28/03/2024 - Edição 540

Mundo

Putin usa homofobia como arma política

Publicado em 27/06/2018 12:00 -

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Às vésperas da Copa do Mundo, gangues ultranacionalistas russas ameaçaram atacar os indivíduos LGBT que se atrevessem a comparecer aos estádios. As autoridades nada fizeram para conter a campanha intimidatória. Mesmo assim, durante o discurso de Vladimir Putin, antes do jogo inaugural, Alexander Agapov ergueu, no estádio Luznhiki, em Moscou, a bandeira do arco-íris. “Acredito que se deve praticar aquilo que se prega e, se estou dizendo para os fãs de futebol LGBT se fazerem visíveis, devo fazê-lo eu mesmo”, explicou Agapov, o presidente da Federação Esportiva LGBT da Rússia, uma organização privada.

Uma lei russa de 2013 proíbe o que denomina “propaganda da homossexualidade” para menores de idade. A lei serve à finalidade de silenciar generalizadamente o debate sobre os direitos LGBT. Apesar dela, temendo desgastar a imagem internacional da Rússia na hora do evento de prestígio tão aguardado por Putin, o governo decidiu não banir os símbolos LGBT durante a Copa do Mundo.

Putin foi eleito para um quarto mandato presidencial em março, após uma campanha farsesca, marcada pelo veto à candidatura do principal opositor, Alexei Navalny. O tema dos LGBT praticamente não apareceu no seu discurso – nem no dos demais candidatos. Mas, abaixo da superfície, o discurso homofóbico pontilhou toda a cena política russa. Putin prefere falar sobre o assunto por meio de vozes terceirizadas e, de modo geral, anônimas.

A estratégia do Kremlin era garantir o maior comparecimento possível às urnas, pois o triunfo estava assegurado de antemão. Semanas antes do pleito, começou a circular um video oficioso conclamando as pessoas a votarem. A peça de propaganda exibia aos eleitores uma realidade alternativa, supostamente derivada de altas taxas de abstenção. Nela, um governo minoritário consagrava os direitos LGBT e autorizava negros a servirem nas forças armadas.

A propaganda subterrânea putinista cola-se a inclinações conservadoras disseminadas em amplos setores da sociedade russa, especialmente entre os idosos e nas cidades do interior. O site Lenta.ru, bastante popular, publicou um jogo no qual os internautas eram chamados a eleger celebridades “suficientemente sortudas” para serem “estupradas e tornadas famosas” por Harvey Weinstein. Um game online, muito disseminado, leva o nome de “Jogue pelo Presidente: ajude Putin a matar homens nus que erguem a bandeira do arco-íris”. O participante assume a identidade de um ex-agente da KGB e lança-se à caça de “inimigos do Estado”.

Putin conhece bem os pilares culturais profundos que sustentam seu regime. No Yandex, principal mecanismo de busca na Rússia, uma pesquisa em língua russa por notícias sobre os LGBT desvenda resultados deploráveis. No topo da lista, surgem notícias como “Berlinale-2018: pervertidos e russofóbicos dominam o cinema moderno”, “Ator russo é demitido por seu apoio aos gays” ou “Usuários escandalizam-se pela nova propaganda pró-LGBT do iPhone”.

Nas eleições de março, só uma candidatura presidencial, de Ksenia Sobchak, da Iniciativa Cívica, ousou denunciar a homofobia. Atriz e âncora de TV, filha de Anatoly Sobchak, primeiro prefeito democraticamente eleito de São Petersburgo, Ksenia protestou contra a peça de propaganda que chamava a votar: “Exibir os indivíduos LGBT como ameaças num país homofóbico não é uma brincadeira”. A prova mais trágica de que ela tem razão encontra-se na Chechênia.

A república do norte do Cáucaso (veja no mapa) atravessou duas cruéis guerras separatistas, entre 1994 e 1996 e em 1999-2000. A “era Putin” instalou-se efetivamente com o sangrento esmagamento dos nacionalistas chechenos e a consolidação de um governo local completamente subordinado ao Kremlin. Ramzan Kadyrov, chefe do governo checheno desde 2007, é um putinista incondicional. A perseguição à comunidade LGBT na república é antiga, mas alcançou um ápice com a campanha de repressão contra homens gays entre março e maio de 2017.

Naqueles meses, milhares de pessoas foram vítimas de sequestros e detenções extra-judiciais, torturas, desaparecimentos e assassinatos. As autoridades locais manifestaram apoio quase oficial às violações em massa de direitos humanos cometidas por gangues paralimitares. Cinicamente, um porta-voz do Kremlin recomendou aos que, “na opinião deles”, sofreram abusos dirigirem queixas às autoridades chechenas.

A Copa da FIFA e de Putin é um intervalo de fantasia. Durante seus 31 dias, os símbolos LGBT serão tolerados. Depois, tudo volta ao “normal”.

