30/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro ou Moro, um dos dois está mentindo descaradamente

Publicado em 17/05/2019 12:00 -

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Na ficção, Sergio Moro brilha em “O Mecanismo”, a versão romanceada da Lava Jato, cuja segunda temporada acaba de sair na Netflix. Na vida real, o ex-juiz protagoniza atualmente o episódio “O Compromisso”, não menos interessante.

Jair Bolsonaro não poderia ter sido mais claro: disse ter firmado com Moro o compromisso de indicá-lo à primeira vaga que surgir no Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do país, provavelmente em 2020.

O ministro da Justiça também foi assertivo: sem nem pedir a tradicional vênia, desmentiu o chefe imediatamente, dizendo que não colocou nenhuma condição —como indicação ao STF— para abandonar 22 anos de toga e ingressar no governo.

Façamos então a carinha do emoji com a mão no queixo e olhar intrigado. Quem está mentindo e, mais importante que isso, por quê?

Dificilmente alguém —que não os dois ou quem testemunhou a conversa— terá resposta. E viva a nova política, quando ou presidente ou seu ministro está mentindo descaradamente e cada um deles sabe exatamente quem é e por qual razão.

Bolsonaro levou para seu governo um auxiliar dito “indemissível”, hoje seu ministro mais bem avaliado. Que outra brilhante solução haveria, então, que não a de retirar do jogo um concorrente em 2022 despachando-o para debaixo de uma nova toga?

Do ponto de vista de Moro, o ex-juiz vem passando por percalços no Congresso e tenta olimpicamente se desviar de temas que vão do Queirozgate aos infames decretos bangue-bangue. Parece ter assumido o Ministério do Não É Comigo.

Para sua carreira jurídico-política, não resta dúvida de que há dois horizontes: o STF ou a vaga de Bolsonaro. Logo, não seria de bom tom excluir de cara um desses cenários. Além do mais, a confirmação do “compromisso” mobilizaria por antecipação tropas contrárias e daria mais substância à percepção de que ele conduziu a Lava Jato com alguns objetivos políticos bem delineados.

Quem está mentindo? E por quê? Com a palavra, Bolsonaro e Moro.

Disse e desdisse

O presidente voltou atrás na quinta-feira (16) de sua primeira versão e disse que não houve nenhum acordo com o ministro da Justiça. "Quem me acompanhou ao longo de quatro anos, sabe que eu falava que precisamos de alguém no Supremo com o perfil de Moro. Não teve nenhum acordo, nada, ninguém nunca me viu com Moro [antes da eleição]", afirmou o presidente durante transmissão ao vivo em suas redes sociais.

No último dia 12, porém, Bolsonaro afirmou que assumiu o compromisso de indicar Moro para uma vaga no Supremo. "Eu fiz um compromisso com ele, porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura. Eu falei: 'a primeira vaga que tiver lá [no STF], está à sua disposição'", disse o presidente em entrevista à rádio Bandeirantes.

Em seguida, Moro foi a público dizer que não existia nenhum acordo prévio entre ele e Bolsonaro para uma cadeira na corte. "Não vou receber um convite para ser ministro estabelecendo condição sobre circunstâncias do futuro que não se pode controlar."

O jogo de versões despertou o mundo político e, na avaliação de parlamentares, expôs o ex-juiz a um desgaste antecipado no Congresso —a indicação do presidente para o STF precisa ser aprovada pelo Senado.

Moro tem trabalhado para aprovar um pacote anticrime, que está parado na Câmara, e perdeu a batalha para manter o Coaf sob o guarda-chuva da Justiça. O órgão pode migrar para o Ministério da Economia, de Paulo Guedes.

O primeiro ministro do Supremo que deve deixar a corte é o decano Celso de Mello, que completa 75 anos —a idade de aposentadoria obrigatória— em novembro de 2020. A segunda vaga no STF deve ficar disponível com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, em julho de 2021.

Na entrevista à rádio Bandeirantes, Bolsonaro foi questionado sobre uma fala recente do ex-juiz da Lava Jato, que no final de abril disse ao jornal português Expresso que ir para o STF seria “como ganhar na loteria”.

