28/03/2024 - Edição 540

Especial

A fraude como arma

Publicado em 16/10/2018 12:00 -

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Não é verdade que o candidato à Presidência da República pelo PT, Fernando Haddad, tenha criado o chamado “kit gay”. Aliás, nem mesmo existe o suposto kit inventado por Jair Bolsonaro (PSL) como ponta de lança contra o adversário. Também não é verdade que Haddad defende a legalização da pedofilia, como sugere um cartaz com uma montagem de texto e de fotografia que circula em redes sociais. Também é falso que o candidato incentiva sexo entre pais e filhos em livro acadêmico como foi insinuado por um comentário de Olavo de Carvalho no dia 11 de outubro, a partir do que o conteúdo se espalhou pelas redes sociais. Estes três exemplos fazem parte da ofensiva de Fake News que tem dominado o debate político nestas eleições, comprometendo radicalmente a democracia no país.

Nesta semana, o ministro Carlos Horbach, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ordenou a remoção de seis postagens no YouTube e no Facebook em que Bolsonaro critica o livro “Aparelho Sexual e Cia.” e diz que a obra foi distribuída a escolas públicas no período em que candidato do PT comandava o Ministério da Educação.

Nos vídeos, Bolsonaro afirma que o livro integra o programa Escola sem Homofobia e estimula as crianças a se interessarem por sexo precocemente, sendo “uma porta aberta para a pedofilia” e “uma coletânea de absurdos”. Por mais de uma vez, no entanto, o Ministério da Educação negou a aquisição dos exemplares e a implementação de tal programa.

“A difusão da informação equivocada de que o livro em questão teria sido distribuído pelo MEC gera desinformação no período eleitoral, com prejuízo ao debate político, o que recomenda a remoção dos conteúdos com tal teor”, destaca o ministro Carlos Horbach na decisão.

No pedido ao TSE, os advogados do PT chamaram os vídeos de “grave mentira” e afirmaram que o episódio ocorre desde 2016, com uma publicação no Facebook.

Mais uma mentira

Imagem, disseminada nas redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, como Facebook e WhatsApp, mostra uma criança com a boca tapada pela mão de um homem, e faz referência ao projeto de lei de número 236/2012, descrevendo-o como proposta de Haddad para a descriminalização da pedofilia no caso de relações sexuais com crianças maiores de 12 anos. Não é verdade.

O projeto Comprova verificou que o PL 236/2012 tramita no Congresso Nacional desde 2012, mas está parado desde o dia 6 de novembro de 2017. Sem qualquer relação com Haddad, a proposta estava sob a relatoria do ex-presidente e ex-senador José Sarney (MDB), mas mudou de mãos e agora está com o senador e candidato ao governo de Minas Gerais, Antonio Anastasia (PSDB).

O projeto de lei em questão, além disso, trata de uma proposta do Novo Código Penal que nada tem a ver com legalização de pedofilia —não há nem sequer o emprego da palavra “pedofilia” no texto. 

O projeto prevê, entre outras coisas, a redução de 14 anos para 12 anos no limite de idade da vítima na qualificação do crime de "estupro de vulnerável" (no qual o eventual consentimento da vítima para relação sexual não livra o réu da acusação).

A mudança no anteprojeto de lei, formulado por juristas e debatido por cerca de sete meses, se baseia no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que considera crianças aquelas pessoas que têm até 12 anos de idade incompletos.

Três pareceres, no entanto, defendem que seja mantida a idade de 14 anos, do ex-senador Pedro Taques, da ex-senadora Ana Rita e do ex-senador Vital do Rêgo. Nenhum deles chegou a ser levado à votação. O mesmo entende o STJ (Superior Tribunal de Justiça). 

Além disso, a imagem viral com informações falsa não faz parte do material de campanha distribuído pelo PT em seu site. A identidade visual da montagem falsa também não condiz com os logotipos da campanha petista nem no primeiro turno nem no segundo turno. 

