Camaleoa
Publicado em 15/08/2014 12:00 - Cristina Livramento
Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.
Sem um espaço específico, em Campo Grande, para manifestar a própria arte, a periferia que durante alguns meses foi Maloca Querida, na antiga rodoviária, inaugurou na semana passada, O Barraco, no São Conrado. Rap, hip-hop, break, batalha de MC's e grafite deram uma nova cara ao bairro, no domingo (10), e mais um sopro de esperança para este seleto grupo de resistência que não se dá por vencido e se reinventa em nome da própria identidade.
Desde o ano passado tenho observado a movimentação cultural na Capital e, me parece que, a manifestação mais original neste momento vem da periferia. Assim como em todos os outros setores – os serviços públicos tratados como um tema marginal- a arte dos "maloqueiros", como nossa burguesia gosta de classificá-los, segue indiferente e alheia ao mainstream. Mas eles não se intimidam com a falta de estrutura, nem com a fama. O laço que os une é justamente o isolamento, transforma pessoas com histórias e classes sociais completamente diferentes, idades das mais variadas, em uma só família.
A Maloca Querida, no prédio da antiga rodoviária, no Centro, fechou por inúmeras reclamações dos condôminos quanto a vandalismos dos mais diversos. Suzamar Rodrigues, considerada "mãe" da gurizada, uma das coordenadoras da Maloca e, hoje, à frente dO Barraco, ao lado de Antonio CaJunior, pediu incansavelmente que os limites de intervenção no local fossem respeitados. Pedidos que não foram atendidos por alguns e culminou no fechamento do espaço mais democrático da cidade. É interessante fazer uma observação a esse respeito. O que levou ao fim da Maloca, não me parece coisa de vandalismo, mas de falta de pai e mãe de uma série de adolescentes que circulam pela nossa cidade – e eles não vêm apenas da periferia.
Talvez, a grande dificuldade, em administrar espaços democráticos, como a Maloca e O Barraco, esteja em lidar com questões muito mais profundas dentro de cada indivíduo, comportamentos ignorados pelos responsáveis dentro de casa e pela sociedade (porque ela sempre acha que o problema não é dela). A educação, a violência, o caos na saúde, são problemas do outro, nunca nosso. Adolescentes mimados, ignorados, desprezados, maltratados em casa – muitas vezes até sem casa – também frequentam esses espaços. É na rua e nas manifestações de rua onde eles encontram uma fresta para exercer a própria identidade e se expressar. É uma tarefa árdua esta de Suzamar e CaJu.
Algumas pessoas me questionam o fato de estar lá, como se eu devesse frequentar ambientes mais apropriados ao meu status social (sic). E posso dar algumas boas razões porque me encanto cada vez mais com a periferia. A primeira delas é o fato de que entre eles o "papo é reto". A expressão diz respeito a transparência e objetividade com que se movem e se relacionam. Bem diferente dos nossos ambientes de trabalho e lugares descolados em que todos são lindos, se abraçam e se beijam e, ao virar as costas, um fala mal do outro. Entre os "maloqueiros" a coisa é dita olho no olho, sem rodeios, sem falsidade.
Enquanto a classe artística briga por holofote, se desespera por mais "paitrocínios (como se o Estado fosse aquele paizão com a obrigação de liberar uma grana extra sempre que alguém pede), a periferia não se encolhe com a falta de estrutura. A batalha de MC's, por exemplo, que tinha encontrado seu lugar no corredor da antiga rodoviária, voltou para a praça do Rádio Clube, sem microfone, sem caixa de som e cobertura da mídia. Fazem com luz ambiente, formam rodas, combinam rimas e mandam ver. Afinal, o artista se manifesta por uma necessidade muito individual, como uma extensão do próprio corpo. O autêntico artista sabe que dinheiro e carinha bonita em coluna social é só perfumaria.
O perfil é outro, o artista da periferia trabalha, se profissionaliza, estuda e banca do próprio bolso o sonho da poesia. Provavelmente não vamos encontrar nenhum deles batendo na porta de vereador ou fazendo média com o secretário de Cultura da vez.
Muito mais do que pensar em dinheiro, conchavos políticos, essa "família" tem batalhado por um lugar onde cada um possa soltar o grito, ser quem eles são e celebrar a vida do jeito deles. E mesmo que haja um grupo pequeno de "vândalos" ali infiltrado, as pessoas e o espaço ainda são símbolosde resistência. Porque é nesse lugar onde os renegados, sujos e maltrapilhos são acolhidos com amor e uma nova perspectiva de vida ainda é oferecida.
Página no Facebook – O Barraco Roots
Leia outros artigos da coluna: Camaleoa
Deixe um comentário