28/03/2024 - Edição 540

Especial

Natureza ameaçada

Publicado em 10/07/2018 12:00 -

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A aliança do governo de Michel Temer (MDB) com os ruralistas no Congresso pode ter salvo o presidente de ser investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) por corrupção, mas deixou um monte de mortos pelo caminho. Um deles pode ser a meta brasileira de redução das emissões de gases que causam o aquecimento global, conforme sugere um estudo publicado no último dia 9.

Assinado por dez pesquisadores brasileiros na renomada revista Nature Climate Change alerta a pesquisa aponta que o enfraquecimento da política ambiental orquestrada pelo Governo Federal em troca de apoio político pode minar os compromissos que o Brasil assumiu no Acordo de Paris, pacto global contra as mudanças climáticas.

Segundo a análise, a forma como país vem sendo governado estimula o aumento do desmatamento, o que ameaça as metas brasileiras estipuladas no acordo, firmado em 2015 para limitar o aquecimento do planeta a 2°C até o fim deste século.

"O presidente do Brasil aprovou medidas e decretos que diminuíram as exigências para licenciamento ambiental, suspendeu a ratificação de terras indígenas, reduziu o tamanho de áreas protegidas e facilitou a legalização de terras griladas", diz o estudo, sem citar Michel Temer (MDB) pelo nome.

O impacto dessa política pode ser medida diretamente na emissão de CO2, o maior vilão do aquecimento global, já que a destruição das florestas libera grandes volumes desse gás na atmosfera.

Em 2016, por exemplo, dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) mostraram que, devido à devastação florestal medida no ano anterior, as emissões brasileiras subiram 8,9%.   

"O estudo mostra que o país tem uma decisão a tomar. O Brasil quer mesmo cumprir o Acordo de Paris?", pontua Raoni Rajão, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos autores do estudo.

Para prever o que pode acontecer no futuro próximo, os pesquisadores usaram dados históricos sobre desmatamento da Floresta Amazônica e do Cerrado, atrelando as informações a decisões políticas tomadas entre 2005 e 2017 que estimulam o aumento ou queda da degradação ambiental.

No pior cenário futuro, de abandono das políticas de comando e controle, a taxa de desmatamento voltaria ao patamar recorde de destruição já registrada pelo sistema de monitoramento. Na Amazônia, a área desmatada chegaria à casa dos 27 mil km2 em 2030 – ano em que o Brasil se comprometeu, no Acordo de Paris, a acabar com o problema.

O estudo trabalha ainda com cenários intermediários e de maior rigor no combate ao desmatamento e fortalecimento das políticas ambientais.

"Certamente, não estamos caminhando para o melhor cenário", opina Eduardo Viola, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). "Podemos ir de um cenário intermediário ao pior. Nesse último caso, o impacto das emissões do Brasil no mundo seria muito alto", alerta Viola, lembrando que o país ocupa o sétimo lugar no ranking de poluidores.

Segundo o artigo, as emissões por desmatamento no pior cenário seriam de 23.1 gigatoneladas de CO2 entre 2010 e 2030. Estudos recentes mostram que, para que a temperatura média global não suba mais que 2°C, o "orçamento" de carbono do Brasil até 2050 não poderia ultrapassar 24 gigatoneladas de CO2 até 2050.    

"O que tem de mais perverso aqui é o poder extraordinário da bancada ruralista. O agronegócio, que representa 20% do PIB, fez uso importante de tecnologia no campo, mas não ao que se refere à redução de emissões de CO2 e ao avanço da agricultura sobre área de desmatamento", critica Viola. Dados do Seeg apontam um aumento de 1,7% das emissões do setor em 2016. 

No estudo, os pesquisadores tentaram prever o que o país deveria fazer se decidisse, mesmo com a alta do desmatamento, cumprir o Acordo de Paris. A resposta pode custar caro para setores produtivos: até 2 trilhões de dólares.

"Setores como a indústria e energia terão que reduzir muito mais as suas emissões para a conta fechar. Ou seja, serão obrigados a adotar tecnologias caras que sequer estão disponíveis no mercado, ou ainda comprar crédito de carbono de outros países", cita alguns exemplos Raoni Rajão.

Na visão de Rajão, o Brasil não tem condições políticas no cenário internacional de "ser igual ao Trump", ou seja, abandonar formalmente as metas ratificadas no Acordo de Paris. Por outro lado, diz, ao não honrar os compromissos internacionais, o país pode "virar uma Venezuela", país que, entre negociadores, é conhecido por não cumprir acordos internacionais.  

