29/03/2024 - Edição 540

Brasil

STF começa audiências para discutir descriminalização do aborto

Publicado em 03/08/2018 12:00 -

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Dos 53 expositores, entre pessoas físicas e organizações, que deram início na sexta (3) – e que continuam na próxima segunda-feira (6) – aos debates sobre a descriminalização do aborto no país, em uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), 33 apresentarão argumentos favoráveis à legalização do procedimento. Atualmente, no país, a interrupção da gravidez é considerada legal somente em casos de estupro, de fetos anencéfalos ou caso a gestante esteja correndo risco de vida.

As audiências são parte do processo que julga uma ação que pede a exclusão do Código Penal dos artigos (124 e 126), os quais definem como crime a interrupção da gravidez, tanto para a mulher, quanto para quem a ajuda a abortar. Para além do resultado no STF – ainda sem data para ser julgado em plenário – o debate em torno do tema deve marcar um novo momento sobre a discussão do aborto, realidade da vida privada das mulheres, mas ainda cercada de moralismo na vida pública.

O principal argumento da ação movida pela ONG Anis-Instituto de Bioética e pelo PSOL é o de que a proibição viola direitos fundamentais previstos na Constituição, como o direito à dignidade, à cidadania e à vida, levando em conta que milhares de mulheres colocam suas vidas em risco ao buscar a interrupção ilegal da gravidez.

A antropóloga e pesquisadora Debóra Diniz, da Anis, afirma que é correto o STF analisar o caso, levando em conta que o código penal é anterior a Constituição de 1988. Uma das funções da suprema corte, diz ela, é fazer a revisão constitucional de práticas legislativas que ferem os direitos fundamentais. A pena para a mulher que aborta é de um a quatro anos de reclusão.

Os grupos favoráveis à legalização do aborto a partir de serviços de saúde pública acreditam que essa é a melhor maneira de encarar a questão, por ser a “única maneira de garantir esse direito às mulheres negras e pobres que não tem dinheiro para alcançar a autonomia do corpo pela via do mercado privado.”

Intolerância e perseguição

Tão logo o STF agendou as audiências públicas, Débora passou a sofrer perseguição pela internet de grupos e indivíduos contrários ao aborto. No dia 18 de julho, o assédio contra a antropóloga saiu das redes, e um grupo – ainda não identificado – a acusou na saída de um evento. Desde então Débora teve de sair de Brasília – cidade onde vive. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios pediu sua inclusão no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do governo federal.

Débora é uma das mais respeitadas pesquisadoras sobre aborto. Dentre os estudos mais relevantes, está a Pesquisa Nacional de Aborto – PNA, publicada em 2010, que mostrou que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez pelo menos um aborto, o que representa cerca de 5 milhões de mulheres.

Segundo dados do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 500 mil mulheres recorrem ao aborto clandestino todos os anos. Um dos relatórios que irá subsidiar a decisão do STF aponta que total de tratamentos feitos pelos SUS em complicações consequentes de um aborto – como hemorragias e infecções -, 75% são de interrupções voluntárias feitas ilegalmente. Ao menos 4.455 mulheres morreram de 2000 a 2016.

“Estamos na região do mundo que mais aborta, e também na que mais tem dispositivos punitivos para criminalizar a prática. Ser o lugar que mais persegue a mulher que aborta não resolver nem a questão do aborto, e nem protegeu o sofrimento da mulher”, afirma a antropóloga.

Em pelo menos outros dois momentos o STF agiu de modo parecido, chamando especialistas da área para deliberar sobre temas sensíveis: no caso da interrupção da gravidez para fetos com anencefalia, e na discussão sobre células tronco. “Há uma linha histórica da corte para julgar esse tema, mas nunca antes tínhamos feito a pergunta de maneira clara: vamos ou não vamos mandar para a cadeira a mulher que aborta?”