O site do ex-presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva publicou um desmentido sobre o cartaz. “Quem cria leis federais são deputados federais ou senadores. O candidato do PT [Haddad] jamais exerceu qualquer cargo legislativo”, diz o texto. 

Haddad foi ministro da Educação de 2005 a 2012, nos governos petistas Lula e Dilma Rousseff; e prefeito da cidade de São Paulo de 2013 a 2016.

Um comentário, uma enxurrada de fakes

Já a informação de que Haddad incentiva sexo entre pais e filhos em livro acadêmico foi publicada no perfil oficial no Facebook do escritor Olavo de Carvalho. Posteriormente, a publicação foi apagada. 

Segundo Olavo, Haddad teria escrito na obra que era preciso derrubar “o tabu do incesto” para a implantação do socialismo. “O homem quer que os meninos comam suas mães”, escreveu Olavo na publicação retirada do ar. 

No último dia 13, Olavo escreveu: “Em sentido literal e material, não é exato o que escrevi às pressas num post que logo em seguida retirei de circulação, segundo o qual o Haddad ‘defende’ ou ‘prega’ a prática do incesto. Ele apenas subscreve integralmente o programa da ‘sociedade erótica’ pregado pela Escola de Frankfurt, o qual advoga claramente a erotização das relações entre as mães e seus filhos”, disse Olavo em novo texto

Segundo a assessoria do candidato, "Em Defesa da Democracia" traça estratégias para subverter o conservadorismo. Uma delas seria dar maior liberdade sexual aos jovens.

“Haddad se declara social-democrata pelo compromisso com uma sociedade menos desigual, afirmando frequentemente seu compromisso com a democracia e o repúdio ao autoritarismo”, diz.

A campanha do candidato entrou com uma representação formal junto ao TSE contra o Olavo de Carvalho pedindo direito de resposta. Segundo o documento a publicação do filósofo informa, de forma inverídica e difamatória, que Fernando Haddad, através do livro “Desorganizando o Consenso” estaria defendendo o incesto.

Desinformação deliberada

O relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Edison Lanza, disse que nas campanhas políticas desenvolvidas no Brasil entre diferentes candidatos à Presidência, aconteceram "desinformações deliberadas".

"A informação que temos é que no Brasil houve muito movimento de desinformação deliberada, alguns com formatos jornalísticos falsos e outras com formatos mais difíceis de classificar como 'memes', notícias em formatos simplistas e outros tipos", expressou.

Lanza fez estas declarações durante a conferência internacional "Desinformação na era digital e seu impacto na liberdade de expressão e os processos eleitorais da região" que aconteceu em Montevidéu, capital do Uruguai.

Nesse sentido, ele afirmou que as "fake news" ou "notícias falsas" é um fenômeno "muito novo", com poucos anos de descoberta, por isso acreditar ser "é difícil" avaliar o impacto que elas têm na sociedade.

"No Brasil, o fenômeno surgiu com muita força. Algumas dessas informações, são notícias que a imprensa descobriu, desmascarando as equipes de campanha. Outras, as próprias plataformas indicaram e começaram a tomar medidas", afirmou.

"Quando uma decisão pode ser influenciada por um fluxo de informações falsas sobre um candidato ou partido e, acima de tudo, com as ferramentas tecnológicas que hoje permitem a viralização e uma espécie de tomar algumas populações como alvo destas campanhas é um fenômeno muito perigoso", disse.

Alguns dos pontos que a CIDH recomenda para evitar este tipo de informações são "sistemas efetivos" de autorregulação e prestação de contas que jornalistas e veículos de imprensa devem colocar em prática.

Também se deve atuar em função da retificação e direito de resposta diante das informações incorretas assim como oferecer uma "cobertura crítica" da desinformação, propaganda e notícias falsas.

A CIDH também recomenda a capacitação dos jornalistas em tecnologia da informação e que se promova o jornalismo investigativo.

