29/03/2024 - Edição 540

Brasil

O MST começa a era Bolsonaro sob fogo cruzado

Publicado em 15/11/2018 12:00 -

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Em 17 de abril de 1996, o assassinato de 19 pessoas em Eldorado do Carajás, no sul do Pará, marcou a trajetória do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. De lá para cá, o grupo ganhou corpo, tornou-se uma das referências nacionais em agricultura orgânica, criou escolas e até universidade — e agora, na transição para o governo Jair Bolsonaro, se vê novamente às voltas com a pressão governamental e ameaças de uso da força.

É o que se viu na entrevista publicada nesta segunda-feira pelo Estadão com Eduardo Bolsonaro, o deputado federal mais votado na última eleição e filho do presidente eleito. Palavras textuais: “O que ocorre hoje é que grupos como o MST por vezes utilizam o seu poder criminoso para invadir terras, incendiar tratores para obrigar o fazendeiro a vender suas terras a um preço abaixo do mercado. Eles impõem o terror para ganhar um benefício por outro lado. É isso que a gente visa combater. Isso aí é terrorismo.”

Não há registro em nenhum site de notícias sério sobre o MST queimando tratores, mas as bravatas da família Bolsonaro contra o grupo não são novidade. Ainda em campanha, o então candidato do PSL esteve em Eldorado do Carajás e soltou o verbo para defender os dois policiais presos pelo massacre. “Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer”, disse o ex-capitão, segundo registro do jornal O Globo.

A ação em Eldorado do Carajás nem sequer foi tomada contra uma ocupação de terras. A história começa meses antes, em 5 de novembro de 1995, quando militantes do MST entraram na fazenda Macaxeira, considerada ociosa e improdutiva. Pediam reforma agrária na área, de mais de 40 mil hectares. O acampamento já tinha mais de 4 mil moradores em abril de 1996, e os militantes decidiram pressionar o governo com uma marcha até Belém, a capital paraense, a cerca de 900km de distância, pela rodovia BR-155.

No dia 16 de abril, a marcha bloqueou a rodovia, e o então governador Almir Gabriel (PSDB) ordenou à polícia que liberasse a área “como fosse necessário”. Na madrugada do dia 17, os mais de 150 policiais, sob o comando do coronel Mário Pantoja e do major José Maria Oliveira, iniciaram a ação que culminou nas 19 mortes. Ao contrário do que diz o hoje presidente eleito, pelo menos 10 dos mortos foram mortos à queima-roupa, com tiros de curta distância pelas costas ou na cabeça, o que indica que as vítimas não ofereceram resistência.

O caso chocou o Brasil e ganhou destaque mundial na imprensa. O então presidente Fernando Henrique Cardoso colocou o governo federal para pressionar o andamento das investigações e garantir que não houvesse corporativismo local. Mesmo assim, o primeiro julgamento só foi realizado três anos depois, em 1999 — e todos os policiais foram absolvidos, já que, segundo o júri, era impossível precisar quem tinha dado os tiros. Em novo julgamento, foram condenados apenas Pantoja e Oliveira, a respectivamente 228 e 158 anos de prisão. Após uma série de recursos e protelações, eles foram finalmente presos em 2012. A fazenda Macaxeira foi desapropriada e desde 1997 sedia o acampamento 17 de Abril.

Naquela altura, já tinha sido colada nos sem-terra a pecha de “baderneiros”. Nomes como o de João Pedro Stedile, o ideólogo do movimento, e José Rainha Júnior, então o líder das ocupações no interior de São Paulo, eram quase um palavrão na boca de políticos conservadores, e a “borrachada” era considerado o único método possível de lidar com eles.

Após a repercussão internacional do massacre, essa visão apocalíptica do MST teve um refluxo na mídia. Os sem-terra foram retratados na novela global O Rei do Gado, que começou exatos dois meses após a execução, com direito a apoio do senador Roberto Caxias (vivido por Carlos Vereza) e romance com final feliz entre a militante Luana (Patricia Pillar) e o latifundiário Bruno Mezenga (Antônio Fagundes). Aos poucos, o grupo passou a ser encarado como um movimento social que fazia uma reivindicação justa, embora eventualmente passasse do ponto, como em 2001, quando um grupo ocupou a fazenda de filhos do presidente Fernando Henrique Cardoso em Buritis (MG).

Com a chegada de Lula ao poder, após as eleições de 2002, o MST se viu numa encruzilhada: continuar protestando ou esperar mais pacificamente pela reforma agrária, agora com um aliado histórico no poder? O ritmo de ocupações e assentamentos se manteve, e o movimento se modernizou. Criou em 2005 a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), que oferece cursos de produção agrícola, comércio e gestão de atividades. Implantou escolas para as crianças nos assentamentos, fez parcerias com universidades, espalhou pelo país técnicas de cultivo orgânico e viu suas feiras de produtos virarem sucesso de público e até de crítica.

Nem por isso a tensão no campo se reduziu a zero. No gigante interior do Pará, outros dois casos ficaram famosos: em 2005, a freira norte-americana Dorothy Stang foi assassinada em Anapu; em maio de 2017, dez trabalhadores foram mortos no massacre de Pau D’Arco, em Redenção, no maior massacre coletivo desde Eldorado do Carajás. Ocupações e conflitos aconteceram também em outros estados, e vários candidatos ao redor do país tentaram, na última eleição embarcar na onda conservadora tentando criminalizar os movimentos sociais.

Na semana passada, um juiz ordenou a desocupação do terreno de uma usina de cana abandonada em Campo do Meio, no sul de Minas. O MST diz que o local, hoje ocupado pelo Quilombo Campo Grande, está abandonado há quase 20 anos e que o despejo das 450 famílias vai acabar com 2 mil hectares de produção agrícola. O movimento tenta reverter a decisão na Justiça e promete resistir — o prazo para saída vence nesta quinta-feira, dia 15. Enquanto isso, o novo governo fala enquadrar os sem-terra como “terroristas”. Tempos bicudos parecem despontar no horizonte rural do Brasil.


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