30/04/2024 - Edição 540

Poder

Pito em Ernesto Araújo por não usar máscara em Israel foi humilhante

Publicado em 12/03/2021 12:00 -

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A cena em que Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, toma um pito da organização de um evento realizado em Israel, pedindo para que coloque a máscara antes de tirar uma fotografia com o seu colega, o chanceler Gabi Ashkenazi, é uma das cenas mais constrangedoras da história da diplomacia brasileira.

Não foi lapso ou esquecimento. Isso é paradigmático do que é o seu comportamento no Brasil, como o dia 27 de janeiro, quando estava numa churrascaria lotada, batendo palma para Jair Bolsonaro enquanto o presidente xingava jornalistas. Ernesto simplesmente não se importa.

E olha que a imagem do país no exterior está na sarjeta já há dois anos. Da disparada no desmatamento e nas queimadas na Amazônia, passando pelos episódios de pornográfica vassalagem com o governo Donald Trump até o terraplanismo biológico diante da covid-19 (que transformou o país em ameaça sanitária global), nos tornamos uma espécie de Zé Ruela das nações.

Mas o vídeo de Ernesto "Negacionista do Clima" Araújo, que viralizou nas redes sociais, é extremamente didático para que o mundo entenda o que somos obrigados a viver diariamente.

Claaaaaaro que, dificilmente, países farão algo para pressionar o governo brasileiro a adotar medidas eficazes contra a covid. Mas fundos de investimento responsáveis também não vão colocar dinheiro em um país sem perspectivas de retomada econômica por conta da montanha de corpos que fica cada vez mais alta.

'Mais ridículo do que o pito no chanceler é o motivo da viagem em si'

A comitiva do governo brasileiro (que foi a Israel criar um factoide diante da escalada de mortes por covid-19) tirou uma foto ao sair do Brasil. Nela, ninguém usava a máscara. Ao chegar em solo israelense, em uma foto semelhante, todos estavam com o equipamento de proteção.

Lá, o governo impõe regras. Já aqui é a Casa da Mãe Joana, ou melhor, do Pai Jair, onde o próprio presidente da República incentiva aglomerações, briga com governadores e prefeitos que tentam impor quarentenas e foi responsável por promover remédios sem eficácia para a doença.

"Mais ridículo do que o pito no chanceler é o motivo da viagem em si", avaliou um diplomata brasileiro à coluna. A comitiva foi tentar fechar acordos sobre medicamentos que ainda estão em fase de testes (como o spray tratado como novo "feijão mágico" por Bolsonaro) e quer entender qual o sucesso da campanha de vacinação de Israel.

Simples, eles têm vacina em quantidade suficiente. Nós, não.

Se Jair Bolsonaro tivesse estabelecido contratos de compras com laboratórios no ano passado, agora poderíamos estar vacinando em ritmo acelerado. Afinal, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem capacidade de imunizar mais de dois milhões de brasileiros por dia. Se tiver produto para tanto.

Bolsonaro preferiu atacar o imunizante, dizendo que transformava pessoas em jacarés e promovendo desinformação sobre ele. E, nesta quinta (4), chamou de "idiota" quem pede a compra da vacina. E mandou procurarmos na "casa da [tua] mãe", alegando que não há mais doses disponíveis para vender. Não tem, mas tinha. Ele que não quis comprar.

A questão não é ser conservador ou progressista. O governo de Israel também é conservador e comete atos de violência extrema contra os palestinos. Mesmo assim é exemplo mundial em vacinação.

A questão é se o grupo que está no poder é racional e quer se manter no poder atendendo minimamente o bem estar de seu povo. Ou se prefere lutar para moldar parte da opinião pública à sua imagem e semelhança, espalhando o negacionismo e a política do "mais forte sobrevive", centrando esforços em sua reeleição.

Mas o que é um pito como esse para um governo que não se importa com a humilhação de 10 mil mortos nos últimos sete dias?

Desprezo de diplomatas

O chanceler Ernesto Araújo foi buscar em Israel uma solução para lidar com a pandemia. Mas, segundo seus próprios diplomatas, ele já deveria embarcar de volta antes mesmo de passar a primeira noite no país.