“Eu vou honrar esse compromisso. Caso ele [Moro] queira ir pra lá [STF], será um grande aliado. Não do governo, mas dos interesses do nosso Brasil dentro do STF”, disse o mandatário.

Moro foi anunciado ministro da Justiça em 1º de novembro do ano passado, poucos dias depois da vitória do atual presidente no segundo turno das eleições presidenciais.

Quando comunicou seu embarque no governo, Moro disse ter aceitado o convite de Bolsonaro “com certo pesar” por ter de “abandonar 22 anos de magistratura”.

“No entanto, a perspectiva de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado, com respeito à Constituição, à lei e aos direitos, levaram-me a tomar esta decisão. Na prática, significa consolidar os avanços contra o crime e a corrupção dos últimos anos e afastar riscos de retrocessos por um bem maior”, disse à época o ex-juiz.

RECUOS E DERROTAS DO SUPERMINISTRO MORO

Perda do Coaf

Criado em 1998, o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) é um órgão de inteligência financeira que investiga operações suspeitas. Ao assumir a Presidência, Bolsonaro tirou o Coaf do Ministério da Economia (antiga Fazenda) e o colocou na pasta de Moro, a Justiça. O ex-juiz acabou derrotado depois que a comissão especial do Congresso que analisa a reestruturação administrativa devolveu o Coaf à Economia

Pacote anticrime parado

Principal iniciativa de Moro no ministério, proposta pouco avançou no Congresso, em meio a atritos com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que disse que projeto era "copia e cola" e Moro, um "funcionário de Bolsonaro" depois de o ex-juiz cobrar agilidade na tramitação do pacote

Decreto das armas

Seu primeiro revés foi ainda em janeiro. O ministro tentou se desvincular da autoria da ideia de flexibilizar a posse de armas, dizendo nos bastidores estar apenas cumprindo ordens do presidente. Teve sua sugestão ignorada de limitar o registro por pessoa a duas armas —o decreto fixou o número em quatro

Laranjas

No caso do escândalo de candidaturas de laranjas, enquanto Moro deu declarações evasivas, dizendo que a PF iria investigar se “houvesse necessidade” e que não sabia se havia consistência nas denúncias, Bolsonaro determinou dias depois, de forma enfática, a abertura de investigações para apurar o esquema

Caixa dois

Por ordem do Palácio do Planalto, a proposta de criminalização do caixa dois, elaborada pelo ministro da Justiça, vai tramitar separadamente do restante do projeto anticrime

Ilona Szabó

Moro teve de demitir a especialista em segurança pública por determinação do presidente, após repercussão negativa da nomeação. Ilona Szabó já se disse contrária ao afrouxamento das regras de acesso a armas e criticou a ideia de ampliação do direito à legítima defesa que está no projeto do ministro

Acalmando o rapaz

O ex-juiz federal, que se notabilizou pela operação Lava Jato e por condenar Lula, o principal adversário eleitoral de Bolsonaro, havia aceitado o cargo no atual governo sob a promessa de que teria liberdade para trabalhar. Seja por ingenuidade, seja por arrogância, acreditou na "carta branca" que lhe seria entregue por Jair. Na dureza da vida real, Moro não consegue indicar uma suplente de conselho sem ser desautorizado pelos seguidores digitais do chefe e pelo próprio.

A última engolida de sapo foi o decreto que facilita o porte de armas, permite que cidadãos comuns estoquem grandes quantidades de munição e torna a vida de milícias rurais e urbanas um paraíso. O Ministério da Justiça teve menos de um dia para responder a uma consulta antes do presidente publicar o texto e, agora, arca com o ônus de uma medida que vem sendo alvo de críticas da sociedade civil, políticos, imprensa e parte das polícias e das Forças Armadas.

Ao mesmo tempo, sua popularidade cai junto com a do presidente. De acordo com a última pesquisa XP Ipespe, de janeiro até o início de maio, a nota dada pela população a Jair Bolsonaro caiu de 6,7 para 5,7. E para Moro, de 7,3 para 6,5. Seja contaminado pelo governo, seja por seus próprios erros, propostas polêmicas e falta de resultados, ele está perdendo popularidade. A reprovação do governo subiu de 20% para 31% e a aprovação caiu de 40% para 34%.