Mobilização social

Os movimentos de mulheres de todo o País deverão se mobilizar no período de 2 a 8 de agosto, quando será votado no Senado argentino o projeto de legalização do aborto no país vizinho, já aprovado na Câmara dos Deputados. Em Brasília as mulheres convocam caravanas para o Festival Pela Vida das Mulheres de 2 a 6 de agosto. Elas farão um acampamento na área externa Museu Nacional Honestino Guiumarães, onde haverá debates e a transmissão por um telão da audiência pública, que será transmitida pela TV Justiça. No dia 8 elas chamam passeatas nas capitais.

Para Silvia Camurça, da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, é necessário que as mulheres abracem a causa que faz parte de suas vidas, seja por medo, por preocupação ou por terem sido vítimas de alguma violência.

“Só com expressiva maioria será possível transformar o cenário provocado pela clandestinidade. Hoje as mulheres são coibidas e reprimidas de se posicionar favoravelmente ao aborto, embora a gente saiba que assim como a maternidade, a menstruação, o sexo, é parte da vida de toda mulher minimamente saudável. É parte da vida sexual e de ter uma gravidez não desejada, até porque os métodos para se evitar falham muitas vezes.”

A posição do movimento que se concentrará em Brasília é a de que o aborto é um ato de responsabilidade da mulher. É sobre ela que se recairá a responsabilidade daquela vida em gestação. “É uma decisão ética interromper uma gravidez no seu início do que dar sequência sabendo que não haverá condições para aquela vida se desenvolver de maneira saudável depois de nascer.”

A frente surgiu em 2008 por articulação de diversas feministas depois que uma clínica ginecológica em Goiás onde se praticava o aborto espontâneo foi deflagrada pela polícia, com ampla cobertura  da imprensa. A ação expôs milhares de prontuários das mulheres; muitas foram indiciadas e presas. “Foi um marco na sanha legalista e punitivista contra as mulheres”, conta Silvia.

Oito em cada dez mulheres que abortam já têm filhos

Um dos mitos em torno do assunto é que recorrem ao aborto mulheres que engravidam fora de relacionamentos estáveis ou que ainda não têm filhos. A Pesquisa Nacional de Aborto, realizada pela Anis – Instituto de Bioética e Universidade de Brasília, porém, mostra que 78% das mulheres que interrompem voluntariamente a gestação – ou quase oito em cada dez –  já têm filhos. O mesmo estudo aponta que 65% delas são casadas ou estão em relacionamentos estáveis.

O estudo, coordenado por Débora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, mostra que mais de meio milhão de mulheres realizam aborto inseguro todos os anos, quase uma por minuto. Entre 2006 e 2015, dado mais recente, o Brasil registrou 770 óbitos por aborto no SUS (Sistema Único de Saúde).

“A mulher que faz o aborto é nossa vizinha, parente, colega de trabalho, Impossível não ter várias conhecidas que recorreram ao aborto inseguro”, aponta a doutora em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora na área de direitos reprodutivos femininos, Deborah Delage.

A pesquisadora aponta, ainda, que o debate atual sobre a descriminalização é raso e os opositores da legalização recorrem a argumentos que desconsideram o direito ao corpo como direito humano da mulher. “Existe unanimidade em entender, nos meios onde ocorrem as pesquisas, que o aborto inseguro é um risco enorme à saúde e à vida das mulheres. Afirmo que criminalizar o aborto é sentenciar mulheres à morte”.

A Pesquisa Nacional de Aborto mostra que entre as mulheres que abortam, 56% são católicas e 25% evangélicas ou protestantes. Mas se para algumas mulheres pesa a formação religiosa, para todas há o risco de serem criminalizadas.

Advogada e integrante da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), Ana Lucia Keuneucke esclarece que, de acordo com o código penal brasileiro, a pena para a mulher que provocar aborto em si mesma varia de um a três anos de prisão. “A questão do aborto inseguro é um problema de saúde pública no Brasil, com absurdo índice de mortalidade materna, despesas aos cofres públicos em decorrência tanto das mortalidades, como das complicações dos abortos inseguros no SUS”, resume.

