20/04/2024 - Edição 540

Brasil

As laqueaduras de emergência dispararam no Brasil – e ninguém sabe por que

Publicado em 19/07/2018 12:00 -

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A esterilização involuntária de Janaína Aparecida Quirino ainda não tinha ganhado os noticiários quando, fazendo um levantamento inédito de dados do SUS sobre laqueaduras, me ocorreu a suspeita: será que as mulheres estão sendo esterilizadas à força? Eu havia acabado de descobrir que existem laqueaduras de emergência e que em 2017, pela primeira vez, elas foram mais comuns do que as eletivas. Comparando o primeiro trimestre deste ano com o de 2008, o número de esterilizações urgentes duplicou. E ninguém sabe explicar por que isso está acontecendo – nem o que, afinal, é uma laqueadura de urgência.

A laqueadura, popularmente conhecida como “ligadura de trompas”, é uma cirurgia de esterilização feminina – ou seja, um método anticoncepcional permanente, destinado a mulheres que desejam nunca engravidar. Como a finalidade do procedimento é evitar uma gestação, é muito estranho pensar em uma laqueadura feita em caráter de urgência.

Falei com pesquisadoras, médicas, funcionárias da SES, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, e uma enfermeira. À primeira vista, a maioria estranhou o termo. “Não existe laqueadura de urgência”, escreveu Sandra Garcia, doutora em Demografia, uma frase que foi repetida pela enfermeira Edineia Lazzari, que trabalha em uma clínica da família na Rocinha, favela do Rio. Há 20 anos atuando no Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente da SES, a especialista em saúde pública Tizuko Shiraiwa também afirmou desconhecer essa classificação para laqueaduras.

De forma vaga, o Ministério da Saúde afirmou que, de fato, não são feitas laqueaduras de urgência. Mas, às vezes, a cirurgia pode ser registrada no código de atendimento urgente “por, provavelmente, ter-se identificado risco à saúde da mulher em futura gestação”. Seria, portanto, uma forma de indicar que a laqueadura foi feita por razões médicas, e não como método contraceptivo. Pelo menos na teoria.

Para uma mulher fazer uma laqueadura no Brasil, a Lei de Planejamento Familiar determina desde 1997 que ela tenha mais de 25 anos ou pelo menos dois filhos vivos. Quem é casada precisa ainda da autorização do marido. Uma hipótese para o mistério das laqueaduras urgentes é que elas sejam uma versão de um clichê brasileiro: o jeitinho. Sem acesso ao método contraceptivo que desejam por não atenderem a requisitos pensados há mais de 20 anos, é possível que as mulheres, em acordo com os médicos, tenham encontrado uma brecha no sistema. “A urgência pode ser uma estratégia para elas conseguirem a laqueadura sem atender esses critérios. Por exemplo, sem pedir permissão ao marido”, arriscou Carmen Lucia Luiz, coordenadora da Comissão Interdisciplinar de Saúde da Mulher do Conselho Nacional de Saúde.

É apenas um palpite. Porém, outras pessoas da área, como a enfermeira Edineia, igualmente surpresas com os dados, também apostam nele. Embora a laqueadura tenha sido legalizada com a lei de 1997, ainda são poucos os serviços que podem fazer o procedimento. Como essa é uma cirurgia “mutilatória, de difícil reversão”, segundo Carmen, as mulheres precisam passar por 60 dias de aconselhamento, recebendo informações sobre outros métodos contraceptivos.

Também por isso, a demanda pela cirurgia é muito maior do que a oferta, explicou André Junqueira Caetano professor da PUC Minas, especialista em Demografia. “Você detectou uma consequência dos critérios restritivos da lei“, avaliou. “Dá mais trabalho ir ao serviço credenciado do que fazer uma combinação com o médico.”

Não é coincidência que, em 2017, as laqueaduras em cesarianas também tenham ultrapassado as esterilizações feitas em outros momentos da vida. É um acontecimento inédito desde a aprovação da Lei de Planejamento Familiar, que proibiu as laqueaduras no parto para evitar cesarianas desnecessárias. Antes dela, médicos e pacientes combinavam cesáreas para encobrir as laqueaduras, ainda não legalizadas. Assim, os custos do hospital com a cirurgia eram reembolsados pelo SUS, e os profissionais, muitas vezes, recebiam pelo procedimento extra por fora.