Uma história de homofobia

Em agosto de 2016, a estudante de Direito da USP Victória Dandara Toth Rossi Amorim preparava sua viagem para um programa de formação de jovens líderes globais que ocorreria em Moscou, Rússia. Organizando os detalhes burocráticos da viagem, buscou informações no site do consulado brasileiro, encontrando aviso que solicitava que pessoas LGBT que objetivassem ir a Moscou entrassem em contato por e-mail.

Sua mãe fez o que fora solicitado, explicando os detalhes da participação da estudante no programa e até mandando as cartas de aprovação, atentando ao fato de Victória ser uma mulher transexual. Como resposta assinada pelo vice-cônsul, obtive um direcionamento claro: “desistir da viagem, pois eu não estaria segura em nenhum lugar e o governo russo era claro quanto ao fato de cidadãos LGBT não serem bem vindos”, o que, salientou o oficial, “em nada tinha relação com a posição do Estado brasileiro”.

Não ignorando as recomendações, mas ainda assim sem desistir da oportunidade incrível que recebera, ela decidiu encarar o desafio da viagem e os possíveis percalços, tomando algumas medidas de segurança, como conversar com os coordenadores do programa e tentar não sair desacompanhada durante sua estadia em Moscou. Mas para além desta experiência pessoal e acadêmica, a qual quase fora impedida pelo preconceito da sociedade e do Estado russo, é interessante analisar como vive a população LGBT que, de fato, reside neste território tão negligente às suas demandas e direitos.

Em breve análise, podem-se citar algumas normas jurídicas vigentes na Rússia de Wladimir Putin, como:

– Lei de proibição à “propaganda LGBT” para menores de idade, cerceando assim o direito dessa comunidade de fazer suas reivindicações, sobre pena de prisão;

– Lei que proíbe transexuais de dirigirem;

– Jurisprudência consolidada dos tribunais em retirar a guarda dos pais LGBT’s.

Com este simples compilado já se pode ter uma boa noção de como se dá a cidadania dos indivíduos LGBT na Rússia, com desprovimento de direitos e cerceamento de algumas prerrogativas básicas, previstas inclusive na Declaração de Direitos Humanos de 1948, reconhecida pelas nações integrantes da ONU, como o próprio Estado Russo.

Deve-se resgatar, para fins de análise, as razões que levaram a tal documento declaratório de 1948. O holocausto judeu e a banalização da vida humana demonstraram a necessidade de elaborar uma declaração na qual todas as nações reconhecessem as prerrogativas básicas dos indivíduos, que não poderiam, em hipótese alguma, ser questionadas, visto o caráter inerente à condição humana em sua universalidade. Em tese, o Direito de todos os países membros das Nações Unidas deveria ser orientado por tais princípios, sobretudo a defesa da Dignidade da Pessoa Humana, atribuída a todos os indivíduos desde seu nascimento (Art. 1º).

“Neste sentido, percebemos como as normas do Direito positivo russo estão em total desalinhamento com os Direitos Humanos, sobretudo com a Declaração de 1948. Intervenções na vida privada dos indivíduos e de suas famílias são coibidas pelo Art. 12 deste documento, o que não impede, no entanto, que o governo russo separe pais e filhos com base na orientação sexual ou identidade de gênero dos primeiros; tampouco  restrinja atividades comuns, como dirigir, meramente pautada por uma discriminação subjetiva do individuo; sem falar no grave cerceamento à liberdade de expressão, garantida no Art. 19 da Carta da ONU”, afirma a estudante.

Trata-se de um Direito injusto – adotando a interpretação proposta pelo Dr. Martin Luther King – pois são normas que a maioria não aceitaria para si, mas que se impõe a uma minoria como obrigatória. Este ordenamento é muito ardiloso, pois a partir do momento que se aceita como legítimo ferir a dignidade humana de determinado grupo, não haverá garantia para o restante da sociedade sobre os seus direitos. O resultado é uma grande instabilidade jurídica, como a que existe no Estado russo, caracterizado como autoritário e anti-democrático.

O questionamento final é: Como agem as forças internacionais perante essa questão? Há claras denúncias de homofobia feitas por cidadãos russos e é nítido o desrespeito aos direitos, sobretudo à dignidade humana. Entretanto, não se vê nenhuma penalidade imposta pelas Nações Unidas, ou qualquer manifestação oficial dos demais países signatários da Declaração de 1948, por exemplo.

A resposta a este paradigma é a maior dificuldade na efetivação dos direitos garantidos pela ONU: Não são suficientes os mecanismos formais de cobrança do respeito aos direitos humanos por parte dos Estados. Mesmo a fiscalização de situações que lesam as garantias individuais é tarefa executada muito mais por ONG’s e associações independentes do que por ferramentas institucionais de monitoramento. A ONU não tem sido eficiente nesse sentido e por ser suscetível às constantes disputas de influência que pautam as relações internacionais, a dificuldade de ação torna-se ainda maior, cabendo, portanto, aos defensores dos Direitos Humanos pensar em novos mecanismos para tornar eficiente a aplicação destes direitos, que como o próprio nome afirma, são fundamentais.


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