28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Sobre criatividade e veneno

Publicado em 05/07/2018 12:00 - Rodrigo Amém

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Todos temos palavras favoritas. Sacripantas, por exemplo, eu acho ótima. Temos também nossos vocábulos menos admirados. Eu, por exemplo, não gosto de "criatividade". Na verdade, gosto menos da sua aplicação do que da sonoridade em si. O ato de criar é fundamental na experiência humana. Não se passa um só dia sem que exerçamos nossa criatividade. Observamos o problema, utilizamos nossas referências, combinamos informações e criamos soluções. Prontinho: criatividade em ação, tão natural quanto respirar, comer ou espirrar. Criar é humano. 

Em algum momento da humanidade, o processo criativo foi sacralizado e sua manifestação foi dirigida exclusivamente à motivos religiosos. Logo, a arte, a música, a arquitetura passaram a ser dons divinos, conferidos a poucos abençoados. O iluminismo correu com essa bola e atribuiu a poucas cabeças privilegiadas o privilégio de criação. A revolução industrial consolidou a impressão de que "criatividade" é um dom que algumas pessoas têm, outras não. E, se você não é um dos abençoados, seu papel na sociedade e de repetidor e consumidor das obras desenvolvidas por esta pequena e iluminada casta. Os publicitários adotaram a inacreditavelmente arrogante alcunha de "criativos", coroando o processo de elitização da criatividade humana. 

Claro, todos nós continuamos criando em nosso dia a dia. Afinal, criar é uma ferramenta fundamental para nossa sobrevivência. Pergunte a uma mãe com um salário mínimo. Criar é tão intrínseco à experiência humana quanto comer. No entanto, não encontramos nenhum anúncio de emprego pedindo profissionais que tenham "bom apetite". 

Na realidade todo mundo é criativo. Mas, receptivo a novas ideias, quase ninguém é. E é por isso que todo mundo quer falar e ninguém quer escutar. 

Permitam-me um pouco de filosofia rasteira. Se você tivesse que apontar um lugar onde sua consciência reside em seu corpo, onde seria? Os romanos apontariam para a barriga. Os cristãos que conquistaram Roma, falam no coração como a residência da alma. Hoje, a ciência parece atestar o cérebro como a casa da individualidade. Se perdermos um membro, não perdemos nossa individualidade, por mais traumática que seja a experiência. Contanto que o cérebro permaneça relativamente intacto, cremos que nossa individualidade está preservada. Mas existem diversos casos de pacientes que sobreviveram a acidentes gravíssimos e perderam metade do cérebro e sobreviveram sem quase nenhuma sequela motora. E essencialmente com a mesma personalidade. Ora, pensa você. Isso prova que sua consciência reside no lado oposto ao que foi perdido, claro. E se eu disser que há casos de pacientes que sobrevivem com metade do cérebro, seja o esquerdo ou direito? Os neurônios parecem se adaptar ao trauma e reorganizar suas conexões de modo a compensar a redução de massa cinzenta. Há inclusive registros de pessoas que sobrevivem com cérebro cujo tamanho total corresponde a 10% de um órgão normal. Há consequências motoras, perda de memória, claro. Ainda assim, a personalidade, a individualidade do paciente parece resistir. Os religiosos atribuem essa resiliência do indivíduo à alma, ao espírito. É lá que está nossa essência. 

A filosofia vê a questão de uma forma um pouco diferente. Nós somos o jeito como vemos o mundo. Nossas opiniões, preferências, paixões e ojerizas. Nós somos a maneira como nos relacionamos com nossa família, amigos, com trabalho. Nós somos nossos vícios. Nós somos nossas ideias. Porque essas são as provas de nossa presença no planeta. Penso, logo existo. 

Toda vez que um pedaço disso se desprende, é um pedaço de nossa identidade que deixa de fazer parte da nossa individualidade. É traumático. Exige uma adaptação, uma acomodação de neurônios. Exige abraçar o desconhecido sem saber o resultado desta transformação. Por uma questão de instinto de preservação social, o ser humano tende a recusar sua própria transformação. Mudar é um sacrifício quase que literal. É a morte de uma visão de mundo. A sua morte. 

É esse instinto de preservação que leva à intolerância. E é por este instinto de preservação que estamos abrindo mão do diálogo e abraçando a intolerância. Permita-me um momento "Paulo Coelho" para ilustrar esse paradoxo da humanidade, amigo(a) leitor(a): Era uma vez um escorpião na margem de um rio. Ele pede a um sapo que o carregue nas costas até a outra margem. O sapo pensa: "Ele não vai m e picar, ou morrerá afogado" e aceita fazer o favor ao aracnídeo. No meio da travessia, o escorpião crava seu ferrão venenoso nas costas do sapo. "Por que você fez isso? Agora nós dois vamos morrer!" protesta o sapo. "É a minha natureza", responde o escorpião antes de se afogar. 

E essa é a beleza e a tragédia da condição humana. Todos somos capazes de criar um mundo melhor. Desde que não precisemos rever nossos conceitos.  

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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