28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Hostilizados nas cidades, venezuelanos buscam abrigo em aldeias indígenas de Roraima

Publicado em 06/09/2018 12:00 -

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Centenas de migrantes que fogem do colapso econômico na Venezuela estão buscando abrigo em comunidades indígenas do lado brasileiro da fronteira.

O movimento ocorre enquanto crescem as tensões entre venezuelanos e brasileiros em cidades – que culminaram com conflitos em Pacaraima (RR) há duas semanas, quando moradores queimaram pertences de migrantes após uma tentativa de assalto atribuída a estrangeiros na véspera.

Líderes comunitários disseram que há indígenas e não indígenas entre os venezuelanos que têm chegado às aldeias, em processo intensificado nos últimos meses. A maioria dos povoados fica às margens da BR-174, que liga Boa Vista à Venezuela.

Coordenador do CIR (Conselho Indígena de Roraima), organização que representa 237 comunidades indígenas no Estado, Edinho Macuxi afirma que os venezuelanos estão dormindo nas casas dos moradores, com quem negociam os termos da estadia.

Muitas vezes, diz ele, os estrangeiros se comprometem a ajudar com os trabalhos na roça ou outras atividades durante a permanência, que costuma durar alguns meses.

Mas ele afirma que muitos moradores estão descontentes com a movimentação dos estrangeiros e com seu impacto sobre os serviços públicos. Temem, ainda, que os venezuelanos jamais deixem o território.

"Quando você tem uma comunidade de 300 pessoas e de repente tem de atender 600, a situação que já não era boa fica ainda mais complicada", afirma.

Protestos contra migração

No último sábado, um pequeno grupo de indígenas protestou na BR-174 em Pacaraima, pedindo um controle mais rígido na fronteira. Em maio, três organizações indígenas de Roraima (Sociedade de Defesa dos Índios de Roraima, Aliança de Integração e Desenvolvimento das Comunidades Indígenas de Roraima e Associação de Desenvolvimento dos Povos Indígenas Taurepangs do Estado de Roraima) se declararam a favor da proposta da governadora de Roraima, Suely Campos (PP), de fechar a fronteira temporariamente.

A posição, porém, não é unânime entre os índios do Estado – especialmente entre os que mantêm laços com indígenas venezuelanos.

Há terras indígenas em quase todos os 2.200 km do lado brasileiro da fronteira com a Venezuela. A maior delas, do povo Yanomami, tem quase a mesma extensão que Portugal.

Indígenas dos dois lados da fronteira

Deslocamentos de indígenas em regiões de fronteira são comuns desde que as linhas que dividem os países sul-americanos cruzaram os territórios desses povos. Em vários pontos do continente, fronteiras separaram etnias ou se interpuseram entre grupos que mantinham relações de aliança.

Segundo as pessoas ouvidas, os venezuelanos têm se concentrado nas terras indígenas Araçá e São Marcos, em Roraima. Os territórios somam cerca de 7 mil moradores das etnias macuxi, wapichana e taurepang.

Um dos pontos de concentração é comunidade de Três Corações, no município de Amajari.

Em ao menos quatro povoados (Sorocaima, Bananal, Samã e Boca da Mata), a maioria dos viajantes são indígenas do povo temon, que habitam o lado venezuelano da fronteira e compartilham língua e costumes com os taurepang do lado brasileiro.

"Eles relatam que a situação do outro lado está muito difícil e não têm mais dinheiro para comprar comida", diz a ativista indígena Telma Taurepang, que estima em centenas o número de venezuelanos nas aldeias.

Candidata ao Senado em Roraima pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), Telma afirma que grande parte dos visitantes jamais esteve no Brasil. Ela diz que, apesar dos laços históricos com o grupo, as comunidades estão apreensivas.

"Nós, indígenas, não temos fronteiras. Não queremos expulsar os irmãos venezuelanos, muito menos os parentes, mas deslocamentos grandes e não planejados provocam problemas", diz Telma.

Ela diz que as comunidades estão incomodadas com a situação. Muitos temem que os venezuelanos tragam doenças para as aldeias. Mais de 200 casos de sarampo foram registrados neste ano em Roraima – a maioria entre venezuelanos.

"O clima pode ficar pesado se migrarem mais, porque aí vai virar um caos na questão da saúde", diz a ativista.

Ela cobra o governo federal a repassar mais recursos para os serviços públicos e a recepção dos migrantes em Roraima, para desafogar as comunidades.

Fluxo de migrantes venezuelanos

Há duas semanas, 25 indígenas venezuelanos da etnia warao se deslocaram até o Pará, onde foram acolhidos por uma comunidade do povo munduruku, em Jacaraecanga. Nos últimos anos, conforme a crise na Venezuela se acirrou, centenas de indígenas desse grupo migraram para cidades no Norte do Brasil.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde, disse em nota que os "serviços prestados à população indígena, que vive em territórios indígenas, estão mantidos de forma rotineira".

A secretaria diz que, desde o ano passado, tem notado um aumento do fluxo migratório nos distritos sanitários Yanomami e Alto Rio Negro, ambos vizinhos da Venezuela. "O impacto mais significativo para as equipes multidisciplinares de saúde indígena é na realização do bloqueio vacinal e na intensificação da vigilância epidemiológica nesses locais, principalmente nas áreas mais próximas da fronteira", afirma o órgão.

Crime organizado

Diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Baré diz que as comunidades da região estão preocupadas com o trânsito de pessoas ligadas ao crime organizado e o aumento de roubos e furtos nas aldeias.

Segundo ele, a movimentação de estrangeiros por terras indígenas do Rio Negro aumentou no último ano. Baré diz que muitos entram por Cucuí, distrito de São Gabriel da Cachoeira (AM) na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia.

No fim de julho, o Exército apreendeu meia tonelada de maconha num barco em Santa Isabel do Rio Negro, município vizinho de São Gabriel e também na fronteira com a Venezuela. Acredita-se que a carga estivesse a caminho de Manaus.

Baré diz que a Funai (Fundação Nacional do Índio), órgão federal responsável pela proteção das terras indígenas, não está conseguindo impedir o ingresso de forasteiros.

"A insegurança é geral", diz Baré. "Nossas comunidades e cidades estão muito vulneráveis."

A fundação não se posicionou sobre a entrada de estrangeiros em terras indígenas.

O órgão disse em nota à reportagem que tem prestado apoio técnico e acompanhado o atendimento de indígenas venezuelanos no Estado do Pará, "buscando garantir direitos e o respeito às especificidades do povo Warao".

"Na região de fronteira, a atuação da Funai também mantém em funcionamento os fluxos necessários para que possa arcar com a sua missão legal de proteger e promover os direitos dos povos indígenas que encontram-se em território brasileiro", diz a fundação.


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