"Com China e União Europeia alinhadas para cumprir o Acordo de Paris, o Brasil pode até sofrer sanções caso não faça o mesmo", sugere Rajão. A China, maior emissor de CO2 global, é também a principal parceira comercial do Brasil. 

Ainda não se sabe se os países que ratificaram o Acordo de Paris poderão sofrer sanções caso não cumpram suas metas. A Conferência do Clima de 2018 ainda deverá finalizar o "livro de regras" do pacto para barrar as mudanças climáticas, que entra em vigor a partir de 2020.

O Estudo

Para fazer o estudo, o grupo liderado por Roberto Schaeffer, da COPPE-URRJ, e Britaldo Soares-Filho, da Universidade Federal de Minas Gerais, usou modelos de computador que fazem simulações de como o uso da terra evolui no território e de como as relações entre uso da terra e energia se desenvolvem em resposta a contextos diversos. Para isso, eles alimentaram o modelo com as taxas de desmatamento e as condições de governança ambiental em três momentos: antes de 2005, quando não havia controle sobre a devastação das florestas; entre 2005 e 2012, quando medidas foram adotadas e a taxa de desmatamento caiu; e entre 2012 e 2017, quando a tendência de queda se rompeu na esteira do enfraquecimento do Código Florestal e da crise política.

Nos últimos dois anos, o quadro de governança pós-2012 se agravou. Para tentar aprovar o impeachment, depois reformas impopulares, depois para salvar a própria pele, Michel Temer fez uma série de concessões à bancada ruralista, que representa cerca de 40% dos votos na Câmara dos Deputados: a grilagem de terras de até 2.500 hectares foi legalizada, a demarcação de terras indígenas foi congelada, unidades de conservação tiveram propostas de redução de limites e o licenciamento ambiental passou a ser ameaçado por vários projetos de lei.

Os ruralistas não ganharam tudo ainda. “Mas, para o desmatamento, a sinalização negativa que o governo dá tem uma importância enorme”, diz Raoni Rajão, da UFMG, coautor do estudo.

Com base nessas informações, os modelos produziram três cenários. Num deles, a governança ambiental é fortalecida, algo que soa pouco factível hoje. Neste caso, o desmatamento do cerrado alcança 3.794 km2 em 2030, comparado aos mais de 9.484 km2 hoje. O da Amazônia cairia dos atuais 7.000 km2 para 3.920 km2.

No cenário intermediário, considerado pelo grupo o mais provável, o desmatamento no cerrado vai a 14.759 km2, e o da Amazônia, a 17.377 km2 em 2030. No pior cenário, a governança ambiental é totalmente abandonada e o desmatamento anual retorna aos níveis mais altos: 18.517 km2 no cerrado e 27.772 km2 na Amazônia.

O carbono emitido por perda de florestas e savanas nos três cenários foi comparado com o chamado “orçamento de carbono” do Brasil, ou seja, quanto CO2 o país ainda pode emitir para cumprir sua parte na meta do Acordo de Paris de estabilizar o aquecimento da Terra abaixo de 2oC em relação à era pré-industrial. Dado o tamanho da economia e da população do Brasil, esse orçamento foi calculado em 24 bilhões de toneladas líquidas de CO2 equivalente entre 2010 e 2050. Como já emitimos 4,6 bilhões de 2010 a 2017, o orçamento remanescente é de 19,4 bilhões de toneladas.

No cenário mais provável, o intermediário, as emissões acumuladas apenas por desmatamento entre 2010 e 2030 chegam a 16,3 bilhões de toneladas. O Brasil só consegue se manter dentro do orçamento de carbono se impuser ao setor industrial e energético as tais tecnologias mais caras a custo de US$ 2 trilhões.

A NDC também vai para o vinagre já no cenário intermediário. “O compromisso assumido no Acordo de Paris é de chegar a 2030 com 1,2 bilhão de toneladas de emissões no conjunto da economia. Mas no cenário tendencial somente as emissões por desmatamento já alcançariam esse valor”, afirma Rajão.

O cenário mais grave é um alerta, mas por ora não é o mais provável, já que o Ministério do Meio Ambiente continua agindo para controlar a devastação. No governo Temer, paradoxalmente, o orçamento do Ibama para a fiscalização ambiental foi incrementado em relação ao do segundo mandato de Dilma Rousseff, com dinheiro doado pela Noruega.

