28/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Ele não porque eu sou policial

Publicado em 17/10/2018 12:00 -

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Encontrei uma amiga com a qual estudei durante a sétima série há 15 anos. Adicionei-a ao facebook, fucei um pouco no perfil dela e começamos a conversar. Depois das típicas falas de quem não conversa há tanto tempo, começamos a falar da nossa atual vida.

Ela sempre foi de fazer planos, de ter tudo calculado. Ela desejava ser farmacêutica, depois se casar e ter um neném. E para a minha surpresa, ela havia realizado todos esses sonhos. Depois de o assunto ser a vida dela o assunto virou a minha. Disse que era um policial militar. A resposta dela me surpreendeu.

“Nossa! Você também alcançou o seu sonho!”

Meu sonho? Eu nem me lembrava disso. Que um dia ser policial foi um sonho, mas ela tinha razão. Esforçando-me muito eu consegui me lembrar. Eu sonhava em ser policial desde criança, um policial militar.

Por quê? Por que tinha esse sonho? Mais algumas horas de reflexão para me lembrar de tudo.

Desde pequeno eu via injustiças. Meninos mais fortes maltratarem meninos mais fracos; e eu não era dos mais fortes. Claro, aquilo tudo era coisa de criança. Às vezes brincadeiras, mas eu percebia que aquilo fazia alguém sofrer. Eu queria impedir aquilo com todas as minhas forças, mas eu era fraco.

Meu desejo de equilibrar as coisas me fez querer ser forte, querer ser policial. Desejos de criança, num mundo de criança.

Entrei na polícia para isso: para diminuir o sofrimento das pessoas.

Bobo, né?

Eu queria ser um super-herói, salvar pessoas, lutar contra o mal.

Fui crescendo, muita coisa mudou. Com 17 anos eu não sabia o que fazer da vida. Então entrei na polícia. Uma entrada nada romântica, mas a paixão voltou.

Acho que aquele fogo de criança reacendeu e eu me dediquei o máximo que pude. Não só para absorver a técnica, mas também para absorver a cultura. Se quiser andar com os lobos, seja como os lobos.

Lá ouvi pela primeira vez que não houve ditadura no Brasil, que foi tudo para nos salvar do comunismo. O estudo não era muito valorizado, as provas eram pura decoreba, inclusive a prova de um ano era idêntica a do ano anterior em diversas matérias. Bastava decorar a sequência de respostas para passar.

Também aprendi que mulheres na polícia não servem para nada. Só querem se aproveitar e usar seu charme para conseguir vantagens com os chefes.

Também aprendi que oficial de escritório é Mané, Policial de verdade vai para a rua, trocar tiros, prender ladrão. Policial de verdade está na rua para matar ou morrer.

Aprendi que lá fora é a guerra. Que bandidos querem te matar a todo o momento e que é melhor matá-los antes.

Aprendi que o judiciário nos persegue. Ficam investigando os policiais que trabalham de verdade. Aqueles que trocam tiros, que apreendem drogas, em vez de investigarem bandidos.

Aprendi que para ser um policial reconhecido tem de ter homicídio na ficha. Os mais admirados da minha época chegavam a ter 40 homicídios. Lembro-me de ver um deles passar por nós alunos. Todos pararam para olhar, nos cutucávamos e nos perguntávamos: Qual de nós será igual a ele? Quem será o primeiro a trocar tiros? A matar alguém?

Mas por que matar alguém? Para salvar alguém. Aprendi que o mundo era dividido entre bonzinhos e mauzinhos. Comete crime quem quer. Se quisesse, tinha emprego. E como vou responder ao criminoso? Com flores? Tinha de matar. Matar quem tentasse me matar.

Uma lição valiosa que aprendi: só usa droga quem quer. E quem usa droga financia o crime. São esses cidadãos que causam o caos no mundo. Se não fossem por eles, não tinha arma na rua, não tinha tanto crime. A droga é a culpada de tudo. Por isso precisamos de uma guerra às drogas. Vamos prender drogas até elas acabarem ou ficarem tão caras que ninguém mais vai comprar.

Aprendi que esse negócio de direitos humanos é uma coisa para defender bandidos. Sempre tem um infiltrado de facção criminosa que usa os direitos humanos para prejudicar os policiais que estão dando as suas vidas para o bem da sociedade.

Aprendi que militar não pode sorrir. O termo usado era: fecha a cara. Militar é preparado para a missão! Não pergunte, não questione, apenas cumpra. É sim, senhor ou não, senhor. Nem mais, nem menos.

Aprendi que as regras e leis são importantes, mas é mais importante ter moral com o chefe. Se for para fazer uma moral com o chefe, pode até descumprir uma regra ou lei.

Aprendi que ninguém aprende na conversa, ou com explicação. Só se aprende com punição. Errou? Punido. Uma cadeia ensina tudo. Pena que meus colegas mais punidos estavam cada vez menos se importando com as regras, mas ninguém percebia esse fenômeno. A estratégia era sempre a mesma: punir.

