25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Sonho e determinação se sobrepõem ao medo

Publicado em 23/08/2018 12:00 -

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Mesmo com a apreensão causada pelos conflitos entre brasileiros e venezuelanos há cinco dias, ainda há imigrantes que apostam no Brasil para fugir da crise política e econômica e melhorar de vida. Na estrada que liga Pacaraima (RR) a Boa Visita, um grupo de cinco jovens venezuelanos está há quase uma semana caminhando em direção à capital de Roraima.

Mais de 200 quilômetros separam a capital da cidade de Pacaraima. Com pouquíssimos objetos pessoais, o grupo anda apressadamente, na contramão da pista sem acostamento. O cansaço e a expressão de fome são visíveis.

O grupo contou que a dificuldade do percurso da Venezuela até o Brasil foi amenizada com caronas, doações de alimentos e alojamento oferecido por comunidades indígenas situadas ao longo do caminho.

Os jovens passaram por Pacaraima, depois dos conflitos, e disseram que não desviaram a atenção nem desistiram do objetivo de chegar a Boa Vista.  “Não podemos voltar, estamos migrando porque lá [na Venezuela] não tem nada. Aqui é a única maneira que temos de conseguir a comida para os filhos”, relatou Julio Cezar Astudillo.

Fome

 “Minha família estava passando fome. Na Venezuela se passa muita necessidade, não há trabalho e quando tem não dá para comprar um frango. Um salário mínimo lá não dá para nada”, disse Astudillo, ao lado da mulher.

Visivelmente exausta e com a voz cansada, a mulher de Astudillo, Paola Enriquez, de 19 anos, confessa que teme não conseguir chegar onde deseja. O casal deixou os três filhos na Venezuela com as avós.

Jesus Gualdron, 28 anos, contou que o mais difícil do trajeto é conseguir carona e comida.  Padeiro na Venezuela, ele disse que tem esperança de encontrar emprego no  Brasil. Segurando uma caixa vazia, o venezuelano afirmou que guarda o objeto para colocar os quitutes que pretende vender quando se instalar.

“Sempre confiamos em Deus e seguimos no propósito de chegar para conseguir um emprego e enviar comida para nossos filhos, minha esposa e nossas mães”, afirmou Gualdron.

Alternativas de trabalho e vida

Sob um calor de mais de 30 graus Celsius, em um dos abrigos de Boa Vista (RR), centenas de venezuelanos trabalham como voluntários enquanto aguardam oportunidades para mudar de vida. Com os colchões do lado de fora das barracas feitas de poliuretano, material que retém ainda mais a alta temperatura, as famílias refugiadas buscam alternativas às incertezas.

Mesmo no cenário de improviso e sem muitos atrativos, as crianças venezuelanas criam espaços para brincar e se divertir.

Montado há apenas um mês, o Abrigo Rondon, o mais novo centro de acolhida da capital de Roraima, reúne 745 venezuelanos, dos quais cerca de 100 chegaram de Pacaraima, nos últimos dias.

Alguns venezuelanos voltaram para o país vizinho, outros foram para Boa Vista onde se unem a conterrâneos – alguns abrigados e outros nas ruas em busca de uma acolhida. No Abrigo Rondon, mais da metade dos abrigados são crianças e adolescentes, além de muitas mulheres grávidas e idosos. Homens solteiros foram para encaminhados para outro abrigo.

Para acolher os recém-chegados, os próprios venezuelanos construíram barracas improvisadas. Cada unidade tem capacidade para abrigar de seis a oito pessoas. Algumas famílias dividem o espaço das pequenas casas com lençóis.

Há os que preferem as redes sob as árvores. Apesar dos traumas causados pelas dificuldades na Venezuela e os desafios que têm pela frente no Brasil, os imigrantes afirmam que estão gratos por terem um local onde podem comer, tomar banho e dormir.

Emoção

Casada e mãe de duas crianças pequenas, a vendedora de seguros Blanca Perosa, de 37 anos, emociona-se ao lembrar o que viveu nos últimos tempos e evita recordar o que enfrentou em Pacaraima, quando os venezuelanos tiveram barracas e pertences queimados por brasileiros, revoltados após um assalto.

Blanca apenas agradece por ter conseguido se salvar com a família e disse que espera se mudar em breve para outro estado do país para que seus filhos possam ter uma vida digna.

