18/04/2024 - Edição 540

Especial

Veneno na mesa

Publicado em 15/04/2015 12:00 -

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Desde 2008, o Brasil, vem ocupando o lugar de maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Os impactos à saúde pública são amplos porque atingem vastos territórios e envolvem diferentes grupos populacionais, como trabalhadores rurais, moradores do entorno de fazendas, além de todos nós que consumimos alimentos contaminados.

O estudo "Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida", publicado em 2011 pela pesquisadora Flavia Londres, aponta que cada brasileiro consome em média de 5,2 litros de veneno agrícola por ano. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) quase 40% das frutas, legumes e verduras consumidas pelos brasileiros têm índices elevados de agrotóxicos. Estudo da Agência identificou até mesmo a presença de compostos químicos que nunca foram registrados para uso no país.

Diante desta situação, mais de 100 entidades nacionais constroem desde 2011 a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, que tem o objetivo de sensibilizar a população brasileira para os riscos que os agrotóxicos representam, e anunciar um novo modelo de produção de alimentos baseado na Agroecologia. Integrante da coordenação nacional da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Alan Tygel critica o modelo agrícola brasileiro, dirigido à exportação e altamente dependente de agrotóxicos.

Confira a primeira parte do documentário O Veneno Está na Mesa, do cineasta Silvio Tendler.

 “Nós, aqui no Brasil, estamos desde 2008 na liderança como os maiores consumidores de agrotóxicos no mundo. Isso por causa do modelo adotado pelo país, do agronegócio. O Brasil se coloca no cenário mundial como exportador de matérias primas básicas, sem nenhum valor agregado, como é o caso da soja, do milho e da cana. São produtos que ocupam a maior parte da área agricultável brasileira, à medida que a superfície para alimentos básicos vem diminuindo”, destacou o ativista.

Segundo ele, o consumo per capita de 5,2 litros de agrotóxicos por habitante ao ano pode ser mais complexo e perigoso, pois este consumo não é dividido de forma igual. “Se pegarmos municípios de Mato Grosso, por exemplo, como Lucas do Rio Verde, lá se consome 120 litros de agrotóxicos por habitante”, alerta Tygel.

Confira a segunda parte do documentário O Veneno Está na Mesa, do cineasta Silvio Tendler.

Uma consequência cruel do alto consumo de agrotóxico no país foi muito bem documentada em 2011, numa pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz: até mesmo o leite materno pode conter resíduos de agrotóxicos.  O estudo coletou amostras em mulheres do município de Lucas do Rio Verde (MT), um dos maiores produtores de soja do país. Em 100% delas foi encontrado ao menos um tipo de princípio ativo desses produtos. Em algumas, até seis tipos.

Tygel ressalta que o meio ambiente sofre forte impacto, com extinção em massa de diversas espécies de insetos, como abelhas, repercutindo na baixa polinização das plantas e na produção de mel. Também as águas são contaminadas com moléculas absorvidas pelos animais e pelo ser humano, levando a uma série de doenças que, muitas vezes, são passadas das mães para os filhos.

Inca pede mudanças

A exposição aos agrotóxicos causa inúmeros efeitos à saúde e está ligada a vários tipos de câncer. Não é achismo ou ativismo. É o que apontam vários estudos científicos ao longo das últimas décadas. Alheio aos sucessivos alertas, o Brasil segue ocupando a liderança mundial de consumo desses venenos.

Preocupado com a situação, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca) manifestou-se nesta semana contra o modo como os agrotóxicos são utilizados no Brasil e recomendou a redução do uso desses produtos. Em um documento de cinco páginas, o instituto ressaltou os riscos dessas substâncias para a saúde e para a incidência de câncer.

"O modelo de cultivo com o intensivo uso de agrotóxicos gera malefícios, como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população em geral", diz o documento, que, além de apontar as intoxicações causadas imediatamente após a exposição [ao produto], enumera efeitos que aparecem após anos de exposição. "Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos agrotóxicos podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer."

A recomendação do instituto é que se adote "a redução progressiva e sustentada do uso de agrotóxicos", prevista no Programa Nacional de Redução de do Uso de Agrotóxicos e a produção agroecológica, segundo a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.

Em um documento de cinco páginas, o Inca ressaltou os riscos dos agrotóxicos para a saúde e para a incidência de câncer.

O documento do Inca explica que a presença de agrotóxicos não se restringe a produtos in natura, como legumes e verduras, existe também em alimentos industrializados com ingredientes como trigo, milho e soja. "A preocupação com agrotóxicos não pode significar a redução do consumo de frutas, legumes e verduras, que são fundamentais em uma alimentação saudável e de grande importância na prevenção do câncer."

O coordenador de Ensino do Inca, Luis Felipe Pinto, disse que o Brasil é o país para o qual a discussão é mais importante, já que é o principal consumidor de agrotóxicos do mundo e tem forte contribuição da agricultura em sua economia. Segundo ele, o Inca não faz isso por "achismo" ou por questão ideológica. "Segue as evidências cientificas, fruto do trabalho de sua equipe e de cientistas no mundo inteiro."

Pinto justifica o alerta afirmando também que a Organização Mundial da Saúde e o Inca preveem que, em 2020, o câncer se torne a principal causa de morte no Brasil. Para ele, os efeitos do aumento do uso de agrotóxicos nos últimos anos devem se refletir em ainda mais casos da doença em 15 ou 20 anos: "Houve uma explosão de pesticidas. Em dez anos, subiu oito vezes e meia o gasto econômico [com agrotóxicos], o que é um indicador disso."

