20/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Manifestar-se é um direito?

Publicado em 30/05/2018 12:00 -

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O direito de manifestação constitui faculdade assegurada aos brasileiros e estrangeiros residentes no país e se encontra previsto no art. 5°, inciso XVI, da Constituição Federal de 1988, que dispõe que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido o aviso à autoridade competente”[1].

No entanto, encontra-se em curso no país um processo camuflado de criminalização das manifestações populares que contrariam os interesses das classes hegemônicas. Tal processo é antigo e teve início com a atuação estatal realizada na Revolta da Vacina, em 1904.

Na época, o Rio de Janeiro era a capital do país e vivia um processo de crescimento desordenado. O aumento do número de cortiços e favelas e a precariedade das redes de esgoto e coleta de lixo contribuíram para a proliferação de doenças como a febre amarela, a varíola, o tifo e a peste bubônica. A elite urbana, descontente com o cenário em que vivia, exigiu políticas de adequação da cidade às suas necessidades burguesas. Para tanto, o governo de Rodrigues Alves instituiu políticas de reurbanização, saneamento e higienização da cidade. Essas políticas pautaram-se na destruição de cortiços e na vacinação obrigatória, que era feita por meio de métodos autoritários.

Revoltada com a violência e com os assédios que vinha sofrendo, a população atingida por tais reformas foi às ruas e se utilizou dos métodos que possuía para realizar ataques à cidade e destruir bondes, trens e bases policiais.Como resposta, o governo federal decretou estado de sítio na cidade e utilizou-se da força policial para efetuar prisões, violações de domicílios e deportações de manifestantes para trabalharem compulsoriamente na floresta amazônica e em outras regiões distantes. Dados da época apontam para o saldo de 945 presos e 23 mortos.[2]

Mais de cem anos separam a Revolta da Vacina das Jornadas de Junho de 2013, mas em comum ambas representam uma expressão do processo descriminalização do direito de manifestação, que atualmente tem se dado por práticas realizadas em âmbito dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Junho de 2013 teve por estopim o anúncio de aumento de 20 centavos no valor da tarifa de transporte público na capital paulista. Liderada pelo Movimento Passe Livre (MPL), a primeira mobilização teve início no dia 6 junho e contou com a participação de aproximadamente dois mil manifestantes.

No 4º ato de protesto junino verificou-se uma inversão na abordagem dada pela mídia ao fenômeno das manifestações. Realizado no dia 13 de junho, o ato contou com a participação de 20 mil participantes segundo o MPL, e 5.000 conforme a Polícia Militar. A atuação truculenta da polícia durante o evento deixou um saldo de aproximadamente duzentas detenções e provocou uma virada na opinião pública acerca dos protestos.

Até então o tratamento que os manifestantes recebiam na mídia resumia-se a um termo/denominador: vândalos. A violência policial contra os manifestantes, que já havia acontecido no ato anterior, nesse 4º ato foi de tal ordem que provocou repulsa e revolta na população. A polícia tratou a todos como inimigos, houve centenas de feridos, muitas prisões e muita indignação.[3]

Com ampla repercussão midiática, os protestos que a princípio possuíam pautas delimitadas na seara do transporte público ganharam maior adesão popular e passaram a abordar temas como a conjuntura de “inferno urbano” existente nas grandes metrópoles brasileiras.

A partir de então o cenário de mobilização nacional se alterou, verificando-se a presença do que Gohn denomina como “novíssimos” movimentos sociais de protesto. Tais coletivos caracterizam-se por possuírem correntes políticas, culturais, ideológicas e campos de ação diversos e o que os motivam pode ser sintetizado como um sentimento de descontentamento, desencantamento e indignação contra a conjuntura ético-política dos dirigentes eleitos, as prioridades selecionadas pelas administrações públicas e os efeitos das políticas econômicas na sociedade.

A mobilização de junho, que nasceu com um caráter apartidário, transformou-se em um movimento despolitizado, de indignação generalizada contra o Estado e seus representantes. Assim, “em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção.”[4]

Após a eclosão das jornadas de junho, o Congresso Nacional se mobilizou para votar em caráter emergencial o PLnº 204/2011, que estabeleceu como crimes hediondos a concussão, a corrupção passiva e a corrupção ativa, bem como majorou suas respectivas penas, em uma clara expressão de “populismo punitivo” que teve por intuito angariar votos e ir de encontro aos anseios populares expressados pelas massas.