Moro lembrou, recentemente, que sua presença no governo tinha prazo de validade. Em entrevista ao jornal português Expresso, publicada no dia 23 de abril, ele afirmou que ser indicado para o STF "seria como ganhar na loteria".

Ou investir na poupança. Pois, uma vez no STF, ele pode retomar a fantasia de "combatente da corrupção", sem os ônus da negociação diária que significa governar e longe das trapalhadas do governo Bolsonaro. Preservando-se, pode se cacifar para uma disputa à Presidência da República em 2022 ou 2026. Ou mais para frente, afinal, ele tem apenas 46 anos de idade. E se não houver clima político para tanto, pode influenciar vários governos a partir do Supremo – o que é um excelente prêmio.

Sua peregrinação entre os deputados federais, na semana que passou, para tentar manter o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) – e, portanto, o poder de investigação sobre operações em todo o país sob suas ordens – culminou com uma humilhante derrota na comissão que analisa a reorganização administrativa promovida pelo governo. Bolsonaro não se mexeu para ajudar seu ministro.

Ao adiantar o nome de Moro, o presidente pode acalmar o ex-juiz, mas entregou ao Senado Federal – que sabatina e ratifica os nomes de indicados ao STF – uma vantagem de um ano e meio para costurar a aprovação ou reprovação de seu nome. Os parlamentares podem precificar essa indicação do Moro. O "acalmar" pode ser lido, portanto, como "sacanear". Claro que haverá pressão de procuradores e magistrados que fazem parte da operação Lava Jato para ajudar no "convencimento" de parlamentares. Mas nunca se sabe. O Senado Federal é uma casa com mandatos de oito, não de quatro anos.

Com o convite a Moro, Bolsonaro queria, além de reforçar o apoio de um naco da sociedade, criar um anteparo para que denúncias de corrupção envolvendo seu governo não colassem tão facilmente. Ou seja, usá-lo para "lavagem de marca". Desde então, conseguiu até que Moro flexibilizasse a opinião sobre a gravidade do crime de "caixa 2", indo contra o que havia dito antes, ao aceitar o perdão do outrora deputado federal e agora ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, diante de "sincero" arrependimento.

Depois do arranca-rabo público com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, sobre o trâmite de seu pacote legislativo contra a corrupção e o crime organizado, Sérgio Moro mostrou que ainda engatinha para entender como funciona a política. Mas a sua entrada no Twitter – com a já antológica publicação em que postou uma foto com uma folhinha de calendário para provar a data – mostra que está disposto a aprender. Para quê? Essa é a grande pergunta a ser respondida no ano que vem ou nas próximas duas eleições presidenciais.

Até agora, Bolsonaro é refém de sua própria incapacidade gerencial (que coloca pessoas desqualificadas em cargos importantes por sugestão de astrólogos, incentiva brigas de rua nas redes sociais e é incapaz de entender o que é o presidencialismo de coalizão), mas também dos esqueletos que sua família abriga no armário (das denúncias contra o senador Flávio Bolsonaro ao apoio dado a milícias) e de sua crença que foi ungido para a missão de levar o país de volta ao passado. Ou seja, refém de si mesmo.

Ele não pode demitir o ministro da Economia, Paulo Guedes, nem Sérgio Moro, devido ao tamanho de ambos, que representam setores que têm mais poder que o próprio Bolsonaro. Mas pode tornar a vida deles um inferno. Até porque é parte de sua estratégia remover o chão de qualquer pessoa que lhe faça sombra.

Ao trazer para a pauta algo que era pressuposto apenas das entrelinhas, Bolsonaro quer também tornar refém quem o observa do prédio vizinho ao Palácio do Planalto, o Ministério da Justiça.

Como Moro tornou-se parte da equipe de Bolsonaro, seria o caso de perguntar ao presidente e ao ministro quando essa promessa aconteceu e em que circunstâncias. Até para garantir que isso não pareça troca de favores em nome de apoio político – aquilo que ambos, repetidamente, prometeram combater.


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