Nesse contexto, Lanza disse que a América Latina passa por um "momento muito complicado", quanto ao respeito à liberdade de expressão em alguns países como Honduras, Guatemala, México, Nicarágua e Venezuela, onde casos de repressão e prisão de jornalistas foram registrados nos últimos anos.

Sem noção da realidade

A desinformação como arma política nestas eleições encontra eco no fato de o Brasil ser o segundo país o mundo em que as pessoas mais têm a percepção equivocada sobre a realidade. Segundo pesquisa realizada em 38 nações para avaliar o conhecimento geral e a interpretação que as pessoas fazem sobre o país em que vivem, os brasileiros só ficaram à frente dos sul-africanos.

A informação faz parte da pesquisa "Os Perigos da Percepção", realizada pelo instituto Ipsos Mori. O estudo apresentou aos entrevistados perguntas sobre a realidade de seus países e em seguida comparou a percepção das pessoas com dados oficiais.

O resultado indica que, por todo o mundo, há pouca familiaridade com temas de segurança, imigração, saúde, religião e mesmo tecnologia. Os países que lideram o chamado Índice de Percepção Equivocada são África do Sul, Brasil, Filipinas, Peru e Índia.

"Em todos os 38 países analisados, cada população erra muito em sua percepção. Temos percepção mais equivocada em relação ao que é amplamente discutido pela mídia, como mortes por terrorismo, taxas de homicídios, imigração e gravidez de adolescentes", disse o diretor de pesquisas do Ipsos Mori, Bobby Duffy.

Em escala global, apenas 7% das pessoas acham que a taxa de homicídios em seus países é menor do que a registrada no ano 2000, por mais que a maioria dos países tenha reduzido a quantidade de mortes desse tipo e apesar do fato de que o total de assassinatos caiu 29% nos locais pesquisados.

No Brasil, 76% dos entrevistados disseram achar que a taxa de homicídios é mais alta hoje do que era no ano 2000, por mais que o Ipsos indique que a taxa atual seja a mesma daquele ano.

De forma semelhante, apenas 19% dos entrevistados de forma global disseram achar que o número de mortes por ataques terroristas foi menor nos últimos 15 anos do que nos 15 anos anteriores, por mais que esta rubrica também tenha registrado queda.

Internacionalmente, as pessoas superestimam a quantidade de imigrantes que estão presos em cada um dos países. A percepção média é de que 28% da população carcerária é formada por imigrantes, quando o número real nos países em que a pesquisa foi feita é de 15%.

Além de tratar de dados sobre segurança, a pesquisa também testou a percepção internacional a respeito de alguns comportamentos.

O Brasil é o país em que a população tem a percepção mais errada a respeito da gravidez de adolescentes. Enquanto os entrevistados em média acham que 48% das meninas entre 15 e 19 anos dão à luz, o dado real é de 6,7%.

Só faltou mensurar nossa crença na terra plana, na cegonha e no ET Bilú.

TSE esboça reação tardia

Apesar da onda de fakes que domina o processo eleitoral, só agora o TSE esboçou uma reação. A ministra Rosa Weber se reuniu na quarta-feira (17) com representantes das candidaturas de Haddad e Bolsonaro para discutir a difusão massiva de notícias falsas e a onda de violência durante as eleições. O tribunal vem colocando preocupações com a disseminação de conteúdos colocando em dúvida o sistema de votação e apuração nestas eleições. Participaram do encontro também os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.

Segundo representantes das candidaturas, que falaram a jornalistas ao fim do encontro, os ministros do TSE mostraram preocupação com os conteúdos enganosos e casos de agressão. Rosa Weber teria feito um apelo para que a campanha ocorra em clima de paz e para que os candidatos incentivem apoiadores a fazer uma campanha pacífica.

Sobre as notícias falsas, o advogado da candidatura de Jair Bolsonaro, Tiago Ayres, disse que o tema preocupa o político e sua campanha, que também estariam sendo alvos de mensagens deste tipo. Ele citou como exemplo as mensagens atribuindo ao deputado voto contra a Lei Brasileira de Inclusão, suspensas pelo TSE após questionamento da candidatura.