Neste lapso temporal de cinco anos que nos separa de junho de 2013, megaeventos como a Copa do Mundo FIFA e os Jogos Olímpicos deixaram um saldo de inúmeras violações ao direito de manifestação no Brasil.

A criminalização das manifestações populares se operou por meio do processo de criminalização primária e secundária. Sauer preceitua que criminalizar não é utilizar a força policial para reprimir manifestações (tratar como “caso de polícia”), mas é transformar (caracterizar ou tipificar) uma determinada ação em um crime. Utilizando mecanismos legais, a intenção é fazer com que ações e pessoas sejam vistas e julgadas (pela opinião pública, pelo órgão estatal responsável) como atos criminosos e bandidos (iniciativas feitas à margem da lei). [5]

A criminalização primária do direito de protesto corresponde à seletividade do processo legislativo, em que a norma penal é elaborada de modo a direcionar-se a determinados destinatários individualizados de acordo com os anseios dos grupos dominantes.

Nessa seara, apreende-se do levantamento realizado pela ONG Artigo 19 que atualmente tramitam no Congresso 59 projetos de lei atinentes à matéria e que ampla maioria deles visam impor algum tipo de restrição ou criminalização em detrimento dos que buscam estabelecer salvaguardas para o exercício do direito de manifestação.[6]

Merece destaque também a aprovação da Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/16), que foi altamente criticada em seu projeto de lei inicial, por possuir um texto amplo e genérico, de modo a ensejar o enquadramento como terroristas de condutas realizadas na conjuntura dos protestos.

A criminalização secundária corresponde à ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que se desenvolve desde a investigação policial até a imposição de uma pena que, necessariamente, se estabelece através de um processo seletivo. Ela opera nas instâncias formais de controle e aplicação da lei, por meio de ações e reações de autores como a Polícia, o Judiciário e o Ministério Público.

A título de exemplo, no dia 24 de maio de 2017, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, caput, incisos IV e XIII, da Constituição, o Presidente Michel Temer autorizou o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no Distrito Federal no período compreendido entre os dias 24 e 31 de maio, em que diversos grupos se mobilizavam para protestar na capital do país. 

Ocorre que a atuação das Forças Armadas é disciplinada na lei apenas em hipóteses em que o policiamento ostensivo não é suficiente, o que não foi verificado no caso em questão. Houve, por parte do Presidente, evidente abuso, que explicitou a fragilidade existente entre o direito de manifestação constitucionalmente previsto e a sua real efetivação. Qualquer semelhança com a decretação de estado de sítio ocorrida em 1904, na Revolta da Vacina, não é mera coincidência.

Inúmeras arbitrariedades e violações ao direito de manifestação também são comumente observadas em âmbito policial, destacando-se a ausência de identificação dos policiais militares em suas fardas, a utilização ostensiva da tropa de choque nas manifestações, como forma de constranger e limitar o acesso dos manifestantes aos locais de concentração dos atos, a utilização desproporcional de todo um aparato de armas “menos letais”, a ocorrência de revistas pessoais arbitrárias e a abertura de Inquéritos Policiais genéricos.

O Poder Judiciário corrobora o processo de criminalização das manifestações populares, a medida que atua com discricionariedade em face das demandas a ele submetidas e se esquiva de conflitos com as demais agências não judiciais.

Zaffaroni descreve este poder em nossa região marginal como uma verdadeira “maquina de burocratizar”. Segundo o autor, as agências não judiciais dos sistemas penais latino-americanos na prática possuem poderes para impor penas, violar domicílios e segredos de comunicação, privar de liberdade qualquer pessoa sem culpa ou suspeita, realizar atos de instrução e ocupar-se de tudo o que a burocracia judicial lhe deixa por menor esforço. [7]

O magistrado, salvo honrosas exceções, encaixa-se no modelo descrito por Alberto Alonso Muñoz, ao passo que não reflete criticamente sobre sua decisão, podendo ser considerado cumpridor mecânico de normas, pelo mero fato de estarem vigentes. É o aplicador, por convicção irrefletida, de uma jurisprudência “consolidada”. Essa é a forma mais monstruosa: nele, não há o não-querer pensar, que ainda lhe apresenta uma escolha ética. Há apenas o “não-pensar” burocrático daquele que se tornou mera peça da engrenagem.[8]

Rubens Casara também entende que o Poder Judiciário afastou-se da sua função de garante da democracia para produzir decisões ao gosto da opinião pública, que coincide com a opinião publicada pelos grupos econômicos que detém os meios de comunicação de massa. Ele relata ter se aprofundado a tendência de normalizar o afastamento dos direitos fundamentais, em especial daqueles que não interessam à sociedade do consumo.[9]

Assim, ante ao fato de o exercício do direito de manifestação compreender um dos poucos meios capazes de afrontar os princípios de concentração de riqueza e poder, o Estado tem utilizado o seu aparato repressor para intimidar manifestantes a continuarem submissos e ordeiros, sob a ameaça de serem vítimas de agressões físicas durante os atos e/ou figurarem como réus em processos que busquem imputar-lhes condutas tidas como ilícitas.