Na semana passada, o órgão anunciou que concluirá neste mês a Operação Panopticum, que consiste no envio de 25,2 mil cartas e e-mails a proprietários de terra de 59 municípios com risco de desmatamento. O objetivo é informar os proprietários de que eles estão sendo monitorados por satélite e serão punidos em caso de desmatamento ilegal.

“O Ibama continua melhorando, mas no caso da Amazônia, isso vai diminuir no máximo um terço do desmatamento total, que está em terras privadas que já estão no Cadastro Ambiental Rural”, disse Rajão, que concebeu a Operação Panopticum juntamente com Jair Schmitt, diretor de Políticas de Combate ao Desmatamento do Ministério do Meio Ambiente. Segundo ele, é mais difícil fazer esse controle em áreas privadas fora do CAR, em unidades de conservação, terras devolutas, terras indígenas e assentamentos.

“O estudo mostra que o Brasil está praticando hoje um tipo de política do século 19, o que faz com que talvez tenhamos que recorrer a tecnologias do século 21, muitas delas ainda não maduras ou comercialmente disponíveis, para compensar o aumento das emissões de gases de efeito estufa advindas do aumento do desmatamento decorrentes desta política”, disse Roberto Schaeffer.

Conversão de florestas em terras agrícolas acelera as mudanças climáticas

As plantas absorvem parte do dióxido de carbono (CO2) liberado na atmosfera pela queima de combustíveis fósseis. Mas o aumento do desmatamento e outras mudanças no uso da terra reduzirão a capacidade de absorção de CO2 dessas áreas no futuro. É o que sugere um estudo realizado por pesquisadores climáticos do Instituto de Tecnologia de Karlsruhe (KIT). Seus resultados agora são publicados na Environmental Research Letters.

A mudança climática está fortemente relacionada ao aumento de CO2 na atmosfera. Durante a fotossíntese, as plantas absorvem parte das emissões de CO2 industriais da atmosfera, fazendo com que elas contribuam significativamente para a proteção do clima. “O aumento de CO2 na atmosfera é atualmente menor do que seria esperado das emissões antrópicas”, diz a professora Almut Arneth do Instituto de Meteorologia e Pesquisa Climática – Pesquisa Ambiental Atmosférica (IMK-IFU) no KIT Campus Alpin em Garmisch-Partenkirchen. 20 a 25 por cento do CO2 liberado pelos seres humanos para a atmosfera está sendo absorvido pelas plantas. “Esse efeito restringe as mudanças climáticas; sem isso, o aquecimento global teria progredido ainda mais ”, diz o cientista. “A questão é se vai continuar assim nas próximas décadas.”

Um grupo de pesquisa liderado por Arneth e o Dr. Benjamin Quesada no IMK-IFU lidou com o impacto das mudanças no uso da terra na concentração esperada de dióxido de carbono – em outras palavras, projeção de CO2 – na atmosfera da Terra. Seu estudo intitulado “Potencial forte contribuição de futuras mudanças antropogênicas no uso da terra e cobertura da terra para o ciclo de carbono terrestre” publicado na Environmental Research Letters mostra que mudanças no uso da terra têm um impacto significativo na futura absorção de CO2 da atmosfera.

Se as florestas forem cortadas em favor de terras aráveis e pastagens, ela reduz a capacidade das plantas e do solo de absorver CO2. “A madeira de uma floresta pode armazenar mais CO2 do que o milho, por exemplo”, explica Arneth, que em sua pesquisa lida com a interação entre a atmosfera, as plantas e o solo. Se o desmatamento continuar, pode-se até esperar que grandes partes dos trópicos mudem de uma bacia de CO2 – que absorve mais CO2 do que libera – para uma fonte de CO2.

Pesquisadores do KIT resumiram os resultados de cinco modelos climáticos comuns e analisaram sete variáveis para 25 regiões do mundo para entender melhor até que ponto diferentes mudanças no uso da terra têm impacto sobre o armazenamento de CO2 na vegetação e como resultado a atmosfera. Os cenários diferem, por exemplo, em quanto área da folha há em relação à área do solo, quanto as plantas relevantes crescem, e quanto tempo uma planta cresce antes de morrer e libera CO2 na atmosfera. Todos os modelos foram alimentados com as mesmas premissas para limitar as incertezas relacionadas ao modelo através da análise sistemática resumida e detalhada dos resultados.

