20/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

O vazio por dentro da farda e a politização da sociedade

Publicado em 28/08/2018 12:00 -

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Acorda cedo e levanta, veste a sua farda e junto com ela incorpora a sua identidade policial. Sai para a rua e faz – seguindo os manuais – o número de abordagens estipulado, de forma muito bem selecionada nas pessoas que se adequam ao público preferencial da sua instituição. Define quem é traficante e quem é usuário a partir das rotinas que sua farda estipula. Faz o uso “progressivo da força” per saltum se o indivíduo for jovem, negro e estiver na periferia. Talvez, em algum momento, chegue até mesmo a preencher um formulário para justificar aquele “auto de resistência”. Não conseguiu se imaginar? Você seria capaz de se imaginar agindo assim, se aceitasse o desafio. Não por que sua personalidade é policialesca, mas porque te fariam agir assim.

A Polícia Militar não é o policial militar. A instituição não se confunde com a pessoa, mas é formatadora de uma identidade policialesca à ferro e fogo. Essa é a ideia central que o conceito de policização de Zaffaroni apresenta. Desde o processo de seleção, passando pelo adestramento até a manutenção do indivíduo que passa a incorporar a instituição policial observamos formas de destruição de uma subjetividade própria para a incorporação de uma identidade vazia por dentro da farda. Contudo, é possível perceber cada vez mais que esse processo não se encerra para dentro das instituições e vêm operando uma policização da sociedade. Para entendermos melhor, vamos fazer uma regressão nessa ordem: da carreira, passando pelo treinamento e chegando até a seleção.

De trás pra frente, a manutenção do indivíduo fardado na Polícia e a sua ascensão na carreira decorrem da sua adequação à uma identidade policial que é formatada para ser técnica e servil, nunca crítica ou questionadora. Reforçando essa ideia, a militarização da instituição, as formas pouco democráticas e nada republicanas de promoção, a proibição de fazer greves que se estende a praticamente toda e qualquer manifestação crítica à corporação são meios de manter o policial enquadrado.

Igualmente, durante sua vida na carreira policial, raramente você iria se deparar com uma melhora significativa na sua qualidade de vida, sobretudo financeira. Seu salário se manteria abaixo do que o risco da sua atividade demanda, mas, antagonicamente, você assistirá cada vez mais a sua instituição receber investimentos financeiros. Como os valores serão destinados à compra de equipamentos, armamentos e veículos, você poderá servir de vitrine em algumas exibições públicas de força que se tornam cada vez mais comuns – em Shoppings, por exemplo –, sorrindo para tirar fotos. É o “reconhecimento” que você terá, pois o investimento é na indústria e instituição, não na vida e no policial. A precarização da sua função faz parte desse processo de forma intencional, sempre buscando mais e mais recursos.

No treinamento – adestramento, usando um termo próprio da militarização – você seria formatado para aceitar a violência como algo natural, muitas vezes sofrendo essa própria violência na pele como meio de docilização. O pertencimento à uma instituição autoritária e verticalizada acostuma o indivíduo à ter uma postura autoritária e verticalizada com os demais. A tecnicidade da sua atuação será o principal discurso para a robotização do indivíduo e o apagamento da sua identidade. Desde métodos rígidos de posicionamento e postura até a adoção de uma fala repleta de jargões desumanizantes você será submetido a instrumentos desse duro processo de apagamento da subjetividade do ser humano policial. QAP? QSL. Não há espaço para mais nada além da personalidade que vem junto com a farda.

A primeira etapa desse processo se inicia na seleção do policial. O concurso público não deverá atrair pessoas que estranhem a atividade policial e, por isso, as disciplinas serão de complexidade mediana e acríticas. Não coincidentemente, o público que está mais acostumado à presenciar a atividade policial é o público que está acostumado com a sua presença e atuação nas periferias e comunidades. Esse ponto é fundamental, pois, como esclarece Zaffaroni, a precariedade da atividade leva a um recrutamento nas classes mais baixas da sociedade para que sejam policiais, havendo uma divisão muito tênue entre os perfis de indivíduos que se tornam policiais com aqueles que também são mais facilmente selecionados pelos processos de vitimização e criminalização. Por isso mesmo que os processos que se seguem após a seleção precisam ser tão fortes: para apagar a identidade do indivíduo e incorporar a da farda, reduzindo ao máximo a possibilidade de autoreconhecimento dos sujeitos que abordam com os que são abordados.

Se no início desse texto você estranhou e teve dificuldades em se imaginar fardado, talvez seja por uma falta de vivência em um contexto onde polícia se faz presente e notada. Como já comentamos em outras oportunidades, nos bairros periféricos a polícia se faz notar. É impossível não notar sua chegada e a sua saída. Diferente dos demais locais onde importa mais uma sensação de segurança e do que uma presença ostensiva, que chega a incomodar.