O coordenador da campanha de Fernando Haddad, Emídio Souza, informou que os representantes da candidatura pediram providências do TSE e de órgãos como a Polícia Federal em relação à disseminação de notícias falsas sobre o candidato do PT e da onda de violência que atribuiu aos apoiadores de Jair Bolsonaro.

“A disseminação de fake news, desta forma, deforma a democracia, altera o resultado eleitoral. Não é possível que a Justiça assista impassível tamanha agressão à democracia”, pontuou o coordenador. Sobre os atos de violência, Souza informou que solicitou um pronunciamento da presidente do TSE em defesa do bom senso. “Não é possível tamanha agressividade nesta campanha”. Não houve resposta sobre o pleito, segundo ele.

A disseminação de notícias falsas vem marcando as eleições deste ano. A missão internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA) manifestou preocupação com o fenômeno da desinformação durante o 1º turno.

WhatsApp

A rede social WhatsApp tem sido o foco de maior preocupação. Estudo divulgado nesta semana por professores da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrantes da Agência Lupa que acompanhou 347 grupos na plataforma encontrou entre as imagens mais compartilhadas um índice de apenas 8% de caráter verdadeiro.

Também nesta semana, o conselho consultivo do TSE para notícias falsas realizou reunião à distância com representantes da plataforma de troca de mensagens WhatsApp. O objetivo foi discutir formas de garantir o alcance de respostas diante da divulgação de notícias falsas dentro da rede social.

A videoconferência foi uma providência decidida em reunião realizada na semana passada. Integrantes do colegiado manifestaram receios em relação à disseminação de notícias falsas na plataforma, especialmente mensagens e vídeos colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral e apontando supostas fraudes nas urnas.

Uma das preocupações manifestadas por integrantes do órgão após o encontro foi como encontrar meios para garantir que desmentidos e direitos de resposta alcançassem no WhatsApp usuários atingidos pelas mensagens iniciais, objetivo que é conseguido em redes como Facebook e Twitter.

Segundo o vice-procurador eleitoral, Humberto Jacques de Medeiros, o WhatsApp se propôs a disponibilizar ferramentas ao TSE já adotadas por agências de checagem de conteúdos enganosos e fabricados. Mas o vice-procurador não detalhou que sistemas poderão ser aplicados e qual a serventia deles.

De acordo com Jacques de Medeiros, os representantes da plataforma relataram encontrar “dificuldades” para aplicar a metodologia de outras redes sociais, como mecanismos de checagem de fatos (como no Facebook e no Google) e possibilidades de veiculação de direito de resposta aos mesmos usuários alcançado pelas mensagens originais consideradas falsas. O WhatsApp estaria “aquém disso”, nas palavras do procurador.

Segundo o Datafolha, os eleitores de Bolsonaro são os que mais distribuem conteúdo pela internet (40%, ante 22% dos eleitores petistas). Na semana passada, Haddad propôs ao adversário uma carta de compromisso contra a difamação na internet, mas seu adversário se recusou a assinar e ainda o chamou de “canalha”.

A verdade é que Bolsonaro tem vencido a batalha digital, que conta com informações verdadeiras, e também com muita mentira. Na semana passada, Steve Bannon, estrategista político de Donald Trump, citou o Brasil como parte de um movimento global que coordena para levar o populismo de direita ao poder. Sua estratégia é baseada na desinformação e nas Fake News. Bannon se encontrou com Eduardo Bolsonaro, o filho do candidato, em agosto. Neste contexto, a Justiça Eleitoral não só tarda, como também falha.

Onda mentirosa

A onda de Fake News contra Haddad elevou a rejeição do candidato do PT à Presidência a um patamar superior ao do seu adversário, Bolsonaro. Segundo a primeira pesquisa de segundo turno do Ibope, 47% dos eleitores rejeitariam Haddad. E 35% disseram que não votariam em Bolsonaro de jeito nenhum.