A lei permite uma exceção para laqueaduras no parto: quando o médico julgar que o número de cesarianas anteriores da mulher pode colocar sua vida em risco caso ela engravide novamente. “A conversa que rola no ouvido das mulheres, ainda que possa não haver base científica para isso, é que depois de duas cesarianas não tem mais que ter filho. Quantas fizeram laqueadura na cesárea como urgência por causa de cesarianas anteriores?”, questiona Carmen.

O Ministério da Saúde não soube responder. Em 5 de junho, solicitei ao órgão o número de laqueaduras de urgências feitas no SUS, de acordo com a quantidade de cesáreas anteriores das pacientes. Fui informada de que a ficha de autorização de internações não tem um campo para preenchimento de histórico obstétrico e, por isso, o ministério não tem como indicar as cesarianas anteriores das mulheres laqueadas.

Uma segunda hipótese

Há dez anos, seis a cada dez laqueaduras de urgência aconteciam no parto. Hoje, já são quase 90% – a maioria em mulheres negras. Em 2017, elas foram submetidas ao procedimento 2,5 mais vezes do que em 2008, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação.

Levando em conta que é o profissional de saúde quem define os casos em que cesáreas anteriores justificariam uma esterilização, me questiono a possibilidade de estarem mais dispostos a recomendar o procedimento às negras do que às brancas. Em 2008, 32,7% de todas as laqueaduras eram feitas em negras, e 32,8% em brancas. Hoje, são 43,5% em negras, e 29,9% em brancas.

A ginecologista da UFRJ Michele Pedrosa, que trabalhou dez anos anos na Secretaria Estadual de Saúde do Rio, tem outra hipótese para explicar as urgências: o aumento das gestações de alto risco. Em 2002, só 5,8% das cesáreas feitas no SUS eram em gestações arriscadas. Ano passado, já eram quase 20%. Para ela, o aumento desse tipo de gravidez tem a ver com uma piora da saúde pré-natal nos últimos anos, que pode levar às laqueaduras no parto.

“A gente sabe que acontecem combinados entre o médico e a paciente. Na Baixada Fluminense, é comum as mulheres fazerem cesariana pelo SUS e pagarem por fora para serem laqueadas. Isso acontece Brasil afora, mas só com esses dados [do levantamento do The Intercept Brasil] não dá para afirmar que é isso”, ponderou Pedrosa.

O único consenso entre as profissionais e pesquisadoras é que as urgências não indicam a possibilidade de os médicos estarem fazendo esterilização forçada nas mulheres. Ainda assim, é curioso que, dias após nossas conversas, tenha vindo a público um caso como o de Janaína, mulher em situação de rua esterilizada à força por ordem da Justiça. E que, duas décadas depois da CPI que investigou laqueaduras compulsórias no Brasil, elas tenham voltado a ser alvo de discussão no parlamento. Na última quarta-feira, duas comissões da Câmara dos Deputados se reuniram para discutir o caso de Janaína.

O paradoxo do acesso

O acesso à laqueadura no Brasil é um paradoxo complexo. E não poderia deixar de ser, em um país que não permite às mulheres terem autonomia sobre seus corpos e insiste em lutar por retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos. Por um lado, critérios de uma lei ultrapassada podem estar incentivando mulheres e médicos a fazer cirurgias ilegais; por outro, muitas mulheres que atendem aos requisitos da lei têm o direito à laqueadura negado por profissionais que se recusam a fazer o procedimento, acreditando que elas irão se arrepender. A situação é tão comum que mulheres sem filhos, mas com mais de 25 anos, criam grupos para recomendar os médicos que fazem a laqueadura legal.

Ainda assim, a esterilização feminina é a forma de contracepção mais comum no Brasil, que tem a décima maior taxa desse método no mundo, de acordo com estudo de 2015 da Organização Mundial da Saúde. “Os americanos chegavam aqui nos anos 70 distribuindo equipamento para os médicos fazerem laqueaduras na população de baixa renda”, lembra Pedrosa, referindo-se ao investimento estrangeiro no controle populacional no Brasil, que também foi alvo da CPMI das laqueaduras.