Além das clínicas que oferecem o procedimento, muitas mulheres recorrem ao misoprostol, medicamento originalmente indicado para úlceras, usado para fins obstétricos desde a década de 1990, mas sua venda é proibida. O custo pode ser dez vezes menor que o procedimento em uma clínica.

“Ele amolece o colo do útero e é indicado para indução de parto ou abortos seguros em ambiente hospitalar, normalmente até 12 semanas de gestação”, explica o ginecologista obstetra e coordenador da Global Doctor for Choice (Rede Médica pelo Direito de Decidir), Cristião Rosas.

O médico destaca que, apesar do medo de algumas mulheres serem denunciadas, o código de ética pune o profissional que não respeitar o sigilo da paciente. “Sabemos que ocorre, porque em toda área existem maus profissionais, ou ao menos, desinformados”. Rosas salienta que o medo de recorrer ao hospital no caso de uma situação adversa após o uso de misoprostol retarda o atendimento médico e pode culminar na morte materna.

Há ainda os casos de malformações graves do feto, mas sem amparo para o aborto legal. A clandestinidade também pode ser uma saída. A advogada Ana Lucia explica que com um diagnóstico de anencefalia, ou seja, quando o feto não tem cérebro, a mulher pode se submeter ao aborto sem autorização judicial. No caso de malformação, não.

“A gestante pode entrar com uma medida cautelar, que em tese o juiz teria cinco dias para responder. Mas se o pedido é encaminhado ao Ministério Público, pode levar de 20 a 30 dias para uma decisão. Entendo isso como tortura e rompimento de vários tratados internacionais que protegem as mulheres de violências”.

Deborah Delage pondera que o maior impeditivo para a descriminalização e legalização do aborto é estrutural. “É a percepção da mulher como sujeito de menos direitos, submetida a um intenso controle corporal pela sociedade. Há também um impeditivo conjuntural: um estado sob golpe, com posições que apoiam redução de direitos sendo reforçadas”.

Ana Lucia completa que a proibição do aborto perpassa a questão de gênero, alcançando recorte racial e socioeconômico no Brasil. “A mulher que tem acesso ao aborto seguro – e que custa caro – faz o procedimento sem que tenha consequências físicas de mortalidade e complicações. Quem não tem acesso, são as mulheres que morrem: as pretas, pobres e periféricas”.

A reportagem conversou com mulheres que já eram mães e por razões distintas decidiram interromper a gravidez. Conheça suas histórias.

Claudia*: a terceira gravidez não estava nos planos

Claudia, moradora de Santo André, no ABC Paulista, interrompeu a gestação em 2017. Professora, casada e mãe de dois filhos, a terceira gravidez não estava nos planos. “Logo nos primeiros dias de atraso da menstruação confirmei e já realizei o procedimento”.

O companheiro a apoiou. A professora relata que o sentimento final foi de alívio, mas que existe grande peso psicológico pela decisão. “É importante falar isso. As pessoas que usam o argumento de que não pode descriminalizar porque as mulheres não evitariam a gravidez não pensam no impacto emocional”.

Claudia passou por um procedimento rápido, em uma clínica em São Paulo, ao custo de 3,5 mil reais, parcelado em três vezes no cartão de crédito. “Achei caro, mas é criminalizado, quem se arrisca a fazer cobra o que quiser e sei que muitas mulheres não têm esse recurso”. Após a experiência, os cuidados do casal com os métodos contraceptivos foram redobrados. “Não quero nunca mais ter que passar por isso”.

A professora, que não é religiosa, disse que nunca se imaginou passando por um aborto e que a necessidade de se submeter ao procedimento aumentou a certeza de que é um direito. “Senti na pele e fiquei mais a favor da descriminalização. Sempre encarei como medida de saúde pública. Hoje em dia, vendo os relatos de mulheres que foram forçadas a ter os filhos mesmo não querendo, por causa da criminalização ou falta de recursos, me posicionei cada vez mais a favor”.