Aprendi que não adianta prender, pois a justiça solta. Ouvi diversas vezes histórias de que policiais prendiam e a justiça soltava. Que os policiais já tinham prendido umas cinco vezes a mesma pessoa, que só tinha um jeito de parar aqueles criminosos (você deve imaginar qual).

Depois dessas e outras importantes lições eu me formei. Animado demais para salvar a sociedade. Pronto para enfrentar qualquer desafio.

Comecei meu trabalho nas ruas. Eu queria prender criminosos, queria participar de confrontos, queria fazer a diferença. Queria ser um bom policial. E onde geralmente dava confronto armado? Nas favelas. Era nelas que eu vivia. Vivia procurando ser o herói para alguém que estaria sofrendo por conta de um crime.

Foi nesse período que eu tive a primeira sensação estranha. Eu andei por todas as favelas que pude, nas cidades mais perigosas, nos bairros mais perigoso, e nada de confronto. Tudo bem, confronto não é algo que aparece quando a gente quer, mas tinham me dito que traficantes queriam matar policiais, e eu andei em todas as bocas de trafico possíveis e nada. Aquilo era estranho porque meus cálculos não batiam. Eu não conseguiria chegar aos 40 homicídios e ser reconhecido naquele ritmo. Se os melhores tinham 40 homicídios em 10 anos de serviço, eu teria de ter, pelo menos, 1 confronto a cada 3 meses. As coisas estavam estranhas. Traficantes não queriam me matar e confrontos não eram tão abundantes. Será que mentiram para mim?

Tomei uma decisão em nome da sociedade. Se era preciso ir além para ser um grande policial, para salvar o meu povo, então eu faria. Decidi começar a andar com os policiais reconhecidos, os policiais verdadeiramente operacionais.

Andando com os policiais operacionais a coisa me pareceu ainda mais estranha. A forma que eles narravam os confrontos não parecia um confronto. Alguns deles, inclusive, tinham medo de confrontos armados. Eu estava ficando confuso. O que me mantinha no foco era a ideia de que eles estavam acabando com o mal. Eles estavam confrontando, ou seja lá o que estivessem fazendo, pessoas más. Afinal, existem pessoas boas e más.

Eu sempre pensei que estupradores eram aquelas caras tipo o maníaco do parque. Um sujeito bronco, mau por natureza, que sentia prazer no sofrimento da vítima. Mas todos os estupros que atendi, praticamente, eram casos em que familiares que abusavam de alguma criança ou adolescente. E a família, muitas vezes, escondia o autor. Talvez o sujeito mau não andasse com uma placa por aí, talvez a gente não pudesse ver pelos olhos. Talvez todos nós possamos fazer maldades, às vezes pensando que estamos fazendo o que é certo.

Com o tempo eu ganhei a confiança dos policiais e aí começaram as revelações sobre a corrupção. Algumas bocas de tráfico não eram diligenciadas, pois algum policial ganhava dinheiro ali, e muitas vezes eram aqueles policiais mais bem vistos. Eu questionei o porquê e tive como resposta que aquele dinheiro era dinheiro de tráfico, acabaria em mãos corruptas mesmo e, por isso, os policiais pegavam para eles. Não era roubo, eles só estavam tirando de circulação mesmo. Afastei-me.

Perguntei por que ninguém denunciava esses policiais? E descobri que se alguém fizer isso, morre. Morre o policial e a família. Em alguns casos só abusam sexualmente da esposa, do policial e da família. Queria muito lutar contra esse tipo de corrupção, mas não sentia que tinha poder para isso. Até tentei, mas não era capaz. Primeira vez que descobri que realmente existiam milícias.

Comecei a abandonar a operacionalidade pura e partir para a estratégia. Dizia para meus chefes quais seriam os pontos de patrulhamento, dizia quais os locais estavam mais carentes e o que um policial precisava saber e treinar. Infelizmente, descobri que segurança pública não é prioridade para todo policial, mas promoção é prioridade para uma grande parte. Ações desastrosas, como operações caríssimas que somente apareciam, mas não tinham resultado nenhum, eram e ainda são a moda. Cada um quer erguer o próprio nome. Agora temos uma nova moda: corridas. Acreditem em mim e confiram a nova tendência.

Descobri que o traficante da favela é um fantoche na mão de um traficante rico, que sequer anda pela favela. Nós prendíamos o pobre, abordávamos todos com a mesma característica (pobre, morando na favela, negro). A abordagem já era quase uma acusação. Mas abordar um carro de luxo já causava um nervoso nos policiais. E se o cara questiona a abordagem? E se ele tem advogado? E se ele conhece algum político? A favela era mais segura.

Por que eu não encontrava muitos traficantes armados? E por que, quando encontrava um, ele não atirava em mim? E por que alguns traficantes apareciam mortos e outros não? O que estava acontecendo?