A laqueadura é um direito das mulheres. Mas o histórico brasileiro, combinado à ausência de informações e à dificuldade de acesso a outros métodos anticoncepcionais de longo prazo, como o DIU, faz com que a opção nem sempre seja consciente. “Como as pessoas falam ‘ligar as trompas’ para se referir às laqueaduras, muitas mulheres vão ao nosso laboratório pedindo para ‘desligar’ depois da cirurgia. Elas não estavam cientes de como funcionava o método quando o escolheram”, contou Pedrosa.

Caso Janaína e esterilização em massa

Deliberações relativas ao planejamento familiar de qualquer cidadão jamais podem partir do Ministério Público, pois são de livre decisão das mulheres e dos homens deste país. São direitos individuais e devem partir unicamente dos cidadãos e cidadãs. Mas vamos ao que está no cerne de todo esse imbróglio: no Brasil do “somos todos iguais”, uns são mais iguais que outros.

A CPI dos anos 1990 não foi instaurada por acaso. Ela foi fruto de denúncias e estudos de que o escasso acesso aos métodos contraceptivos, principalmente nas áreas mais carentes do país, era campo fértil para que ligaduras de trompas (como também são chamadas as laqueaduras) fossem oferecidas como escambo eleitoral e sem qualquer critério.

A Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde, feita pelo Ministério da Saúde em 1996, mostrava que 45% das brasileiras em uniões estáveis estavam laqueadas e um quinto delas com menos de 25 anos. A CPI, presidida pela então senadora petista Benedita da Silva, do Rio, com relatoria do senador pefelista de Tocantins Carlos Patrocínio, comprovou a prática indiscriminada da laqueadura e o uso eleitoreiro da cirurgia. Na ocasião, um depoimento sem rodeios de Antônio Pedroso Neto, do Conselho Federal de Medicina, deixava clara a indiferença do governo perante o problema.

A redução da violência evitando que o pobre “se reproduza”

O descaso vinha de mais tempo. As leis que favoreceram a imigração no Brasil revelam um projeto de nação que excluía negros e indígenas. Os imigrantes europeus receberam benesses jamais sonhadas pelos descendentes de escravos que construíram o país. Em 1911, em Londres, no Congresso Universal das Raças, o médico e antropólogo João Batista de Lacerda expôs ao mundo a tese do embranquecimento com o artigo “Sobre os mestiços do Brasil” (Sur les métis au Brésil). Nele, fazia uma defesa da miscigenação porque acreditava que a raça branca acabaria por sobrepor a negra e a indígena. Ficou famoso o quadro usado por Lacerda para exemplificar sua teoria. Em “A redenção de Cam”, uma avó negra agradece aos céus o neto branco nos braços de sua filha mestiça casada com um homem branco.

João Batista Lacerda parece ter feito escola – Getúlio Vargas, 34 anos depois, no artigo 2º do decreto-lei nº 7.967, dispôs: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia (…)”.

Esterilizações forçadas em pobres (que, na sua maioria, são negros) em um povo com este histórico não parece nada fora dos padrões. Mas para sair do terreno do empirismo foi criada uma CPI para averiguar a “incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil.” Movimentos sociais, entidades e a Igreja apontavam os programas de controle da natalidade e planejamento familiar, muitos financiados com capital estrangeiro, como focos da prática que deixou estéreis milhares de mulheres involuntariamente.

Esses programas eram capitaneados por entidades que, segundo diversos depoimentos, seguiam orientações que constam no chamado Relatório Kissinger, documento norte-americano classificado como sigiloso, mas que pesquisadores tiveram acesso nos anos 90. Era o Memorando de Estudo de Segurança Nacional 200, que tratava do crescimento da população mundial e a segurança dos Estados Unidos. Ganhou o nome de Henry Kissinger porque foi concluído em dezembro de 1974, sob sua direção.

Programas de laqueaduras forçadas no Brasil seguiam orientações que constam no chamado Relatório Kissinger.

O Relatório Kissinger foi adotado como política oficial pelo presidente Gerald Ford em 1975 e defendia que o crescimento populacional dos países menos desenvolvidos era uma ameaça para a segurança nacional americana, pois geraria riscos de distúrbios civis e instabilidade política. Para conter o avanço demográfico, o relatório defendia a promoção da contracepção. Treze países estavam na mira desta política: Índia, Bangladesh, Paquistão, Indonésia, Tailândia, Filipinas, Turquia, Nigéria, Egito, Etiópia, México, Colômbia e Brasil. Assim, a vontade histórica da elite brasileira ganhou um aliado de peso e com dólares no bolso.