Maria*: grávida durante preparação para vasectomia do marido

Professora e moradora do interior de São Paulo, Maria, 31, interrompeu a gestação em abril de 2018. O marido se preparava para a vasectomia quando a gravidez ocorreu.

Com dois filhos pequenos, o casal viu no aborto a única saída para aquele momento. “Moramos em uma cidade sem rede de apoio, com duas crianças que já me exigem bastante, com a casa, o trabalho. Um terceiro filho demandaria uma energia que não sei se tenho“, afirma.

O procedimento foi realizado em São Paulo por 4 mil reais. “Meu marido pagou. Sozinha, não sei se teria feito, porque teria que tomar remédio e ficar em casa, não sei se teria coragem”, relembra. “Fiz bem no começo da gestação, essa era uma questão para mim, não podia esperar muito tempo”.

Maria chegou a contar para algumas pessoas de seu convívio religioso sobre a decisão. “Não me senti julgada, mas ainda me pego pensando nas consequências dessa atitude do ponto de vista religioso.”

Alice*: “Sentimento era de alívio”

Para a técnica de informática Alice, 23, realizar o aborto em dezembro de 2017 não trouxe conflito, já que entende que esse é um direito das mulheres. “Sou feminista e acredito que a mulher tem que ter autonomia sobre seu corpo”.

Mãe de um bebê então com apenas 7 meses, a moradora de Ribeirão Pires, no ABC Paulista, recorreu a medicamentos. “Me informei com algumas pessoas e estava na minha casa quando tomei os comprimidos”, relembra.

O companheiro, de quem atualmente está separada, apoiou a decisão, mas não ficou a seu lado esperando os efeitos da medicação. Alice foi acompanhada pela irmã, enquanto sua mãe cuidava da bebê. “Senti muita dor, mas não precisei ir ao hospital, que era meu medo”.

Alice pagou 500 reais pelo medicamento. Ao final, o sentimento era de alívio. “A todo momento tinha certeza que era o que queria e me senti aliviada por ter feito. Não estava e não estou preparada para ser mãe novamente”.

Sonia*: “Meu filho era incompatível com a vida”

A jornalista Sonia, 40, moradora de Colatina, no Espírito Santo, recorreu a um aborto em 2012. Casada, ela estava na décima segunda semana da primeira gestação, planejada, quando soube que o feto apresentava diversas malformações. “Passei por muitos médicos que me asseguraram que toda aquela situação era incompatível com a vida após o nascimento”.

Ainda que a lei brasileira permita o aborto mediante autorização judicial, Sonia recorreu ao procedimento clandestino. “Estava na dependência do laudo que assegurasse essa situação e do entendimento pessoal de um juiz”.

Com o tempo passando e exames com resultados inconclusivos, a decisão foi pela interrupção. “Pesquisei e vi que poderia sofrer um aborto espontâneo a qualquer momento, ou ainda que meu filho poderia nascer e morrer logo depois. Não queria passar por tudo isso. Já estava vivendo um desgaste emocional muito grande”.

Para Sonia, se o aborto no Brasil fosse descriminalizado e legalizado, todo o sofrimento enfrentado após o diagnóstico de malformação de seu feto teria sido amenizado. “Não precisaria passar por tantos exames e possivelmente ir para uma esfera legal e ser julgada. Eu decido se quero passar pelo procedimento ou não”.

A jornalista lembra, ainda, que caso os exames e a decisão judicial demorassem, poderia ter sido obrigada a passar por um parto induzido. “Achei melhor não esperar. Sou eu, é o meu bebê, eu decido a hora que quero interromper”. Sonia engravidou novamente três meses após o procedimento e hoje é mãe de uma criança de cinco anos.

*Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar suas identidades


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