29/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Mais um capítulo da decadência

Publicado em 09/07/2014 12:00 -

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A Copa do Mundo me fez lembrar coisas insólitas, como é próprio das lembranças: "Vede –a pátria ao bretão ajoelhou-se, beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se! Eles a prostituíram!". É verso de um poeta com então 19 anos de idade, Álvares de Azevedo, escrito há 150 anos, em que pedia anistia para os revolucionários da Praieira (1848-49).

Atualmente, não temos problemas com bretões, como a Argentina. O imperialismo bretão é frio. O norte-americano, depois de se livrar do soviético, arranjou tantos líos (confusão, como dizem os chilenos) que até nos permite enfrentá-lo diplomaticamente, como no caso Snowden.

Quem é, então, nosso bretão, que nos põe de joelhos, prostituindo Estados nacionais? Seu território é um paraíso luminoso sem fronteiras; suas igrejas, as arenas que chamávamos de estádios; seu Deus, a organização. Quem será?

Como nosso futebol chegou a colonizado da Fifa?

Nos primeiros 20 anos, o "football" foi inglês e de ricos, como o squash. Nas duas décadas seguintes, os brasileiros se apaixonaram por ele. Inventaram uma maneira de jogar sem os manuais comprados em lojas – o folder com as regras, as funções de cada posição, o uniforme, a chuteira, a bola, o glossário… Ignorando os manuais, a maneira popular desordenada de levar a bola até o gol driblando (se dizia, significativamente, "comendo") foi um processo cultural autônomo, desses que brotam sem cessar da vida social.

A partir da Revolução de 1930, que pareceu virar tudo de ponta-cabeça, a profissionalização e a federalização dos clubes enquadrariam esse processo. O futebol avançaria, agora, entre duas margens, a do Estado e a do mercado, dominação e lucro. Os saudosistas da fase anterior se chamavam legião porque, como no evangelho, eram muitos –é verdade que tinham saudade do amadorismo, mas não dos campos de terra, pastagens e zonas de agrião.

O jeito brasileiro de jogar futebol foi um processo cultural autônomo, desses que brotam sem cessar da vida social.

A nova fase deixou atrás de si esplêndidas ruínas. Fausto, a Maravilha Negra, por exemplo, foi sacrificado e morreu (1939) sem dinheiro e sem glória. Por quê? Sua arte era amadora, boêmia, resistente a táticas –o majestático parece, aliás, característico da arte popular, vide a escultura clássica, o auto medieval, o cordel, o mestre-sala… O triste fim de Fausto, como o de Policarpo Quaresma, não violou a primeira lei da história: ao vencedor, as batatas.

Na fase seguinte, mais ou menos entre 1940 e 1970, sob a república populista, tornamo-nos "os melhores do mundo", "o país do futebol" etc. Populista aqui não na acepção de demagogia, mas como a fórmula de poder carismático que empurrou as massas para dentro do jogo político. Foi bom ser povo naqueles anos: poderosos e pobres confiavam medianamente uns nos outros.

Promiscuidade entre os de cima e os de baixo, mascarando a desigualdade e a violência, nossas melhores tradições. Leônidas, o Diamante Negro, foi o Getúlio Vargas do futebol.

A partir de 1970, começa a morrer o futebol "arte popular", que era da mesma natureza das esculturas de Nhô Caboclo, das alegorias de Fernando Pinto, das sofisticadas cantigas do mar de Caymmi…

O papel do técnico passou a ser o do tirano. Exerce tamanho controle emocional que os jogadores ficam intimidados, não conseguem mudar o jogo dentro de campo.

A primeira massificação do "football" no Brasil lhe dera uma nova qualidade: o drible, a finta, o suingue, o gesto de capoeira, o estilo machadiano de ir, mas não ir. Enquanto isso, a Europa renascia da guerra, a juvenilidade e o mercado feminino criaram o consumo de massa, que restabeleceu a renda média do sistema. Mercado de entretenimento –o disco, o cinema, a roupa, o esporte… É a sua lei, não pode ser violada.

Qualquer juízo de qualidade sobre o futebol que se joga hoje só faz sentido real se considerada essa história. O saudosista, ao ouvir um elogio a Neymar, comenta: "É que você não viu o Pelé!". O pai de Pelé, Dondinho, deve ter dito quando lhe elogiavam o filho: "É que você não viu o Zizinho!". Acabo de assistir à catástrofe Alemanha 7 x 1 Brasil. A saudade mata a gente.

Joel Rufino dos Santos – doutor em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é historiador e escritor.


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