20/04/2024 - Edição 540

Mundo

O que está acontecendo na Nicarágua?

Publicado em 20/07/2018 12:00 -

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Em meio a uma onda de violência na Nicarágua, que já deixou mais de 350 mortos, cresce a pressão internacional sobre o governo do presidente Daniel Ortega, com críticas e denúncias feitas pela ONU, pela União Europeia e por uma série de países.

O Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (EACDH) afirmou que a polícia e as autoridades nicaraguenses mataram, torturaram e aprisionaram pessoas sem o devido processo criminal.

A atual onda de protestos no país centro-americano eclodiu em abril, motivada pelos planos de Ortega de reformar o sistema previdenciário do país, aumentando contribuições e reduzindo benefícios. O governo voltou atrás, mas a repressão aos manifestantes provocou protestos ainda maiores contra o presidente.

"Uma ampla gama de violações dos direitos humanos está sendo cometida, incluindo assassinatos extrajudiciais, tortura, detenções arbitrárias e negação do direito de liberdade de expressão", afirmou Rupert Colville, porta-voz do EACDH. Entre os mortos estariam ao menos 19 policiais.

"A grande maioria das violações é cometida pelo governo ou elementos armados que parecem estar trabalhando em conjunto [com o governo]", afirmou Colville à agência de notícias Reuters. De acordo com o porta-voz, a maioria dos manifestantes são pacíficos, embora alguns tenham portado armas.

O EACDH também denunciou que uma nova legislação sobre terrorismo pode ser usada para criminalizar o protesto pacífico. A Lei contra a Lavagem de Ativos, o Financiamento de Terrorismo e a Proliferação de Armas de Destruição em Massa, aprovada nesta segunda-feira pelo Parlamento nicaraguense, impõe uma pena de 15 a 20 anos de prisão para o crime de terrorismo.

"O texto é muito vago e permite uma ampla interpretação, que poderia provocar a inclusão [na definição de terrorista] de pessoas que estão simplesmente exercendo seu direito de protestar", disse Colville. "Vemos uma tendência de criminalizar defensores dos direitos humanos ou pessoas que simplesmente tenham participado de protestos."

Nesta segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, classificou de "inaceitável" a quantidade de mortos e o uso da força em meio à crise na Nicarágua, afirmando que é responsabilidade do Estado proteger os cidadãos. "O número de mortes é chocante, e há um uso letal da força por parte de entidades ligadas ao Estado", disse.

Para Guterres, "é essencial que a violência cesse imediatamente e que se revitalize o diálogo, porque somente uma solução política é aceitável".

O EACDH pediu ao governo de Ortega que divulgue dados prisionais do país e forneça informações sobre dois ativistas desaparecidos desde que foram detidos, na semana passada. Madardo Mairena e Pedro Pena foram detidos pela polícia no aeroporto de Manágua na última sexta-feira, e as autoridade não informaram familiares sobre seu paradeiro, apesar de pedidos judiciais.

Também nesta terça-feira, a chefe da diplomacia da União Europeia, Federica Mogherini, pediu que a Nicarágua ponha um fim imediato à violência, à repressão e às detenções arbitrárias, além de respeitar as liberdades fundamentais em meio à crise no país. Mogherini afirmou que escreveu ao ministro do Exterior nicaraguense, Denis Moncada, devido à "deterioração da situação no país".

No último fim de semana – quando ao menos dez pessoas morreram e 20 ficaram feridas em ataques das forças governamentais da Nicarágua em várias localidades dominadas pelos rebeldes no sul do país – uma porta-voz de Mogherini já havia se manifestado, pedindo o fim da violência e uma solução democrática.

O governo dos Estados Unidos, que vem sendo bastante crítico em relação à Ortega, defende a realização de eleições antecipadas, "livres, justas e transparentes", como saída para a crise no país centro-americano.

Em comunicado conjunto, Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai também expressaram preocupação com a situação na Nicarágua, denunciando violações de direitos humanos e liberdades fundamentais. Os países pediram o desmantelamento de grupos paramilitares e a reativação de um diálogo nacional.

No poder há 11 anos, Ortega é acusado de ordenar a repressão violenta de manifestações juntamente com a sua mulher, Rosario Murillo, que é sua vice-presidente, num regime marcado pela corrupção e pelo nepotismo. Os opositores o acusam de ser um ditador e exigem que saia ou que haja eleições antecipadas.

Em resposta, o governo acusou de exercer terrorismo, criar insegurança e agir com violência "qualquer um que se propuser a alterar pelas vias de fato" a ordem jurídica e constitucional por meio dos bloqueios de estradas, onde ocorreu "violência, tortura e sequestro".

Por isso, o governo lançou a chamada "Operação Limpeza", que consiste em remover os bloqueios com pás mecânicas, caminhões e trabalhadores do Estado, sob o resguardo das "forças combinadas".

Com pelo mais de 350 mortes e mais de 1.800 feridos em quase três meses, segundo dados de organizações humanitárias, a Nicarágua vive sua crise política mais sangrenta desde a década de 1980.

Golpistas

Na quinta-feira (19) Ortega chamou de golpistas os bispos da Conferência Episcopal e disse que eles são cúmplices de forças internas e externas que tentam derrubá-lo.

Durante um discurso diante de milhares de sandinistas numa praça de Manágua, o líder afirmou que muitos templos foram ocupados como quartéis para armazenar munições em meio à crise sociopolítica que o país atravessa desde abril.

A Conferência Episcopal, mediadora e testemunha do diálogo nacional, propôs a Ortega antecipar as eleições gerais de 2021 para 31 de março de 2019, sem que ele tente a reeleição, para superar a crise.