O nutricionista do Inca Fábio Gomes destacou que a população que trabalha no campo é a mais afetada pelos agrotóxicos e disse que o consumidor deve incentivar a economia orgânica. "É preciso valorizar os produtos orgânicos. E também interferir e sugerir aos legisladores e tomadores de decisão para que eles valorizem a produção de alimentos livres de agrotóxicos, inclusive encarecendo a produção dos demais itens."

Transgênicos

Segundo documento do Inca, a liberação do uso de sementes transgênicas no Brasil foi uma das responsáveis por colocar o país no primeiro lugar no ranking mundial, já que o cultivo das sementes modificadas exige grande quantidade desses produtos.

No Brasil, a venda de agrotóxicos saltou de US$ 2 bilhões para mais de US$ 7 bilhões entre 2001 e 2008, alcançando valores recordes de US$ 8,5 bilhões em 2011. Ultrapassamos a marca de 1 milhão de toneladas, o que equivale a um consumo médio de 5,2 kg de veneno por habitante. Para a indústria química, o alto consumo é efeito colateral de um objetivo nobre: aumentar a produtividade das lavouras brasileiras.

A literatura científica aponta vários efeitos associados à exposição crônica aos agrotóxicos, como infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer.

Para o biólogo e pesquisador Fernando Carneiro, o agronegócio tem sido uma opção dos últimos governos no âmbito nacional, o que incentiva a disseminação dos agrotóxicos como prática recorrente. “Isso aconteceu e vem crescendo desde o final do governo Fernando Henrique, governo Lula e Dilma. Esse é um processo muito perigoso, porque há uma desindustrialização e um incentivo a commodities minerais e agrícolas, que têm um valor muito menor na relação de trocas do comércio internacional. Então, o Brasil ficou dependente desse modelo, que é baseado no grande uso de insumos químicos. A própria monocultura é um sistema desequilibrado, que exige muito agrotóxico. Mas muitas pessoas estão ganhando com a implantação desse modelo.”, afirma.

Para o biólogo e pesquisador Fernando Carneiro, o agronegócio tem sido uma opção dos últimos governos no âmbito nacional, o que incentiva a disseminação dos agrotóxicos como prática recorrente.

O engenheiro agrônomo Silvio Favero, mestre e doutor em entomologia com foco em controle de pragas afirma, no entanto, que o problema vai além do agronegócio. A produção de frutas e hortaliças também consome veneno de forma descontrolada.

“A assistência técnica para este setor é muito pequena. São pequenos produtores que não tem informação seja do Estado ou do Governo Federal.  Grande parte dos produtos que eles vendem depende muito da aparência. Um tomate com uma manchinha de fungo, um alface comido perde valor de mercado e por isso ele precisa proteger esta produção. São produtos altamente perecíveis. Colhem hoje para daqui há três ou quatro dias já estar no mercado, sendo consumidos. Grande parte dos produtos usados visa manter esta boa aparência”, afirma.

Para o biólogo e pesquisador Fernando Carneiro, falta informação sobre os perigos que o consumo de agrotóxicos pode trazer ao ser humano. “O máximo que já vi na televisão foram orientações sobre lavar as frutas e verduras antes de consumi-las. Mas sabemos que existem agrotóxicos que são sistêmicos e somente a lavagem dos vegetais não é suficiente para eliminar as substâncias tóxicas. Não há um investimento em campanhas de informação”.

No que se refere à informação, a novidade para este ano é o lançamento de uma cartilha informativa sobre os riscos dos agrotóxicos, iniciativa do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos, que faz parte do Plano Nacional de Agroecologia. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) também estão apoiando o processo de divulgação da cartilha, que será amplamente distribuída no país.

Soluções

Há medidas muito concretas que o país poderia adotar para frear esse abuso. Por exemplo, o fim da pulverização aérea, já banida em quase toda a Europa por causar dispersão dessas substâncias nocivas no meio ambiente. Apenas uma pequena parte do agrotóxico cai na planta, a maior parte fica no solo, na água e nas comunidades que moram no entorno das plantações.

“Uma das nossas bandeiras é o fim da pulverização aérea, pois uma pequena parte do agrotóxico cai na planta e grande parte cai no solo, na água e nas comunidades que moram no entorno. Temos populações indígenas pulverizadas por agrotóxicos que desenvolveram uma série de doenças, desde coceiras e tonteiras até câncer e depressão, levando ao suicídio e à má-formação fetal”, enfatiza Alan Tygel.

Mas tanto a indústria quanto o setor da aviação agrícola argumentam que suprimir a pulverização aérea reduziria em até 40% a produtividade das lavouras.

Tanto a indústria quanto o setor da aviação agrícola argumentam que suprimir a pulverização aérea reduziria em até 40% a produtividade das lavouras.

Outra medida defendida pelos ambientalistas é o fim da isenção de alguns impostos que o país a concede à indústria produtora de agrotóxicos. O preço de registro de novos agrotóxicos também funciona como incentivo ao setor. É de no máximo US$ 1 mil. Nos EUA, custa até US$ 630 mil.

Por último, o Brasil deveria banir a comercialização de princípios ativos proibidos em outros países. Um dossiê de 2012 da Abrasco aponta que, dos 50 produtos mais utilizados nas lavouras brasileiras, 22 são proibidos na União Europeia.

Qual é a alternativa? Para a indústria, não há. Segundo ela, uma alimentação 100% orgânica levaria a uma inevitável queda de produtividade e não só Brasil, mas o mundo teria grande dificuldade de suprir alimento para a população.

Ambientalistas, pesquisadores, produtores de orgânicos e o próprio Inca discordam. Dizem que se houvesse apoio de políticas públicas, crédito, pesquisa e assistência especializada seria possível construir um novo modelo agrícola, com alimentos livres de agrotóxico. Essa é uma bandeira deveria ser encampada. A saúde e o ambiente agradecem.


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