Brasil
Publicado em 06/09/2019 12:00 -
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O número de óbitos por policiais vem subindo há cinco anos no Rio de Janeiro e bateu novo recorde neste primeiro semestre: 1.075 pessoas foram mortas pela polícia – média de 5 por dia. No mesmo período de 2019, sete policiais militares morreram em serviço. Apesar disso, o prefeito da cidade, Marcelo Crivella (Republicanos), arranjou tempo nesta semana para se preocupar com um beijo gay em uma HQ.
O prefeito determinou aos organizadores da Bienal do Livro da cidade que recolham dos estandes a HQ Vingadores – A Cruzada das Crianças, da Marvel Comics. Em pronunciamento nas redes sociais na quinta-feira 5, Crivella afirmou que a história em quadrinhos traz “conteúdo sexual para menores” e deve ser comercializada apenas se embalada em um plástico preto e lacrado, “com aviso sobre seu conteúdo”.
Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinamos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades. pic.twitter.com/sFw82bqmOx
— Marcelo Crivella (@MCrivella) September 5, 2019
Na obra, há imagens de um casal homossexual, formado por dois homens, se beijando e trocando carícias. Lançado em 2010, o livro não é destinado ao público infantil, porém, antes da manifestação de Crivella, vereadores da cidade haviam pedido seu recolhimento da Bienal, sob a alegação de que poderia “despertar a atenção” de crianças presentes no evento.
“Não dá para admitir covardia contra as nossas crianças. Propagação e divulgação homossexual para as crianças e os pais comprando pensando que é um livro infantil. Se um homem quer se deitar com outro homem, o problema é dele. Se uma mulher quer ter relação com outra mulher, o problema é dela. Agora tentar descer goela abaixo isso nas nossas crianças é uma patifaria, coisa de bandido e de covarde. Isso está sendo vendido na Bienal”, disse em discurso o vereador Alexandre Isquierdo (DEM-RJ).
Um alerta aos pais! Assista e compartilhe o discurso contra o livro infantil da Marvel que propaga o homossexualismo para as CRIANÇAS! A história em quadrinhos está sendo vendida lacrada na Bienal do Livro e nas livrarias, os pais só percebem o conteúdo depois. Um crime absurdo! pic.twitter.com/WV6RQNCkmR
— Alexandre Isquierdo (@Isquierdorio) September 5, 2019
“Livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado, e, do lado de fora, avisando o conteúdo. Portanto, a Prefeitura do Rio de Janeiro está protegendo os menores da nossa cidade”, declarou Marcelo Crivella ao determinar o recolhimento da obra.
Reação
"Vingadores: A cruzada das crianças" é o 66º volume da Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel, lançado no Brasil em 2016 pela Editorial Salvat em parceria com a Panini Comics. A série republica gibis em formato de luxo, com capa dura. Na história, escrita pelo americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung, dois membros dos Jovens Vingadores (no original, Young Avengers), Wiccano e Hulkling, são namorados. A história foi publicada originalmente nos EUA entre 2010 e 2012, chegando ao Brasil, ainda em edições mensais, em 2012.
Segundo o atendente responsável pela parte de quadrinhos da editora Devir, Cesar Santos, após a notícia da ordem de recolhimento de Crivella, um outro estande que vende HQs chegou a procurá-los para saber se eles tinham o título.
— Ele queriam comprar da gente para revender no estande deles pois com essa repercussão o livro vai vender muito, assim como tudo que é proibido — afirmou Santos — O que a gente tem que se perguntar é que, se fosse um beijo heterossexual, teria a mesma reação? Se isso não é censura, não sei o que é. Crivella devia se preocupar com infraestrutura, segurança da cidade e está preocupado com um beijo num livro.
Bienal: "Voz a todos os públicos"
Procurada, a Bienal afirmou que "dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá três painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+. A direção do festival entende que, caso um visitante adquira uma obra que não o agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor."
Em nota, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) afirmou que "notificou, na tarde desta quinta-feira (5), a organização da Bienal do Livro a adequar as obras expostas na feira aos artigos 74 a 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) , que preveem lacre e a devida advertência de classificação indicativa de conteúdo em publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes. Em caso de descumprimento, o material sem o aviso será apreendido e o evento poderá ainda ter a licença cassada." Também na tarde desta quinta-feira, um grupo de guardas municipais foi à Bienal com o objetivo de recolher os livros. Os agentes foram recebidos pela direção do evento e, após uma conversa, saíram sem cumprir seu objetivo.
Na verdade, a Seop se refere aos artigos 78 e 79 do ECA. O Artigo 78 diz que revistas e publicações com material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes devem ser comercializados em embalagem lacrada, com advertência de seu conteúdo. O estatuto também prevê que as editoras devem cuidar para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.
O Artigo 79, por sua vez, diz que “revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.”
Especialistas dizem que há censura
Para Deborah Sztajnberg, advogada especializada em direito autoral e autora do livro "Cala boca já morreu: a censura judicial das biografias", a atitude do prefeito pode ser considerada como censura:
— Quero crer que a Constituição ainda seja válida. Lá diz, textualmente, que acabou censura no Brasil — afirmou a advogada. — Uma decisão como essa precisa ser tomada por via judicial ou por decreto, mas de toda a forma é totalmente equivocada. É censura. O prefeito governa para uma cidade inteira, e não para uma parcela da população que compactua das crenças dele.
Cristina Costa, professora de Comunicação e Cultura da ECA-USP e especialista em censura, classifica o caso como um ato contra a liberdade de expressão:
— Uma professora pode proibir palavrão dentro da sala de aula, porque ela é a autoridade dentro daquele circuito. Já a censura normalmente tem caráter político e parte de uma autoridade usando seu poder para inibir a livre circulação de um produto cultural e artístico.
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