Ortega disse que ficou surpreso quando os bispos fizeram essa proposta, no início do mês passado, e que quando recebeu o documento com a proposta, teria dito: "Eles estão comprometidos com os golpistas".

"Dói muito dizer isso, pois tenho apreço aos bispos, eu os respeito, sou católico", continuou o líder, falando para milhares de nicaraguenses em comemoração do 39º aniversário da revolução sandinista.

Segundo ele, dentro do episcopado há bispos com posições de maior confronto e outros mais moderados, "mas infelizmente a linha que se impõe é a de confronto, não a de mediação".

Ortega chamou a proposta dos bispos, de antecipar as eleições e reestruturar o Estado, de golpe de Estado, salientando que essa não é a posição de um mediador, mas de uma instituição que está tomando partido na crise.

"Fiquei espantado, doeu em mim saber que os bispos tiveram essa atitude de golpistas", insistiu Ortega.

Na opinião do presidente, os bispos foram desqualificados como mediadores e testemunhas com a proposta de antecipar as eleições.

Para entender

Ex-guerrilheiro sandinista, que décadas atrás lutou para acabar com a ditadura da família Somoza, apoiada pelos Estados Unidos, Ortega agora é acusado de querer se perpetuar no poder. O país está mergulhado em sua pior crise política desde o final da guerra civil de 1990. Os dados da Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos (ANPHD) também apontam que além dos mais de 350 mortos, 261 pessoas estão, neste momento, desaparecidas ou sequestradas. Ortega nega as acusações e afirma que os protestos são uma cortina de fumaça para as intenções da direita, que quer tirá-lo do poder.

A onda de protestos começou no final de abril, quando multidões começaram a tomar as ruas contra as reformas impostas por decreto pelo sandinista para a Previdência Social. Eles se opunham à mudança que reduzia as aposentadorias em 5% e aumentava as contribuições das empresas e dos trabalhadores para resgatar o Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS). Após três dias de dura repressão aos atos, dez pessoas já haviam sido mortas pelas forças militares, policiais e paramilitares, grupos irregulares armados que defendem o Governo.

Ao longo dos dias, os protestos não davam sinais de que iriam recuar. E se juntavam ao descontentamento de nicaraguenses da região do Caribe, onde milhares de camponeses se opõem ao Governo por conta da entrega da concessão ao empresário chinês Wang Jing da construção um Canal Interoceânico, um projeto visto como ameaça a milhares de famílias da região. Igreja e empresários se juntaram aos pedidos da população e exigiam a revogação da reforma.

Em 22 de abril, após cinco dias de intensos atos, Ortega finalmente voltou atrás e cancelou a Reforma da Previdência. Ao menos 41 pessoas haviam morrido, segundo os dados da época do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos. Mas os protestos não recuaram. A forte repressão gerou um imenso mal-estar e desencadeou novas ações, que exigiam a paz no país e o fim do regime sandinista. Em 29 de abril, centenas de milhares de pessoas foram às ruas convocados pela Igreja. Ao lado dos bispos, marcharam feministas, homossexuais, familiares dos assassinados na repressão contra os manifestantes e milhares de camponeses.

Em 13 de maio, confrontos na cidade de Masaya, que começaram no bairro indígena de Monimbó, voltaram a levantar o terror da repressão. Moradores relatavam que os grupos paramilitares estavam armados com fuzis Kalashnikov e disparavam impunemente, apesar da presença da polícia. Em Manágua, capital do país, estudantes se entrincheiravam na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua e na Universidade Politécnica, mesmo depois de terem sido atacados por forças do Governo, num saldo de 2 mortos e pelo menos 16 feridos. A cifra de mortos já passava de 50.

Mais dispersos, os protestos continuaram. Até esta nova onda de protestos mais recente, em 10 de julho, Ortega intensificou a repressão e ao menos 17 pessoas morreram em 24 horas no país. Dois dias depois, o país mergulhou em novos protestos de grande magnitude. E a conta de mortos já atingia 365 pessoas, segundo Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos (ANPHD).

Ortega afirma que não deixará o poder e acusa os políticos de direita de orquestrarem os protestos para retirá-lo do poder. Para ele, os protestos contra seu Governo são um reflexo de que "o demônio está mostrando as unhas". O esquerdista, por sua vez, é acusado pelos seus opositores de querer se perpetuar ao poder a qualquer custo. Ele está há 11 anos à frente do país, ao lado de sua mulher, que é vice-presidente. Sua última vitória, em 2016, foi contestada pela oposição, que a acusou de fraudulenta. Mas Ortega soube se segurar ao poder por meio de alianças pragmáticas. Se aproximou da Igreja ao encampar políticas "pró-família", como leis rigorosas contra o aborto. E organizou uma agenda pró-mercado, para aproximar o empresariado. "Uma sofisticada estratégia — alimentada até recentemente pela farta ajuda econômica da Venezuela — que deixou a oposição dividida e desorganizada", analisa Oliver Stuenkel, professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo.

Com o aumento da repressão, as forças que se aglutinaram a seu favor foram se rompendo ao longo do caminho. Ele recebeu sinais claros da Igreja de que deveria deixar o poder. Mesmo sinal que recebeu do empresariado. A Organização dos Estados Americanos (OEA) apoiou nesta semana um documento crítico à repressão no país em que se afirma que estão sendo cometidas "práticas de terror, com detenções em massa e assassinatos", conforme adiantou o jornal Folha de S.Paulo. A ação se soma a um pedido feito no início deste mês pelo alto-comissário das Nações Unidas para os direitos humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, para que o país ponha fim à violência e desmobilize os indivíduos armados pró-Governo. E também à sanções unilaterais já impostas pelos Estados Unidos. Novas sanções poderiam ser um peso muito grande para o país, de economia frágil e altamente dependente de uma Venezuela em crise.


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