“[Espero que] sigamos adiante, que eles [os dois filhos pequenos] tenham uma boa educação, que eles possam se formar, profissionalizar-se e possam exercer sua carreira. Na Venezuela, por mais que estude ou tenha uma profissão, infelizmente, não é possível se sustentar”, afirmou Blanca.

A venezuelana conta que foi muito bem recebida no Brasil antes do conflito e que as agressões não se justificam. “Não queremos usurpar os benefícios dos brasileiros. Queremos poder contribuir para o desenvolvimento do país. Não queremos roubar nada, queremos lutar pela nossa liberdade e dignidade de ser pessoas”, acrescentou.

Desafios

Do lado de fora dos abrigos, a sensação entre muitos moradores de Boa Vista é de que o governo está privilegiando os venezuelanos em relação aos brasileiros. É comum encontrar nas ruas da capital de Roraima pessoas criticando a chegada dos venezuelanos. As expressões utilizadas para definir os imigrantes são “invasão” e “praga”, entre outras depreciativas.

Agentes sociais que trabalham na assistência aos venezuelanos também já foram hostilizados. Ricardo Rinaldi, coordenador de emergências e assistência humanitária da organização não governamental Fraternidade, que abriga venezuelanos em Boa Vista e Roraima, relata que já teve dificuldades de conseguir desconto ou doação no comércio local para os imigrantes.

“Às vezes, a gente para nosso carro e eles dizem 'vocês estão ajudando essas pessoas que não merecem ser ajudadas'”, contou Rinaldi.

Segundo os técnicos que trabalham com os imigrantes, o sentimento de animosidade é ainda maior na fronteira, onde ocorreram as agressões. “Em Pacaraima, a situação é mais crítica. A população lá tem um grau de xenofobia maior, parece. A nossa equipe já foi bem insultada por algumas pessoas”, relatou Ana Maria Moreira Bruzzi, gestora de relações institucionais da Fraternidade.

Alerta

O Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) alerta que o fluxo migratório venezuelano inspira preocupação, não só no Brasil, mas em outros países da região e reconhece os desafios e as dificuldades da população de Roraima, principalmente pelo caráter forçado da migração dos venezuelanos.

No entanto, a agência da ONU ressalta que, apesar das dificuldades, a resposta brasileira ao fluxo migratório venezuelano tem sido considerada um modelo positivo e o fenômeno da migração pode trazer benefícios e oportunidades para o Brasil.

“Experiências mostram que fluxos semelhantes podem contribuir para o crescimento econômico da região, a visibilidade internacional e um enriquecimento sociocultural. Isso pode ser verificado nos três estados [Amazonas, Roraima e Pará] que receberam refugiados nos últimos meses”, informou.

Com relação ao conflito recente de Pacaraima, o Acnur espera que os responsáveis pelas agressões físicas e verbais sejam punidos e avalia que as reações violentas são geradas por desinformação.

Investigação

O Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR) instaurou um procedimento para apurar os fatos ocorridos no último dia 18 em Pacaraima, quando moradores do município expulsaram venezuelanos de barracas e abrigos e atearam fogo a seus pertences, em um princípio de revolta contra a presença deles na cidade.

“As investigações do MPRR tiveram início após tentativa de latrocínio ocorrida na noite de sexta-feira (17), em Pacaraima, bem como da falta de ambulância no Hospital Estadual Délio de Oliveira Tupinambá para transportar a vítima R.N.O até Boa Vista, capital, para atendimento”, diz nota divulgada hoje (22) pelo Ministério Público.

Segundo a nota, notícias divulgadas nas mídias sociais diziam que o Exército Brasileiro recusou-se a levar a vítima a Boa Vista podem ter sido o estopim para que houvesse conflito entre brasileiros e venezuelanos.

“O MPRR requisitou ainda a instauração de inquérito policial para identificar e responsabilizar os envolvidos pelas práticas criminosas ocorridas nas manifestações, independentemente da nacionalidade. A polícia também deverá informar quais as medidas adotadas para garantir a segurança não só de estrangeiros, mas de toda população local”, diz o texto.

A Promotoria de Justiça da Comarca de Pacaraima, responsável pela abertura do procedimento de apuração, também oficiou ao Conselho Tutelar do município para que envie informações sobre crianças e adolescentes em situação de risco; ao hospital local, para que esclareça as circunstâncias do atendimento à vítima, e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), solicitando informações sobre a atual situação de crianças e adolescentes de pais venezuelanos.

Foram feitas ainda requisições aos órgãos competentes para que enviem dados de pessoas que sofreram algum tipo de lesão física em decorrência das manifestações.


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