24/04/2024 - Edição 540

Judiciário

O papel do Judiciário e a intervenção militar

Publicado em 06/06/2018 12:00 -

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A greve dos caminhoneiros paralisou o Brasil. Para além da insatisfação com o preço do Diesel, é sabido que ela não se tratou de um movimento homogêneo do ponto de vista ideológico. De um lado, existiam grupos de caminhoneiros bolsonaristas e demandando intervenção militar; do outro, grupos pautando “Lula livre” e outros debates mais afeitos à esquerda.

A greve seguiu um caminho parecido com aquele percorrido por manifestações espontâneas e sem pautas específicas, em que uma profusão de ideologias anda pelas ruas, sejam elas mais à direita, sejam elas mais à esquerda. É comum escutar nesses lugares concepções autoritárias e exigências da volta de um regime repressivo governado pelos militares.

Embora vivamos num país supostamente democrático e, portanto, a pluralidade de ideias deve ser sempre mantida como um dos suportes do Estado Democrático de Direito, os pedidos por intervenção militar sempre chocam qualquer ouvido mais atento e vão de encontro à própria democracia em si.

Quando manifestações desse tipo são colocadas em evidência, sempre nos vem à mente a ideia de que faltam mais profundamente políticas de verdade e de memória sobre o que foi de fato a ditadura civil-militar no nosso país. Apesar da publicação do Relatório da Comissão Nacional da Verdade em 2014[1], ainda faz parte do imaginário popular a ideia de uma dita “branda” ou “ditadura suave”, subjazendo, ademais, o argumento de que não houve ditadura alguma.

A disputa pela memória e pela verdade é algo muito pungente em toda e qualquer sociedade, principalmente naquelas que passaram por períodos autoritários, como é o caso brasileiro. É importante ressaltar que não existe uma verdade única e absoluta, mas verdades que podem e devem coexistir entre si.

Visões deterministas do que sejam a história e a verdade tendem a reproduzir problemas inerentes à manipulação da verdade pelo regime de exceção, unificando a ideia de que ela é um meio de capitalizar politicamente ideologias ou versões do passado[2].

Os ativistas por uma justiça transicional mais densa e que defendem, sobretudo, novas verdades e novas memórias não desejam estabelecer sua verdade única e absoluta sobre os demais – como os militares e determinadas elites políticas vêm fazendo há décadas –, mas, sim, deixar intrínsecas ao seio social várias verdades disponíveis à população, para que ela possa interpretá-las e absorvê-las a partir de um viés crítico. A existência de uma única verdade é prejudicial à democracia, ao passo que a coexistência de verdades embasa os próprios princípios democráticos de pluralidade de ideias e ideologias.

A ideia de direito à memória, inclusive, conecta-se com o direito à verdade como forma de afirmar o direito das vítimas de construírem igualmente discursos com pretensões de verdade e apresentarem estes discursos ao Estado como meio de disputa democrática da versão oficial sobre o passado. Assim, visa a garantir a equidade destes cidadãos para com os outros, propiciando que sua história de luta também possa ser vista aos olhos de toda a sociedade[3].

Conquanto o regime brasileiro tenha tido índices de letalidade inferiores ao da Argentina, por exemplo[4], toda morte cometida pelo Estado é grave. É inconcebível que se qualifique uma ditadura como menos cruel ou até que se desqualifique seu caráter autoritário pela consideração de que as mortes foram “poucas” em detrimento das vítimas e do direito à memória. Além disso, a tortura foi largamente generalizada, expurgos no Judiciário, no Congresso e no serviço público foram efetivados e os direitos individuais sistematicamente violados[5].

Ainda assim, mesmo com essas informações, ainda persiste em parte da sociedade a concepção de que a ditadura brasileira foi necessária, expandiu os limites econômicos do país e de que foi benéfica à democracia. Não raro em manifestações como a greve dos caminhoneiros, atores políticos e sociais levantam como bandeira brasileira a demanda por uma nova intervenção militar diante da grave crise política pela qual passamos.

A título de comparação com os nossos vizinhos argentinos, segundo a Pesquisa Mundial de Valores de 2013, 1.9% da população total argentina acredita que ter um governo militar é muito bom; 8,0% considera relativamente bom; 22,7%, relativamente ruim; e 58,2% como muito ruim. No que tange a um governo democrático, 53,5% o considera como muito bom; 31,7% como relativamente bom; 5,5% como relativamente ruim; 2,2% como muito ruim[6].