A CPMI ouviu gente poderosa dos movimentos feministas, movimentos negros, deputados, médicos e juristas. Em 144 páginas, o documento desfila depoimentos impressionantes de ativistas históricas como Luiza Barrios, que se tornaria ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de 2011 a 2014; de Jurema Werneck, atualmente presidente da Anistia Internacional no Brasil; de Edna Rolland, do Instituto Geledés para Mulheres Negras, que viria ser a relatora da Conferência Mundial contra o Racismo, em 2011. E ainda traz falas de Adib Jatene, então ministro da Saúde; do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, da deputada Jandira Feghali; do então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Dom Luciano Mendes de Almeida, entre outros.

Dom Luciano, por exemplo, foi taxativo ao afirmar que em um país com 16 habitantes por quilômetro quadrado não se deveria estar falando em controle da natalidade, mas o fazia porque havia uma intenção genocida por trás, dentro de uma perspectiva racista.

Também falaram os médicos que consideravam tudo um grande exagero, como Elsimar Coutinho. Coutinho, então presidente da Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar, era tido como porta-voz da política de esterilização no país. A associação era uma entidade civil que congregava as entidades de planejamento familiar. Seu orçamento entre 1988-90 foi de 8,3 milhões de dólares.

Segundo o relatório da CPI, um de seus objetivos era treinar médicos, enfermeiras e paramédicos em técnicas de esterilização. O texto da relatoria apresentou dados de instituições no Brasil e no exterior comprovando que a prática da laqueadura era muito alta, fora dos padrões mundiais. Fato confirmado no depoimento de Jatene.

Vinte anos passaram e, em 2011, Elsimar concedeu uma entrevista ao jornal A Tarde afirmando que as ações do programa de planejamento familiar desenvolvidas há 20 anos pelo Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana, instituto que dirigia, auxiliaram na diminuição da violência entre os jovens da Bahia. Para justificar seu ponto, usou o número de esterilizações não em mulheres, mas em homens, pois o número de vasectomias feitas pelo centro saltou de zero em 1984 para 489 em 1991: “O planejamento familiar diminui as desigualdades sociais porque diminui o abandono e a mortalidade infantil, diminui a violência entre os jovens. (…) Uma única vasectomia protege de uma gravidez indesejada um número enorme de mulheres”.

Na mesma matéria, Edna Rolland rebate: “Os pobres têm muitos filhos porque são pobres, e não o contrário. A causa que tem que ser atacada é a pobreza, a expropriação de condições dignas de vida. O planejamento familiar é um direito de todos e não devemos pensar em um programa para pobres e um para não pobres, da mesma forma que não existe educação para pobres ou saúde para esse grupo”.

O Estado brasileiro permanece ausente e incapaz de estabelecer ações voltadas à reprodução enquanto questão de saúde pública.

A discussão está muito longe de ter um fim no Brasil e no mundo. A CPI da laqueadura resultou no projeto de lei sobre planejamento familiar aprovado pelo Congresso Nacional em 1996, sancionado, após muitas pressões, sem vetos pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Está lá: “É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado após a informação dos riscos da cirurgia”. Mas, embora algum avanço tenha sido verificado, o Estado brasileiro permanece ausente, incapaz de estabelecer ações voltadas ao tema da reprodução enquanto questão de saúde pública.

Thais Machado Dias, do Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade, mencionou o perigo de que o caso de Janaína, a mulher que foi esterilizada a mando da Justiça, abra um precedente para uma reedição das medidas racistas do passado: “Fazer com que pessoas que não cabem numa dita norma social não se reproduzam é um processo eugênico que se repetiu em vários momento da história. Se a gente trabalha com laqueadura involuntária para pobres, mulheres negras e usuários de substâncias, vamos retroceder anos de história e de direitos humanos”, declarou a veículos após a repercussão do caso.

A crise migratória recente e as medidas protecionistas do governo norte-americano, com as crueldades da separação de pais e filhos e o ódio a imigrantes, nos faz pensar que o Relatório Kissinger e a CPI da esterilização em massa não aconteceram há três décadas, mas ontem.

Janaína Aparecida Querino está aí para provar.


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