídio de forte valor simbólico: o negacionismo do Holocausto, um dos estandartes do vetusto líder, era uma barreira insuperável entre a FN e a maioria do eleitorado francês.
Em 2017, Marine repetiu o feito do pai e chegou ao segundo turno das presidenciais. Porém a sua aventura rapidamente azedou.
Logo depois da sua derrota contra Emmanuel Macron, ela perdeu o controle sobre a extrema-direita, que regressou às suas pelejas tribais.
Não obstante o fiasco, Marine fez escola. Muitos líderes tentam replicar a sua trajetória na Europa e alhures.
Jair Bolsonaro, por exemplo, ensaiou seguir pelo caminho trilhado por Marine: buscou um vice-presidente da direita parlamentar, indicou um “posto Ipiranga” e se distancio das falas polêmicas do passado.
Porém, na semana passada, de forma abrupta e imprevista, ele se afastou do “Jairzinho paz e amor”, falou tudo e o seu contrário sobre economia e deu um show de truculência no programa de maior audiência nacional.
Na família Le Pen, Jair escolheu ser Jean-Marie. Ele desistiu – se é que jamais teve – da ambição de governar o país.
A sua candidatura é motivada exclusivamente pelo anseio de sabotar a legitimidade do sistema democrático erguido depois da ditadura.
Porque o choque sistêmico importa mais do que o projeto de poder, tudo é permitido para chegar ao segundo turno. Isso explica a sua aposta numa campanha sectária e a sua indiferença pela alta
rejeição que ela provoca.
Em 2002, face a ameaça de Jean-Marie, a resposta dos franceses foi unânime e portentosa.
Mais de um milhão saíram às ruas. Todos os setores da sociedade declararam apoio ao seu opositor, Jacques Chirac. Uma barreira foi erguida unindo os votos da esquerda e da direita republicana.
No segundo turno, Jean-Marie não ultrapassou os 20% dos votos.
Resta esperar que os brasileiros reajam com a mesma tenacidade na eventualidade de um primeiro grande teste democrático dessa natureza.
Mathias Alencastro – Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Deixe um comentário