Isso torna o estudo mais significativo do que as investigações anteriores, baseadas apenas em modelos individuais. “Mostramos como é importante incluir a expansão das terras agrícolas nas projeções climáticas e adaptar os modelos; ainda há muito espaço para melhorias ”, diz o pesquisador ambiental. “Este estudo confirma a importância de trabalhar para garantir que o desmatamento nos trópicos e globalmente seja reduzido ou interrompido”, diz Arneth.

Agronegócio trava guerra contra orgânicos e alimentação saudável

Uma verdadeira batalha está sendo travada no Congresso Nacional em busca de privilegiar os grandes proprietários de terra e desestruturar a agricultura familiar e orgânica brasileira. Nesta batalha existem duas grandes vertentes relevantes na produção de alimentos no país.

A primeira vertente é marcada por grandes produtores que utilizam nos processos produtivos agrotóxicos sintéticos, fertilizantes químicos, irrigação intensiva e manejo inadequado do solo. Já a segunda vertente, formada majoritariamente por agricultores familiares e assentados da reforma agrária, utiliza em seu processo produtivo os princípios da agroecologia, ao produzir produtos orgânicos que convivem de forma sustentável com o meio ambiente, sem uso de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos.

Ao representar os interesses do agronegócio, a bancada ruralista aposta em dois projetos de lei para evitar que os produtos orgânicos apresentem-se como alternativa de alimentação saudável para população brasileira. São eles o PL 4576/2016 (que visa a restringir a venda direta de produtos orgânicos) e PL 6299/2002 (que pretende flexibilizar o uso de agrotóxicos), ambos já aprovados em comissões da Câmara dos Deputados.

O PL 4576/2016 determina que os produtos orgânicos só poderão ser vendidos diretamente ao consumidor em feiras livres ou em propriedade particular, alterando a Lei 10.831/2003 que dispõe sobre a agricultura orgânica brasileira. Uma vez aprovado, o projeto representará um retrocesso para a política nacional de agricultura familiar, já que dificulta o acesso ao mercado consumidor.

A Lei da Agricultura Orgânica em vigor permite a comercialização de produtos sem agrotóxicos ou fertilizantes químicos em qualquer estabelecimento, desde que possua o selo do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica, adquirido por auditoria ou fiscalização. O interesse da bancada ruralista do Congresso nesse projeto ocorre devido aos produtos orgânicos representarem uma alternativa à produção de alimentos com agrotóxicos.

Já o PL 6.229/2002, conhecido como “Pacote do Veneno” – aprovado na semana passada em uma comissão especial da Câmara criada para tratar do tema – tem como proposta alterar a legislação brasileira por meio de um conjunto de medidas que flexibiliza o uso de agrotóxicos no país, colocando em risco a saúde humana e o meio ambiente.

“O projeto atende aos interesses das grandes corporações da indústria química vinculadas ao agronegócio e prevê a alteração da nomenclatura de “agrotóxico” para ‘pesticida’ e visa que os mesmos possam ser liberados pelo Ministério da Agricultura sem o aval de órgãos reguladores”, afirma Alexandre Guerra, economista e doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Todos os órgãos científicos que versam sobre o tema foram contrários à aprovação do “Pacote do Veneno”, entre eles a Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, o Instituto Nacional de Câncer, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Organizações da Nações Unidas (ONU).

“Em suma, as propostas de alteração da legislação brasileira inserem os interesses econômicos do agronegócio em primeiro lugar, ao mesmo tempo em que colocam em risco a saúde humana e a sustentabilidade do meio ambiente”, afirma Guerra.

Entenda tudo o que está errado no PL do Veneno

O Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, ainda passará pela apreciação do Plenário da Câmara e, em seguida, voltará para o Senado. Com a bancada ruralista aliada às bancadas da Bíblia e da bala, a expectativa é de que o projeto seja aprovado com tranquilidade.

O projeto é de 2002 e foi proposto pelo então senador Blairo Maggi, que hoje é o ministro da Agricultura. Não é difícil desconfiar de um projeto cujo autor ostenta o título de Barão da Soja e é considerado um dos maiores desmatadores da Amazônia. Maggi e sua turma querem facilitar a aprovação e venda de agrotóxicos, além de afrouxar a fiscalização.

Usando eufemismos como “desburocratizar” e “modernizar” processos, o projeto de lei impedirá a continuação do trabalho de entidades fiscalizadoras e excluirá os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente da análise e registro dos agrotóxicos, deixando essa tarefa exclusivamente para o ministério comandado por Maggi. Licenças para o uso de novos venenos poderão ser aprovadas sem passar pelos testes que analisam o impacto no meio ambiente e na saúde da população.