No Brasil, em 2014, 7,3% considera que ter um governo militar é muito bom; 24.8% como relativamente bom; 35,2% como relativamente ruim; 24,8% como muito ruim. Em relação a um governo democrático, 24,8% considera como muito bom; 54,8% como relativamente bom; 9,3% como relativamente ruim; 4,6% como muito ruim[7].

De acordo com dados do Latino barômetro 2015, 70,1% da população argentina acreditava que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, em contraposição a 54,4% da população brasileira[8].

A comparação com os dados argentinos nos põe em situação de alarme. Por que estatísticas ainda expressivas demonstrando simpatia ao autoritarismo ainda fazem parte do nosso espectro social? Por que, mesmo com o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, ainda é difícil disputar a verdade de uma ditadura civil-militar contrária aos interesses da população?

Uma das possíveis respostas para isso, mas não só, é a própria atuação do Poder Judiciário durante a ditadura civil-militar e os vestígios autoritários que o integram ainda hoje. Neste texto, o que intento fazer é suscitar a reflexão sobre a própria colaboração do Poder Judiciário para a disseminação de uma história única e determinista do que foi a ditadura civil-militar em nosso país.

Anthony W. Pereira, em seu livro Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina, afirma que o Brasil, entre os três casos estudados, foi o que apresentou um maior grau de consenso entre as Forças Armadas e o Poder Judiciário, sendo esse consenso entendido como o grau de acordo existente entre os grupos poderosos no que se refere às ideias sobre segurança nacional e à sua aplicação[9].

O autor pondera que embora a violência letal tenha sido menor no Brasil que nos outros dois países objetos de análise, um grande número de pessoas foi levado a julgamento político. Para se ter uma ideia, a razão de levados a julgamentos e mortos no Brasil é de 23:1; na Argentina, 1:73; no Chile, 1,5:1[10].

Esses dados apontam para uma peculiaridade do caso brasileiro: a chamada judicialização da repressão. Por aqui, houve a possibilidade de se discutir perante o Judiciário a interpretação e o alcance das leis de segurança nacional, analisando-se os atos pelos quais eram acusados os dissidentes políticos e a sua subsunção às normas de segurança nacional. A Argentina, por exemplo, não se envolveu no sistema repressivo judicialmente, exceto para negar habeas corpus ou camuflar o terror estatal. Se, por um lado, esse aspecto ocasionou uma maior quantidade de mortes e desaparecidos na Argentina, pois a maioria das execuções era extrajudicial e não havia a garantia de direitos democráticos remanescentes; por outro, facilitou a existência de uma cultura jurídica menos atrelada ao autoritarismo[11].

Quando comparamos nosso caso ao argentino, essa argumentação fica ainda mais patente quando percebemos que, na Argentina, a Corte Suprema de Justicia de La Nación declarou as leis de autoanistia argentinas (Lei da Obediência Devida e Lei do Ponto Final) inconstitucionais em 2005[12], ao passo que no Brasil, em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, o Supremo Tribunal Federal reiterou anomalias históricas compartilhadas pelos defensores do regime militar, tais como o mito da simetria – a ideia de que as guerrilhas armadas possuíam aparato de violência equivalente ao utilizado pela Forças Armadas – e a alegação de que a Lei de Autonanistia de 1979 foi um grande acordo nacional entre os membros e as organizações da sociedade civil e o Estado[13].

Estamos, portanto, diante de uma contradição. Por um lado, a judicialização da repressão no Brasil permitiu um combate, mesmo que restrito, à doutrina da segurança nacional na sede dos tribunais. Inclusive, os advogados de defesa foram capazes de, pouco a pouco, reverter algumas das interpretações mais draconianas da lei de segurança nacional, conseguiram o reconhecimento dos juízes e tribunais em relação a alguns direitos individuais, como o direito à manifestação de determinadas crenças políticas e de possuir material subversivo – mas não de distribui-lo[14]. Por outro, entretanto, tamanha judicialização permitiu que esse “modo de fazer” a justiça deixasse seus legados na estrutura do Poder Judiciário.

Nesse sentido, aduz Leonardo Avritzer[15], no Livro Democracy and The Public Space in Latin America, que restaurar o Estado de Direito é, talvez surpreendentemente, mais fácil em países em que o sistema legal não teve qualquer autonomia durante o regime autoritário (como Argentina e Chile) que em países os quais desenvolveram uma forma semilegal de autoritarismo e tiveram maior continuidade legal entre o autoritarismo e a democracia (como Brasil e México). Isso acontece porque quando o autoritarismo mudou a estrutura do Estado de Direito nesses países, tornou-se praticamente impossível aplicar o Estado de Direito em relação ao período prévio à democratização.