Além dessa predileção, o que podemos observar é que a instituição policial passa a ter uma preferência por perfis cada vez mais definidos de sujeitos para vestir a farda. E eles vem se tornando abundantes em nossa sociedade. No início do mês, a Polícia Militar do Paraná conseguiu auxiliar muito no traço do perfil preferencial de agenciamento da instituição quando, em seu edital, descreveu alguns critérios que seriam utilizados para a análise do perfil psicológico do candidato ao ingresso na carreira de policial.

A “conformidade” é tomada como um elemento relevante para que o “indivíduo aceite a sociedade como ela é”. A “empatia”, embora presente formalmente, se confunde no conceito com uma generosidade e altruísmo esvaziados de sentido, não fazendo qualquer referência à capacidade de compreensão da realidade do outro. E enquanto atos de mera benevolência, é uma faculdade que pode ser utilizada quando conveniente, no lugar de uma capacidade e qualidade do indivíduo. O edital expressamente demanda uma personalidade conservadora, exigindo que seja baixo o caráter de “liberalismo”, definido enquanto a capacidade para a abertura para novos valores morais e sociais. Contudo, o termo mais problemático foi o uso do termo “Masculinidade” que é definido como “capacidade do indivíduo em não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não emocionar-se facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”.

Apesar de ser “a” Polícia Militar, esta é uma instituição que possui o gênero masculino na sua essência e matriz violenta. Ao buscar um sujeito ou formatá-lo de forma que sua personalidade compreenda a masculinidade nesses termos, a polícia está revelando, na verdade, a sua própria personalidade machista e violenta que explica porque a sua autoridade é estabelecida através do medo, e não do respeito.

O auge do processo de policização é a formatação do policial dentro do paradigma de masculinidade, apagando sua capacidade de impressionar-se com cenas violentas para naturalizar a violência praticada e sofrida. Chorar a morte de um outro policial será o máximo que se admite a um PM cuja vida estará em risco no dia seguinte ao luto, sem que isso implique questionar as razões da guerra de que participa. Dentro da atividade que mais lida com cenas de violência, exigir uma apatia do indivíduo é buscar a formatação de uma personalidade com transtornos comportamentais, chegando até mesmo a flertar com uma conduta perversa que lida bem com a ausência de culpa e passa a necessitar da violência na sua rotina.

Some-se a isso o isolamento emocional e a demanda por pessoas que “não se emocionam facilmente”, mesmo atuando diante das mais severas realidades e mazelas da sociedade. Não poderia ser diferente, pois se no lugar de pessoas que reprimem emoções ao ponto de serem incapazes de sentir algo se buscasse pessoas com controle emocional e capacidade de lidar bem com os mais diversos e complexos sentimentos que perpassam na rotina da função policial, se estaria buscando um sujeito reflexivo, incompatível com toda a destruição da identidade do sujeito e robotização almejadas – esse sujeito que sequer pode demonstrar interesses em histórias de amor.

Obviamente que nem todas as pessoas que ingressam na instituição tem totalmente a sua subjetividade apagada, mas é por isso que esclarecemos, desde o início, que a polícia não é o policial. A polícia, enquanto instituição militar, possui essa personalidade delineada. Tanto que é a personalidade que ela busca no ingresso da carreira.

O fenômeno identificado por Zaffaroni nas instituições policiais se mostra cada vez mais evidente e reforçado. Contudo, algo que aparenta ser possível de verificação é que essa mesma personalidade policialesca que se busca identificar para, após a incorporação da farda, se potencializar e apagar a subjetividade anterior, é uma personalidade cada vez mais presente em nossa sociedade. Movido por um incentivo constante da vigilância, o retorno das posturas reacionárias e a crescente violência do “cidadão de bem”, temos cada vez mais sujeitos cuja personalidade está pronta para o apagamento da subjetividade e assunção da identidade robótica de polícia. Uma personalidade que confunde empatia com generosidade e altruísmo e deixa no campo da benevolência o reconhecimento do outro. Um indivíduo que se opõe às mudanças sociais e de valores, mantendo-se como instrumento de segurança do status quo com subserviência, pois busca garantir a sua própria condição (de precariedade). Um sujeito que entende que masculinidade é a sua incapacidade de lidar com sentimentos, a naturalização da violência e o desinteresse em histórias de amor.

O aumento desses perfis que encontram respaldo cada vez maiores, inclusive em discursos de presidenciáveis (agora, ainda mais preocupante, por ser no plural), é um desafio que deve ser enfrentado com muita atenção e debate sobre as instituições e seus papéis.

PS.: após uma evidente polêmica em razão do conceito de masculinidade, a Polícia Militar do Paraná modificou o edital para prever que este seria o conceito de “enfrentamento”, como se isso fosse suficiente para alterar alguma coisa. 

Rochester Oliveira Araújo – Mestre em Direito Constitucional e Defensor Público no Estado do Espírito Santo.


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