28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Irreversível

Publicado em 12/07/2018 12:00 - Rodrigo Amém

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Em agosto de 1955, o sol de verão castigava o sul dos EUA, e Emmett, um jovem de 14 anos de idade, pegou um ônibus em Chicago e foi visitar sua família na cidade de Money, no estado do Mississippi.  Comprometido a reforçar a imagem de bom filho, ele se ofereceu para ir até o mercado e fazer as compras da lista da mãe. Essa decisão mudaria a história do mundo.

Trabalhando no mercadinho, estava Carolyn Bryant. Moça bonita, 21 anos. Branca. Não havia muito movimento no estabelecimento naquela noite. Mas então Carolyn ouviu algo vindo de Emmett. Como um assovio. Teria sido um "fiu-fiu" do garoto? Três dias depois, o corpo de Emmett Till foi retirado das margens do rio Tallahatchie. Roy Bryant, o marido de Carolyn e o seu irmão JW Milam, sequestraram, espancaram o garoto, arrancaram seus olhos e, por fim, deram um tiro na sua cabeça.

Por que? Porque Carolyn afirmou que Emmett, um jovem negro, a tinha "ameaçado física e verbalmente".

No julgamento do crime, Carolyn contou que o menino havia proferido ameaças horríveis, alegando que já havia feito coisas piores com outras mulheres brancas. Tanto o senhor Byrant quanto o senhor Milam foram inocentados pelo juri exclusivamente branco. Anos mais tarde, ambos confessariam o crime. Nenhum dos dois jamais cumpriria qualquer tipo de pena pelo sequestro, tortura e assassinato de Emmett. Ambos já faleceram.

Durante o enterro de Emmett, sua mãe, Mamie Till-Mobley, tomou uma decisão polêmica e histórica. Exigiu que seu filho fosse velado em caixão aberto. Para que "o mundo pudesse ver o que fizeram com meu filho". (Eu recomendo cautela ao clicar no link. Imagens fortes. Dessas que mudam a história.) Milhares de pessoas marcaram presença no velório de Emett e os registros fotográficos do evento impulsionaram a luta pelos direitos civis nos EUA.

Durante décadas, este foi o fim da história. Até que, no ano passado, Carolyn resolveu falar a verdade. Agora chamada Caroline Bryant Donham, a vítima do suposto assédio revelou à revista Vanity Fair que seu testemunho tinha sido forjado. Sobre as ameaças vindas de Emett, ela disse com todas as letras: "Essa parte não é verdade." O que de fato ocorreu naquela noite? Ela alega não se lembrar. Hoje, Caroline tem 82 anos de idade. Mas ela afirma que "nada que ele tivesse feito naquela noite justificaria o que aconteceu com ele". Sobre a mãe de Emett, Caroline disse que "sentia uma profunda pena" dela.

É difícil não olhar as fotos de Emmett e não lembrar da Marcos Vinícius (também 14 anos), da favela da Maré no Rio de Janeiro, dentro do seu caixão coberto com o seu uniforme escolar manchado de sangue. É difícil não pensar nas atrocidades que cometemos usando a justiça como subterfúgio e a vingança como motivação. É impossível não pensar nas consequências irreparáveis de qualquer sistema punitivo irreversível, fetiche de tantos brasileiros.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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