No dia 6 de outubro, véspera do primeiro turno, o Ibope mostrou que 43% dos eleitores afirmaram que não votariam em Bolsonaro de jeito nenhum. A taxa de Haddad era de 36% _ 7 pontos percentuais em benefício do petista. No levantamento divulgado hoje, houve uma inversão de 12 pontos a favor de Bolsonaro. A onda de fakes explica isso.

Além dos ataques associando o PT à corrupção, Haddad tem sofrido acusações de ordem pessoal que misturam preconceito, desinformação e falsidade sobre sexualidade, aborto, drogas e patrimônio.

Uma das maiores democracias ocidentais, o Brasil enfrenta nestas eleições uma onda de notícias falsas que tende a fazer o escândalo Cambridge Analytica virar fichinha  -descoberta de manipulação de empresa inglesa no Facebook para ajudar Donald Trump e outros mandatários a chegar ao poder.

Rosa Weber, deveria vir a público responder à evidência de uma avalanche de Fake News na campanha eleitoral. Weber também deveria comentar a acusação de Bolsonaro em entrevista ao “Jornal da CBN – 2ª Edição” de que suspeita de fraude na urna eletrônica no voto para presidente. Ela ainda deveria falar a respeito de atos de violência contra eleitores de esquerda, sobretudo de ataques a mulheres.

No que se refere a Fake News, Bolsonaro é o candidato mais beneficiado pelas mentiras enquanto o TSE assiste a tudo de camarote.

A máquina de fakes

Difusão de mentiras camufladas como notícias, vídeos que tentam desmentir publicações negativas da imprensa, desconfiança das pesquisas e falsos apoios de celebridades à candidatura Bolsonaro. Assim funcionam no aplicativo de mensagens WhatsAapp uma amostra de grupos públicos de eleitores do presidenciável do PSL. Jornalistas do El país se inscreveram em três desses grupos – juntos, eles publicam mais de 1.000 mensagens ao dia. Em dois deles a presença de fake news é mais evidente e forte do que em outro, mas em todos o discurso é o de que é preciso usar a plataforma, de uso massivo em todas as faixas de renda no país e de difícil monitoramento, para combater a "grande mídia tendenciosa" e ajudar na disseminação das mensagens.

Em uma disputa francamente digital e que desafia o poder da propaganda na TV, a capilaridade da campanha de Bolsonaro no WhatsApp é umas das potências da candidatura. Há pelo menos cem grupos públicos específicos do aplicativo que apoiam o capitão reformado do Exército: 37 deles são monitorados pelo projeto Eleições Sem Fake, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Bolsonaro monopoliza os debates na maior parte dos grupos públicos. Monitoramos 272 grupos que debatem política, 37 deles só de Bolsonaro. Somos um sistema enviesado porque há mais grupos de apoiadores dele do que de outros candidatos", diz Fabrício Benevenuto, professor do departamento de Ciência da Computação da UFMG e criador do projeto pioneiro (leia mais).

No acompanhamento da reportagem ou no monitoramento dos pesquisadores da universidade, aparecem resultados semelhantes que incluem a difusão de informações falsas. Para entrar nos ambientes, basta receber um convite de algum dos participantes ou buscar o caminho pela Internet. Foi o que o EL PAÍS fez para entrar em dois grupos nos quais todos os participantes podem trocar informações. No “Brasil é Bolsonaro 17” e “Mulheres de Bem” se pode identificar uma circulação intensa de boataria criada por apoiadores voluntários –não se constatou, a princípio, a presença de militantes pagos.