O meu mundo caiu quando eu percebi que aprendi um monte de mentiras. Mentiras que circulam na sua televisão, no seu cotidiano, na sua cultura. Traficantes, normalmente, não tem interesse em matar policiais. Afinal, o policial não incomoda em nada o traficante. A apreensão de drogas já é contabilizada para o tráfico, é uma perda esperada. Traficantes precisam matar pessoas que ficam devendo, já que eles não têm código de defesa do consumidor. Eles também precisam matar outros traficantes, já que eles não pagam impostos e a venda é muito lucrativa, logo, como não há como registrar um ponto de venda, você ganha ele na bala. O policial só incomodaria em dois casos: quando começa a matar traficantes ou quando começa a pegar dinheiro de traficantes. Triste foi descobrir que alguns traficantes morriam porque não pagavam policiais.

Mais triste ainda foi descobrir que, de tanto morrerem, os traficantes mudaram de estratégia. Eles não esperavam mais a polícia matar, eles começaram a matar os policiais. Por causa da ganância de alguns policiais, milhares de outros perderam suas vidas. Por causa da ganância de policiais o tráfico tomou conta. E aí, redescobrimos que quem mora na favela também é humano. Descobrimos que tem favela que prefere o traficante, pois ele dá comida, saúde, educação e segurança. Tudo que o estado e eu, policial, deveríamos dar. E qual a resposta que Bolsonaro sugere? Mais mortes.

Não vai adiantar. Quanto mais traficantes morrerem, mais policiais vão morrer, mais gente vai perder filhos com balas perdidas, mais crianças entrarão para o tráfico. Chega de mentir.

Um assalto, um roubo, um furto, um homicídio ferem os direitos humanos. Depois de me formar eu continuei a estudar, sempre gostei. Fui ler, depois de formado, as convenções internacionais de direitos humanos e fui descobrir o que era aquilo que me diziam que “defendia bandidos”. Li uma das coisas mais lindas. Se os direitos humanos fossem cumpridos, não teríamos roubos, mortes, tanta violência. Por isso não voto em Bolsonaro, pois ele não quer fazer valer os direitos humanos, ele quer restringi-los. O que significa mais mortes, mais violência, mais sofrimento.

Bolsonaro diz que não há excludente de ilicitude e que policiais sofrem por causa da justiça, como eu também aprendi, mas isso é mentira. Primeiro porque existem excludentes de ilicitude no código penal, ou seja, se um policial matar alguém para se proteger ou proteger terceiros ele será inocentado. Essa tentativa de diminuir a investigação em cima de policiais que participaram de confrontos só ajuda o policial corrupto e causa a morte do policial correto.

Em quase 10 anos de polícia, eu nunca vi um policial inocente ser condenado, mas já vi alguns casos estranhos gerarem absolvição. A ideia de um judiciário que persegue o policial é falsa. E ela não e disseminada à toa, tem muito policial que precisa de investigação frouxa para continuar corrompendo.

A droga deixou de ser nossa inimiga e fizemos do usuário o nosso alvo. A polícia gasta uma parte enorme do seu efetivo caçando drogas e traficantes, tempo que poderia ser gasto prevenindo assaltos, estupros, furtos, etc. Estamos com o foco errado. Eu não uso nenhuma droga, nem mesmo álcool, mas tem gente que gosta. Eu não sei por que as pessoas usam drogas, mas elas usam, e isso não significa que cometerão crimes. Nem todo usuário de álcool bate na esposa. Precisamos mudar o foco para a sociedade e abandonar esse apreço ao dinheiro e esse ódio à droga e ao drogado.

Aprendi muitos nos últimos anos. Tornei-me um policial que luta pelo que acredita. Acabei sendo odiado por alguns, mas paciência. Eu entendi, eu vi, eu estudei. Minha conclusão é: o caminho da violência só gerará mais violência. As propostas de Bolsonaro para a segurança nos transformarão em uma nação caótica.

Existem pessoas más no mundo, pessoas que sentem prazer com a dor dos outros, mas elas são a esmagadora minoria. A maioria dos criminosos não tirou a vida de ninguém e nem teria coragem para fazê-lo. A maioria não teve nenhuma oportunidade de vida, não teve educação. Somente punir não é o caminho, educar é o caminho, dar chances é o caminho. Como disse, eu conheci policiais que de tanto serem punidos não ligavam mais para a punição e tinham atitudes iguais ou piores depois delas. Se, em vez de punidos sempre, eles tivessem sido educados, incentivados, certamente a postura seria outra. E não estou dizendo que um crime não deva ser punido, estou dizendo que só a punição não é o suficiente. Todo o mundo quer ser feliz. Eu já vi bons policiais serem presos porque entraram para grupos de extermínio achando que estavam fazendo o bem. Esse não é o caminho do bem. Violência só gera mais violência.

Está na hora de parar esse ciclo. Por isso é que #elenão.

Martel Alexandre del Colle – Tem 28 anos e é policial há 9 anos. É aspirante a Oficial da Polícia militar do Paraná.


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