De forma irônica e sempre no anonimato diante do que chamam de clima de "caça às bruxas", funcionários do Itamaraty comentam que o seu chefe já descobriu que parte do sucesso do governo de Tel Aviv em lidar com a crise sanitária não vem da vacina ou de um spray testado em apenas 30 pessoas. Mas, acima de tudo, de medidas de distanciamento social e do uso da máscara, que ele tanto despreza.

O incidente envolvendo o ministro brasileiro não apenas revelou a dimensão do ridículo da postura internacional do Brasil.

Internamente, no Itamaraty, o incidente também foi recebido como uma comprovação da distância que o chefe da diplomacia brasileira está do restante do mundo, inclusive de alguns de seus últimos aliados.

Já havia gerado um enorme mal-estar a decisão de Araújo de usar a abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU para criticar medidas de confinamento, há duas semanas. Agora, a percepção é de que o ministro descobriu que suas declarações e atitudes não serão toleradas.

Entre embaixadores experientes e mesmo entre diplomatas do escalão intermediário, o caso de Israel foi tratado com deboche. Nos grupos de WhatsApp de negociadores brasileiros, o que se constatou neste domingo foi a ampliação ainda maior do desprezo que seus próprios soldados nutrem do comandante.

O desprezo, porém, não se limita à gestão da pandemia. Nos últimos meses, passou a ser uma prática comum entre diversas divisões no Itamaraty repassar ao gabinete do chanceler o "mínimo de informação possível" sobre posições que o Brasil deveria tomar.

Isso, segundo diplomatas, para evitar que o ministro tenha "brilhantes ideias" e continue a queimar as pontes construídas pelo país durante décadas.

No caso de Israel, a viagem termina apenas em meados da semana. Mas os mais irônicos dentro da chancelaria já constatam que "Araújo foi buscar em Israel um spray e vai trazer uma caixa de máscara". Já outro responde: "e Made in China".

Falando na relação com Israel… mais um vexame

O secretário especial de Cultura do governo federal, Mário Frias, comparou na noite de quinta-feira (11) as medidas de combate à pandemia impostas por governadores e prefeitos ao Holocausto.

Em uma publicação no Twitter, o ex-ator Frias reproduziu um trecho do filme A Lista de Schindler (1993) que mostra trabalhadores judeus sendo assassinados por tropas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Nas cenas, as vítimas aparecem argumentando que eram "trabalhadores essenciais", mas os carrascos nazistas ignoram os apelos. No fim do vídeo, aparece uma mensagem em português: "Por medo, estamos permitindo políticos decidirem quem é essencial e quem não é. Cuidado. Seu trabalho é essencial. Você é essencial."

"O setor de eventos clama para poder levar o pão para dentro de casa, para poder sustentar a própria família. Até quando um burocrata arrogante irá dizer que ele não é essencial?", completou Frias numa mensagem que acompanha o vídeo.

Dessa forma, o secretário tentou fazer uma falsa analogia entre a matança de milhões de judeus durante o período nazista e os decretos de governadores que estão limitando serviços não essenciais para tentar conter o avanço da pandemia de covid-19, que já deixou mais de 272 mil mortos no Brasil.

No momento, o governo Jair Bolsonaro e seus apoiadores têm protagonizado uma nova ofensiva nas redes e nas ruas contra decretos de isolamento social com o objetivo de manter lojas e serviços abertos, mesmo diante do colapso da rede de saúde em vários estados e recordes consecutivos de mortes diárias por covid-19 no país.

A publicação de mau gosto de Frias provocou uma reação de repúdio do Museu do Holocausto de Curitiba, principal entidade no Brasil de preservação da memória das vítimas da barbárie nazista. Para o museu, Frias, prejudica "a construção da memória do Holocausto".

"'A Lista de Schindler', secretário? É desta forma que pretende se opor às medidas de combate à pandemia? Crê que a analogia com esta paródia agressiva não ofende sobreviventes e descendentes? Que não prejudica a construção da memória do Holocausto? Que vergonha, secretário", declarou a administração do museu em resposta à publicação de Frias.