De fato, o registro de agrotóxicos no Brasil é bem mais lento que em outros países. Enquanto aqui leva-se de 3 a 10 anos em média, os EUA e alguns países europeus conseguem aprovar em até 4 anos. Segundo a Anvisa e o Ibama, a demora se deve à falta de estrutura e escassez de recursos para a qualificação dos profissionais. Em vez de cobrar maior investimento do governo nesses órgãos para agilizar os processos de registro, a bancada ruralista se mobiliza para alterar a lei. Segue-se a mesma lógica da privatização de estatais: primeiro sucateia, depois se livra delas usando a justificativa da ineficiência.

Na prática, o PL afrouxa as regras em um país que já é considerado o paraíso desses venenos. A legislação brasileira já é altamente permissiva sobre o limite aceitável de resíduos na água e nos alimentos. Um estudo do Laboratório de Geografia Agrária da USP revela um abismo entre os níveis de resíduos permitidos na Europa e no Brasil. Aqui, a contaminação da água pelo herbicida glifosato, por exemplo, tem um limite 5 mil vezes superior ao que é permitido no continente europeu. O país ostenta o título de maior importador e consumidor de agrotóxicos do planeta. Um levantamento da Reuters revelou que grandes fabricantes internacionais vendem para o Brasil agrotóxicos que são proibidos em seus países por oferecer riscos à saúde e ao meio ambiente. Substâncias rotuladas como “altamente tóxicas” por órgãos reguladores dos EUA, por exemplo, já são vendidas normalmente no mercado brasileiro. Das 50 principais fórmulas de agrotóxicos usadas no Brasil, 22 são proibidas na União Europeia.

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência divulgou um manifesto, assinado por mais de 20 sociedades científicas, alertando para os “efeitos potencialmente catastróficos” da aprovação da nova lei para a saúde pública. No mês passado, a ONU enviou uma carta ao governo brasileiro mostrando preocupação com o PL e afirmando que ele coloca em risco uma série de direitos humanos.

De um lado do debate estão, além da comunidade científica, os partidos de oposição, ambientalistas, o Ministério Público Federal, a Fiocruz, órgãos do governo como o Inca, o Ibama e a Anvisa e centenas de entidades ligadas à saúde e ao meio ambiente. Do outro, a base aliada do governo, a bancada ruralista, o lobby dos produtores de agrotóxicos e o MBL. Enquanto o primeiro grupo se baseia no consenso da comunidade científica de que o uso indiscriminado de agrotóxicos é prejudicial à sociedade, o segundo, movido por interesses políticos e financeiros, trabalha com a desinformação.

Na comissão especial da Câmara, onde a bancada ruralista domina com ampla maioria, todos os dados científicos apresentados pelos opositores do PL e notas técnicas de órgãos de controle estão sendo ignorados.

O lobby dos agrotóxicos

O documentário “O mercado da dúvida” (veja abaixo), baseado em livro de mesmo nome, mostra através de entrevistas com pesquisadores e historiadores científicos como se fabricam as narrativas que colocam em xeque consensos científicos. Elas costumam ser estimuladas e financiadas por quem têm a perder com algumas conclusões da ciência.

Disseminar a dúvida na sociedade em relação às pesquisas que associavam o cigarro ao câncer, por exemplo, fazia parte da estratégia adotada pela indústria do tabaco nos EUA que, durante décadas, confundiu a população por meio de intensas campanhas na mídia. Lobistas contratados por essa indústria se aproveitavam da polarização ideológica na sociedade americana para fabricar teorias conspiratórias, culpando não a ciência pela demonização do cigarro, mas as ideologias de esquerda que pretendiam sabotar o capitalismo. O modus operandi foi bem sucedido e se repetiu em outros temas importantes como o aquecimento global. A indústria do petróleo financia diversas associações de fachada e cientistas mercenários para colocar em dúvida o aquecimento da Terra, um dado que é consenso absoluto entre cientistas da área. O mesmo aconteceu com os agrotóxicos nos EUA e, agora com mais força, no Brasil.