Em outro grupo, chamado “Vídeos do Bolsonaro”, onde são distribuídas imagens para viralizar, são só dois administradores e ambos vivem no exterior (Estados Unidos e Portugal) – raramente aí há informações falsas. A maioria das mensagens de “Vídeos do Bolsonaro” trata de promover a candidatura do militar reformado do Exército ou exibir discursos de quem está ao seu lado, como os feitos pelo seu vice, o general Hamilton Mourão. "Além da guerra entre os partidos esta eleição será marcada pela guerra virtual. Uma guerra entre a grande mídia tendenciosa e a mídia nas redes sociais onde tem de tudo, mas com certeza é mais democrática e está se mostrando mais poderosa", diz Carlos Nacli, que mora em Portugal e afirma ter criado 50 grupos para fazer campanha.

As estratégias

De maneira geral, todos os grupos acompanhados servem para produzir respostas às notícias publicadas pela imprensa. Por exemplo, depois que, com base em documentos do Ministério das Relações Exteriores, a Folha de S. Paulo noticiou que uma das ex-mulheres de Bolsonaro relatou ter sido ameaçada por ele em 2011, todos os grupos divulgaram um vídeo em que a Ana Cristina Valle “desmente” a informação. Ela foi candidata a deputada federal pelo Rio de Janeiro e, com autorização de seu ex-marido, passou a usar o mesmo sobrenome dele.

Em resposta à reportagem da revista Veja mostrando que, no processo de separação litigiosa, Ana Cristina teria acusado Bolsonaro de furtar o cofre de um banco, ter "comportamento explosivo" e "desmedida agressividade", os apoiadores dele disseram, mais uma vez, que tudo era boato. Na sequência passaram a disseminar informações de que o candidato jamais foi investigado por esse crime e que o gerente do banco seria o responsável pelo furto do cofre. Diz trecho da mensagem: "O processo que a Veja está alardeando estava arquivado e Bolsonaro era o autor, não o réu. Foi desarquivado a pedido da Editora Abril S/A, numa clara tentativa de golpe contra a candidatura de Bolsonaro".

Em outra frente, os grupos distribuem fake news. Um dos boatos é o de que as urnas eletrônicas no Brasil já foram fraudadas – apesar de que nenhuma irregularidade tenha sido comprovada em 22 anos de uso do sistema, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral. Há ainda a falsa informação de que Manuela D’ávila (PCdoB), candidata a vice-presidente na chapa de Haddad, teria recebido diversas ligações de Adélio Bispo de Oliveira, o criminoso que esfaqueou Bolsonaro, no mesmo dia do atentado, em 6 de setembro. Há ainda questionamentos em que se tenta imputar a culpa do ataque à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) ou em adversários do político. Num deles, há uma montagem de fotos de 12 políticos seguidos da pergunta: “Quem mandou matar Bolsonaro?”. Até o momento, as investigações da Polícia Federal apontam que o agressor agiu sozinho, era um lobo solitário.

Outro boato que circulou nos grupos foi o de que uma entrevista com Adélio Bispo de Oliveira seria publicada em breve e nela o agressor diria que o atentado foi planejado pelo próprio Bolsonaro e sua equipe: ou seja, uma fake news para alertar sobre uma possível fake news futura. Algumas das mensagens diziam que a publicação ocorreria no dia 26 de setembro. Outras, no dia 5 de outubro, a dois dias do primeiro turno das eleições. Eis uma delas: “Adelio foi autorizado a dar entrevista dia 5 sexta-feira depois que acabar o horário eleitoral. Fontes confiáveis e dignas viram os textos. Ele vai dizer q foi o próprio partido de Bolsonaro que armou tudo. Vai contar todos os detalhes. Não acreditem, meus irmãos, será a última cartada nojenta, nazista dessa gentalha vermes vermelhos”.

Essas antecipações de “notícias” também criam diversas teorias da conspiração. A jornalista Joice Hasselmann, eleita deputada federal pelo PSL de São Paulo, divulgou um vídeo no qual diz que uma fonte confiável lhe disse que um órgão de imprensa teria recebido 600 milhões de reais para, nesta reta final de campanha, detonar a candidatura de Bolsonaro. Mesmo que ela não tenha apresentado nenhuma prova, a notícia se propaga como fogo em mato seco.

