28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O Doutor Amigo

Publicado em 19/09/2018 12:00 - Rodrigo Amém

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Quando os republicanos perderam a presidência para os democratas em 1977, alguma coisa mudou no posicionamento político dos protestantes e neopentecostais dos EUA. Os crentes, que até então mantinham uma posição de distanciamento da política, que era considerada "suja" e "indigna", decidiram entrar na briga pelo poder. Mais precisamente na disputa pelo Senado no Estado de Iowa em 1978. Dick Clark, o senador democrata, concorria à reeleição contra um novato republicano. Todo mundo achou que seria uma barbada. Roger Jebson, o novato, pediu ajuda aos pastores da sua congregação, que se reuniram, buscando um tema, uma causa para justificar o inédito apoio de religiosos a um candidato político. Pena de morte, desemprego, guerra foram sugeridos. Até que alguém levantou a mão e disse: "Que tal o aborto?"

Aborto era um tema interessante, porque já era altamente político. Fazia apenas cinco anos que a decisão Roe Vs Wade, no Supremo americano, tinha tornado o aborto legal em todo o país. Uma decisão que foi considerada por muitos conservadores como uma interferência do Estado nas suas crenças pessoais. Os pastores decidiram que não custava tentar.

Então, um grupo de carolas começou a panfletar folhetos do republicano em estacionamento de templos, falando sobre o tema. Resultado: Jebson venceu e o partido republicano descobriu sua nova galinha dos ovos de ouro. Em 1980, o tema do aborto foi decisivo para impedir que o presidente Jimmy Carter fosse reeleito. No seu lugar, chegou à Casa Branca o astro do cinema Ronald Reagan. Foi só a democracia se instaurar aqui abaixo do Equador que nossa direita fez questão de importar a "temática".  

Não estou dizendo com isso que todo mundo que é contra o aborto está engajado em pragmatismo político. É importante respeitar os argumentos teológicos dos verdadeiros fiéis. Controlar os direitos reprodutivos alheios é praticamente a pedra fundamental das religiões abraâmicas. Mas existe uma parcela da população que é contra o aborto por razões outras que não políticas ou sobrenaturais.

Estes dizem se tratar de uma decisão moral pela preservação da vida. Um posicionamento que até seria válido se resultasse em qualquer forma de ação afirmativa pós-parto. Mas a criança, saída do útero, está entregue à própria sorte, no que depender dos defensores dos fetos.

Programas de adoção, alimentação, moradia e assistência médica são, na melhor das hipóteses, esquecidos. Na pior, são combatidos como estorvos às contas públicas. Essa desconexão entre importância da vida antes e depois da desconexão umbilical aponta para uma motivação diferente por parte dessa parcela da população.

Até porque, a legalização do aborto não diz respeito, somente à vida do bebê, mas da gestante. O que a legalidade proporciona é assistência médica profissional para que a mãe tenha mais chances de sobreviver ao processo. Mas talvez aí esteja o pulo do gato.

A sociedade cristã dos homens de bem, vez ou outra, requer um aborto. Casos extremos, claro. Situações onde a família esteja em risco. Empregadas fecundadas pelo filho adolescente. Filhas gerando bebês de pais com o tom de pele errado. Concubinas muito jovens esperando herdeiros bastardos de vetustos senhores. Vai ter aborto, sim.

E não é bom que seja lícito, porque o que é lícito tem registro, é realizado em prédios iluminados, em clínicas bem localizadas. É uma visibilidade desinteressante para a família cristã de homens de bem. É melhor que seja… "alternativo". Se for o aborto da filhinha, pode ser feito no exterior, sob pretexto de mais uma visita à Disney. Se for da doméstica, quanto mais às escuras, melhor. Nesses casos, os riscos da clandestinidade são fatalidades, literalmente.  

Esse setor da sociedade que sempre usou o aborto como freio de mão para uma eventual miscigenação involuntária me surpreende quando defende sua proibição. Vai ver é só misancene política mesmo. São contra o aborto como são contra a corrupção e favoráveis ao "Estado Mínimo". E, no final das contas, sempre vai haver liberal pedindo boquinha em Brasília para o tio suplente, e sempre haverá pastor levando a affair à clínica do "doutor amigo".

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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