Em depoimento para a série “Viva Sem Veneno” (veja abaixo), a advogada da ONG Terra de Direitos, Naiara Bittencourt, afirma que não é à toa que o Brasil se tornou campeão no consumo de agrotóxicos. “Isso deriva de uma ofensiva estruturada do agronegócio, com muito poder e dinheiro envolvidos. O lobby do agronegócio se espraia nos 4 poderes. No Legislativo, através da Frente Parlamentar da Agropecuária, que ocupa 40% do congresso nacional e que, aliada a outras bancadas, consegue aprovar suas propostas com facilidade. No Executivo, através da ocupação de ministérios emblemáticos como Agricultura, Casa Civil e Justiça. No Judiciário, através da captura de juízes por meio de patrocínio de eventos, festas e encontros de magistrados brasileiros. A Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) é um interlocutor prioritário para os magistrados na temática agrária, com forte poder de influência nas decisões. Muitos juízes são proprietários de terra e ruralistas. Há também o lobby na grande mídia.”

O publicitário Nizan Guanaes sempre foi um defensor dos alimentos orgânicos e chegou a escrever para a Folha de S. Paulo frases como “a comida do futuro é orgânica. (…) As pessoas estão cada vez mais preocupadas em comer e em dormir livres de substâncias químicas. (…) A Califórnia não é apenas o centro de tecnologia do mundo. Se você for a San Francisco, verá como a alimentação orgânica está tomando a cidade.”

Mas as coisas mudaram, e o publicitário se converteu ao agronegócio. Recentemente ele foi contratado pela CNA para criar uma nova estratégia de comunicação e dar uma repaginada na imagem dos agrotóxicos. “Só chamar agrotóxico já mostra que o setor se comunica mal. Meu papel é fazer o setor se comunicar melhor, nem canonização nem satanização”, afirmou o publicitário. Uma das propostas da lei é justamente alterar a nomenclatura para “defensivos fitossanitários” e, assim, escamotear a toxicidade dos venenos agrícolas.

Um relatório publicado pela ONU no ano passado trouxe dados confirmando o efeito devastador dos pesticidas na saúde do homem e no meio ambiente. O documento afirma também que as corporações produtoras de agrotóxicos trabalham com a desinformação, já que “negam sistematicamente” os danos causados e suas “estratégias de marketing antiéticas continuam iguais”. O relatório conclui também que é possível alimentar as 9,6 bilhões de pessoas que vão habitar a terra em 2050 sem o uso dos agrotóxicos, derrubando assim um dos principais argumentos do lobby da indústria.

Em colunas em defesa do PL do Veneno, o jornalista Leandro Narloch e o tucano representante do agronegócio Xico Graziano citaram como fonte dois pesquisadores que vão na contramão do que aponta a comunidade científica: Edivaldo Velini e Caio Carbonari, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Ambos defendem o PL e afirmam que a presença de agrotóxicos nos alimentos tem diminuído ao longo do tempo. Grande parte das pesquisas de Velini sobre agrotóxicos foram financiadas por grandes indústrias de agrotóxicos e de sementes transgênicas, como a Arysta Lifescience, a Basf e a Syngenta. Mesmo com tantas conexões com a indústria, o pesquisador não vê conflito de interesses em ser integrante da CTNBio, órgão que regulamenta a política de biossegurança no país e do qual já foi presidente.

Já o MBL vem cumprindo com louvor o papel de assessoria de comunicação da bancada ruralista. Nas redes sociais, o grupo tem ignorado a posição da comunidade científica e disseminado a ideia de que os agrotóxicos existem para salvar nossas vidas. Eles têm atuado com afinco na criação de vídeos defendendo o PL e memes ridicularizando quem se opõe, sempre tratando a questão fundamentalmente como uma disputa entre a esquerda (representada por eles como hippies e artistas idiotas) e a direita (representada por quem quer trabalhar, produzir e movimentar o PIB do país).

Em vídeo publicado em janeiro (veja abaixo), o grupo que nutre ojeriza às agências de checagem de dados apresentou seus próprios dados para defender o uso dos venenos agrícolas. Kim Kataguiri sustentou sua argumentação com uma única fonte: o livro “Agradeça aos agrotóxicos por estar vivo”, de Nicholas Vital, um jornalista que presta serviços para empresas ligadas ao agronegócio.

O lobby dos venenos agrícolas cresce no país à medida em que o mercado internacional passa a ser cada vez mais regulado e restritivo. Enquanto a tendência mundial é trabalhar para reduzir e proibir uso de alguns agrotóxicos, como na Europa, EUA e até na China, o Brasil acelera fundo na direção do obscurantismo. A nova lei irá impulsionar ainda mais a farra no uso dessas substâncias e reforçará a fama brasileira de paraíso dos agrotóxicos.


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