Além da mobilização dos voluntários, a própria campanha de Bolsonaro distribuiu ela mesma informações falsas, como a de que códigos das urnas eletrônicas foram passados à Venezuela ou mentiras a respeito da mobilização de mulheres. O candidato, porém, também tem sido alvo de manipulações. Há um áudio falso em que ele xingaria enfermeiras no hospital, por exemplo.

Apoio falso

Grupos ligados a Bolsonaro ainda disseminaram falsas declarações de apoios à candidatura do militar de extrema direita. Por exemplo, difundiram imagens de que o apresentador e empresário Silvio Santos, o treinador e ex-goleiro Rogério Ceni e a cantora Sandy estariam fazendo campanha para Bolsonaro. Algo que foi desmentido por todos eles. A mensagem falsa de Silvio dizia o seguinte: “Desde quando fundei meu próprio canal [o SBT], sempre tive como princípio a união da família brasileira. Hoje, vejo somente uma pessoa disposta a praticar o mesmo princípio na política: o sr. Jair Bolsonaro. Por isso, ele tem não só o meu apoio, mas o meu voto e os votos de todos de minha família!”. Em nota, o apresentador afirmou que não declarou apoio a ninguém e que não revela em quem votará.

Houve também uma tentativa de complementar, com mentiras, informações publicadas na imprensa. O jornalista Ricardo Noblat, da revista Veja, publicou em seu blog que um dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal pretendia se aposentar caso Bolsonaro fosse eleito. O nome desse ministro não foi revelado. A informação era de que esse ministro queria que o atual presidente, Michel Temer (MDB), indicasse seu sucessor. Não daria essa oportunidade a Bolsonaro, já que o magistrado seria obrigado a se aposentar nos próximos quatro anos, pois está próximo de completar 75 anos, data limite para o afastamento compulsório. Nesse período, apenas dois ministros chegarão a essa idade, Celso de Mello, que completa 75 anos em novembro de 2020, e Marco Aurélio Mello, em julho de 2021. Ainda assim, a rede de fake news pró-Bolsonaro atribuiu a informação a Gilmar Mendes, o polêmico ministro, de 63 anos de idade, que desperta a ira de diversas correntes políticas porque costuma conceder habeas corpus a dezenas de condenados. “Se o Gilmar Mendes se aposentar, ele será o maior cabo eleitoral do Bolsonaro”, advertiu um dos membros dos grupos pró-Bolsonaro.

Uma outra estratégia é de tentar mobilizar os bolsonarianos, como alguns deles se chamam, para criticar os opositores do candidato. Nesses grupos é comum se deparar com mensagens de pessoas pedindo para entrarem nos perfis de artistas que se declararam a favor da campanha #EleNão, contra Bolsonaro, e “descurtirem” as publicações. Dizia uma das mensagens, seguida dos links das páginas dos artistas: “Vamos dar dislike: negativar – Meta pra hoje MILHÕES DE DESLIKES vamos mostrar para ele que nossa bandeira não é vermelha”. A campanha, liderada por mulheres opositoras de Bolsonaro, realizou manifestações em todo o Brasil.

Como esses grupos são públicos é comum eles serem invadidos por militantes de partidos adversários de Bolsonaro. Por exemplo, ao menos três simpatizantes do PT entraram no grupo “Mulheres de Bem” e passaram a xingar as participantes. Enviaram imagens pornográficas, além de dezenas de fotos dos candidatos petistas. Foram mais de 500 mensagens em menos de quatro horas. Acabaram sendo expulsos do grupo. Como os membros ficaram em alerta, qualquer um que postasse uma informação que não fosse de apoio a Bolsonaro virava potencial alvo. Por exemplo, uma apoiadora perguntou se era verdadeira uma reportagem crítica sobre o economista Paulo Guedes, o possível ministro da Fazenda do militar. Em dois minutos outros participantes decretaram: “Ela tem de ser expulsa daqui!”. Ao que a mulher disse: “Calma, gente. Eu sou Bolsonaro. Só quero saber se é verdade para saber como responder”. A desconfiança que o candidato tem com relação a quase tudo parece contagiar seus seguidores.