A ideia desse paradoxo faz completo sentido quando nos deparamos com algumas razões apontadas por Anthony W. Pereira do porquê de se adotarem os julgamentos a crimes políticos, dentre as quais destaco: 1) aumentar o preço da oposição, intimidando-a, tachando-a de criminosa, envolvendo-a em batalhas legais onerosas e impedindo-as de realizar um papel político; 2) o desejo do regime de auferir para si legitimidade ou, minimamente, aquiescência passiva a seu poder. Os tribunais detêm vigorosa carga simbólica, emprestando um ar de gravidade e ponderação até mesmo às acusações mais forjadas e aos procedimentos mais gritantemente injustos; 3) criar um efeito psicológico em meio à opinião pública e imagens políticas eficazes que ponham determinados atores nos papéis de vilões e outros nos de heróis. Os julgamentos podem se tornar parte de uma memória histórica que reitera a aceitação irrefletida do domínio exercido pelo regime[16].

Investigar a atuação do Poder Judiciário, logo, dialoga diretamente com a necessidade de disputar a reconstrução da história sobre o que foi o período do regime militar. A judicialização da repressão, se vista de forma grosseira, pode incutir em nós justamente a ideia de que a ditadura civil-militar teve ares de legitimidade e preservou os direitos individuais dos cidadãos, uma vez que, em tese, os presos políticos teriam tido acesso a “julgamentos justos” e dentro de parâmetros legais.

Temos que ter em mente, igualmente, que dificilmente o uso de autoritarismo durante décadas numa instituição apaga-se por completo por meio de reformas. Precisamos estar sempre em vigília para que nossos direitos não sejam dirimidos por meio de supostas “legalidades”.

Agregar à atuação do Poder Judiciário o já nosso fortalecido e, por muito tempo, oficial esquecimento das atrocidades do regime não parece ser a saída. A relação profunda desse Poder com o autoritarismo e seus lastros na estrutura atual merecem análises densas e reiteradas.

Iniciar a reflexão de como os meios judiciais podem atuar para disseminar a ideia de uma “ditadura suave” é um primeiro passo para que, no futuro, demandas pela intervenção militar já não subsistam mais.

Magno Francisco Sátiro Catão – Especialista em Direito Administrativo (UFRN) e Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


[1] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Verdade. v. 1. Brasília: CNV, 2014.

[2] TORELLY, Marcelo Dalmas. Justiça transicional e Estado Constitucional de Direito: perspectiva teórico-normativa e análise do caso brasileiro. 2010. 355 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2010, p. 238

[3] Ibidem, p. 241.

[4] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 41-42.

[5] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Verdade. v. 1. Brasília: CNV, 2014.

[6] World Values Survey Data & Documentation. Disponível em: http://www.worldvaluessurvey.org/WVSContents.jsp. Acesso em: 30 mai. 2018.

[7] Idem.

[8] Latinobarometro 2015. Apoio a la democracia. Disponível em: <     http://www.latinobarometro.org/latOnline.jsp>. Acesso em: 30 mai. 2018.

[9] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 41-42

[10] Ibidem, p. 58-59.

[11] SANTOS, Roberto Lima; BREGA FILHO, Vladimir. Os reflexos da “judicialização” da repressão política no Brasil no seu engajamento com os postulados da justiça de transição. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, n.1, p.152-177, jan./jun. 2009, p. 58-59.

[12]  OLIVEIRA, Aécio Filipe Coelho Fraga; CRUZ, Maria Gabriela Freitas; OLIVEIRA, Mariana Rezende. O arcabouço jurídico da Justiça de Transição: comparações teórico-práticas entre Brasil e Argentina. In: MEYER, Emílio Peluso Neder; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.). Justiça de Transição nos 25 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: Initia Viva, 2014, p. 148-149.

[13]  SUPREMO Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 Distrito Federal. Coordenadoria de Análise da Jurisprudência, 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=612960&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20ADPF%20/%20153>. Acesso em:  30 mai. 2018. 

[14]   PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 211.

[15]  AVRITZER, Leonardo. Democracy and the public space in Latin America. New Jersey: Princeton Press, 2002, p. 105.

[16]  PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 71

 


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