Caracteriza-se, portanto, a ocorrência de um Estado “Pós-Democrático”, que pode ser conceituado como um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder. Nele, a democracia permanece, não mais como um conteúdo substancial e vinculante, mas como mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador.

Apesar de todo o exposto, o ativista Igor Mendes[10], em seu livro “A pequena prisão” (2017, p. 369/370), nos deixa uma importante lição:

É inegável que a vida da imensa maioria do nosso povo se parece muito com um pesadelo. As calçadas das grandes cidades brasileiras parecem dormitórios, as favelas imensas prisões a céu aberto, as prisões odiosas câmaras de tortura. […] Penso que a sociedade ‘livre’ vai abrindo os olhos para os tormentos que a cercam como se fossem grades. Depois de 2013, a luta popular ganhou novas formas, jamais voltando à aparente calmaria anterior. A grande contribuição das Jornadas de Junho foi justamente esta: aprendemos, como povo, a dizer NÃO. Daí, para acertarmos o caminho por onde andar, não falta muito. O pesadelo tem que acabar e acabará. Nenhuma lei divina nos condena a suportá-lo eternamente.[11]

Carregando esta esperança de um ativista que, mesmo diante de toda a arbitrariedade a ele dispensada, não se resignou e se manteve firme na luta pela construção de um “outro mundo possível”, ousemos denunciar (e nos rebelar contra) essa conjuntura de criminalização dos movimentos sociais de protesto atualmente vigente.

Mariana Pinto Zoccal – Mestranda em Direito pela Universidade Estadual “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF), pesquisadora associada ao Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).


[1] Atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) o Recurso Extraordinário 806339 / SE, que discute questões como a necessidade do aviso prévio ser formal, se ele deve ser entregue a alguma autoridade específica, se será fixado determinado prazo e qual deve ser o conteúdo desta notificação.

[2]OLIVEIRA, Steevan. A tropa de choque e as manifestações de rua. 2 ed. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2017.

[3] GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 27.

______. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. 1 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2017.

[4] CHAUÍ, Marilena. As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Teoria e Debate, 27 jun. 2013. Disponível em: <http://www.teoriaedebate.org.br/materias /nacional/manifestacoes-de-junho-de-2013-na-cidade-de-sao-paulo>. Acesso: 26 jun. 2015.

[5] SAUER, Sérgio. Processos recentes de criminalização dos movimentos sociais populares. Brasília, set. 2008, p. 02. Disponível em: < http://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2008/10/Processos-recentes-de-criminaliza%C3%A7%C3%A3o-dos-movimentos-sociais-populares.pdf>. Acesso: 17 ago. 2015.

[6] ARTIGO 19. Sobre o site. Disponível em: <https://projetosdelei.protestos.org/?page_id=857>. Acesso em: 20 mar. 2018.

[7] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 141.

[8] MUÑOZ, Alberto Alonso. Eichmann em Jerusalém e a banalidade do mal na decisão do juiz. Jornal da AJD. Ano 14, n. 52, jan/mar 2011, p. 07. Disponível em: < http://www.ajd.org.br/arquivos/publicacao/71_democracia_52.pdf>. Acesso: 16 ago. 2015.

[9]CASARA. Rubens. Brasil em fúria: democracia, política e direito. 1 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2017, p. 129.

______. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017, p. 23.

[10] Igor Mendes é graduando em Geografia pela UERJ, ativista e um dos 23 processados, no Rio de Janeiro, por participar de manifestações durante a Copa do Mundo de 2014. Sua prisão preventiva fora decretada por desrespeitar medida cautelar que proibia a sua participação em novas manifestações e protestos. Encaminhado para o complexo penitenciário de Bangu, Igor relata no livro “A pequena prisão” as experiências por ele vividas no cárcere.

[11] MENDES, Igor. A pequena prisão. 1 ed. São Paulo: n-1 edições, 2017.


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