Mídias sociais colaboraram para armadilha eleitoral

A armadilha eleitoral em que nos metemos tem muitas causas, mas está sem dúvida enraizada nos usos que fazemos das novas tecnologias.

“Ficamos tempo demais nas mídias sociais e, como mostrou pesquisa do Datafolha, estamos usando essas novas formas de comunicação para receber, para compartilhar e para discutir assuntos políticos”, afirma o professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia, Pablo Ortellado.

Essas novas tecnologias têm cumprido basicamente três funções: nos manter permanentemente indignados e assustados, nos manter engajados e nos manter alinhados.

Mídias sociais como o Facebook e o Twitter e redes de comunicação privada como o WhatsApp e o Telegram têm nos deixado indignados e assustados porque consumimos uma quantidade muito grande de informação política diariamente renovada, que não nos deixa relaxar ou pensar, colocando-nos em modo de excitação permanente, afirma.

Essas informações e notícias estão sendo produzidas por ativistas e sites noticiosos hiperpartidários que não se dedicam apenas a opinar, interpretando os fatos, nem a apurar, desvelando fatos novos. Sua tarefa principal é adequar os fatos apurados por outros para que se ajustem aos discursos mobilizadores de emoções.

Assustados e indignados, somos levados a agir. E a principal forma de ação é também de natureza comunicacional: é o compartilhamento. Por meio dele deixamos de ser pacientes das campanhas políticas e nos tornamos agentes. Precisamos alertar, precisamos advertir e precisamos tomar partido, contaminando nossos contatos com toda essa excitação, num processo de contágio mútuo. Estamos, por fim, nos tornando muito parecidos. Convocados a tomar partido, manifestamos nossa posição online, recebendo em cada ocasião, de forma quantificada, o veredito social”,reflete Ortellado.

Para o filósofo, cada vez que opinamos, que nos engajamos e tomamos partido, nosso meio social nos sanciona. E a experiência reiterada da sanção social nos empurra para as posições populares, que são as apoiadas pelos grupos politicamente organizados. As mídias sociais se transformaram, assim, em uma poderosa máquina de reforço de comportamento político.

Esses três fatores estão em interação: consumimos informações e notícias que nos assustam e nos indignam, contaminamos os demais com esses sentimentos por meio do compartilhamento e ajustamos os comportamentos uns dos outros por meio dos likes.

“Ou complementarmente: ficamos parecidos recebendo likes, nos diferenciamos com o medo das notícias políticas e difundimos tanto a nossa identidade como o nosso antagonismo por meio dos compartilhamentos”, opina.

Tecnologias favorecem líderes de perfil autoritário

Candidaturas de outsiders e de políticos de perfil autoritário são as mais favorecidas pelas comunicações digitais, e Bolsonaro é a manifestação brasileira desse fenômeno, afirma o pesquisador britânico Jamie Bartlett.

“A natureza do nosso sistema de comunicações auxilia esse estilo de líder que apela a tribos, ao autoritarismo. Não se trata de direita e esquerda, mas de insiders e outsiders”, diz Bartlett. Em sua opinião, candidatos dessas franjas entenderam melhor a dinâmica propensa à agressividade das novas mídias.

“A internet é a maior e mais abundante despensa de reclamações na história da humanidade”, escreveu Bartlett em seu recente trabalho “The People vs Tech”, obra ainda sem tradução no Brasil em que examina como a internet está minando a democracia.

Para ele, mais preocupante que os escândalos atuais de vazamento de dados é a perspectiva para o futuro das eleições, em que as informações serão usadas para transmitir mensagens individuais aos eleitores, e ninguém saberá o que foi prometido ao outro.


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