O secretário de Cultura respondeu, numa mensagem com um erro grosseiro de português. "Sem duvida é preciso discernimento para se analisar uma postagem. Todos que sofreram desse horror tem meu respeito e solidariedade. O trexo (sic) do filme retrata bem uma situação que estamos vivenciando, guardadas as devidas proporções. Fique com Deus e vá trabalhar", escreveu Frias. Ele posteriormente apagou a publicação quando o erro foi apontado por usuários do Twitter.

Em mensagens publicadas no fim da manhã desta sexta-feira, Frias ainda tentou justificar a publicação do vídeo. "Dizer que essa analogia é uma ofensa ao grande povo judeu, que já experimentou todo esse terror na pele, é apenas um expediente retórico que tenta inviabilizar a devida crítica as nefastas e abomináveis violações às liberdades individuais que estão em andamento."

Histórico de banalização e falsas analogias

Não é a primeira vez que membros do governo Jair Bolsonaro fazem falsas analogias com o Holocausto para promover uma agenda contra medidas de restrição à pandemia ou para reclamar de críticas ao governo. A fala provocou repúdio até mesmo entre associações judaicas dos EUA. Araújo nunca pediu desculpas.

Em abril de 2020, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comparou a imposição de medidas de distanciamento social aos campos de concentração nazistas.

Mesmo assim, na semana passada, em viagem a Israel, Araújo reclamou da publicação de um manifesto de intelectuais, sindicalistas e religiosos que comparou situação dramática da pandemia no Brasil e a falta de ações do governo federal a uma "câmara de gás a céu aberto". Ao lado de membros do governo israelense, o ministro disse que esse tipo de analogia "banaliza" o Holocausto. Os autores do manifesto acabaram retirando esse trecho do texto. Araújo, por rua vez, nunca pediu desculpas pela sua fala de abril passado.

Em maio do ano passado, o então ministro da Educação Abraham Weintraub também usou falsas comparações com o nazismo para reclamar de uma operação da Polícia Federal contra bolsonariatas acusados de propagar fake news e ameaçar ministros do Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, Weintraub disse que as investigações contra os bolsonaristas eram uma "Noite dos Cristais brasileira", em referência à onda de violência patrocinada pelo regime nazista contra judeus alemães em 9 de novembro de 1938. A declaração de Weintraub também provocou repúdio de entidades judaicas e até do consulado de Israel em São Paulo.

Em outra ocasião, Weintraub disse falsamente em 2019 que os nazistas "inventaram a aspirina" numa publicação de mau gosto que sugeria que o educador Paulo Freire seria mais inútil que o nazismo. No entanto, a aspirina foi inventada décadas antes do nazismo e seu desenvolvimento contou com a participação de cientistas alemães de origem judaica.

Outros membros do governo, incluindo o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, também falaram falsamente em diversas oportunidades que o "nazismo é de esquerda", provocando reações de repúdio de historiadores e até da embaixada da Alemanha no Brasil e partidos políticos do país europeu.

Em maio passado, um vídeo publicado pela antiga Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) para divulgar medidas adotadas pelo governo no combate à crise sanitária provocada pelo novo coronavírus também provocou repúdio de associações judaicas. A gravação mostrava a mensagem "O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil", no que foi encarado como uma referência direita ao lema "O trabalho liberta" ("Arbeit macht frei", em alemão), inscrita na entrada de vários antigos campos de concentração nazistas.

A secretaria comandada por Frias também tem um histórico perturbador com assuntos envolvendo o nazismo. Um de seus antecessores, o dramaturgo de extrema direita Roberto Alvim, chegou a plagiar um discurso do ministro nazista da propaganda Joseph Goebbels em um vídeo publicado em janeiro do ano passado. A própria estética da gravação remetia ao nazismo, com a reprodução ao fundo de um trecho de uma ópera de Richard Wagner, o compositor favorito de Adolf Hitler.

Diante do repúdio maciço, Alvim foi forçado a deixar o cargo. O posto foi posteriormente ocupado por um curto período atribulado pela atriz Regina Duarte. Frias, um ex-ator que ganhou destaque nos anos 1990 pela sua participação na novela adolescente Malhação, assumiu o posto em junho.


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