28/03/2024 - Edição 540

Especial

O ciclo da violência

Publicado em 16/05/2018 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O Brasil teve no ano passado 5.012 pessoas mortas por policiais – 790 a mais que em 2016. No mesmo período, 385 policiais foram assassinados – número menor que o do ano anterior. É o que mostra um levantamento feito com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.

O número de vítimas em confronto com a polícia cresceu 19% em um ano. Já o de policiais mortos caiu 15% – foram 453 oficiais assassinados em 2016.

O dado, inédito, compreende todos os casos de “confrontos com civis ou lesões não naturais com intencionalidade” envolvendo policiais na ativa (em serviço e fora de serviço).

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O levantamento revela que:

– O Brasil teve 5.012 pessoas mortas por policiais no ano passado – um aumento de 19% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 4.222 vítimas

– A taxa de mortes pela polícia a cada 100 mil habitantes subiu e está em 2,4

– O Amapá é o estado com a maior taxa de mortes por policiais: 8,3 a cada 100 mil

– O país teve 385 policiais assassinados em 2017 (menos que em 2016, quando 453 oficiais foram mortos)

– O Rio de Janeiro é o estado com o maior número absoluto de mortos por policiais (1.127) e de policiais mortos (119)

– São Paulo é o estado com a maior proporção de mortes por policiais sobre o total de crimes violentos: 19,5%

Para Bruno Paes Manso, do NEV-USP, em vez de trabalharem para reduzir as taxas de homicídios, as polícias de alguns estados brasileiros têm sido responsáveis pelo agravamento do quadro de violência ao registrar uma quantidade crescente de mortes durante o patrulhamento. “Nos últimos anos, o problema piorou principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, onde estão oito das dez polícias mais letais do país.”

Segundo Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, diretores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de mortos em decorrência de intervenções policiais mostra que o Brasil está flertando com a barbárie. "Geralmente justificadas como sinônimo da eficiência policial, que chega mais rápido ao local da ocorrência, ou como resposta ao aumento da criminalidade, o fato é que o aumento demonstra o completo descontrole do Estado brasileiro."

"Mais preocupante ainda é verificar que quase três centenas de policiais foram mortos fora do serviço, em situações que desconhecemos por completo", afirmam.

Vítimas da polícia: revolta e dor

O Amapá é, mais uma vez, o estado com a maior taxa de mortos pela polícia do país: 8,3 a cada 100 mil habitantes – bem acima da média nacional (2,4). Foram 66 pessoas mortas pela polícia em 2017.

Em janeiro do ano passado, Brendo Pinheiro foi morto por um policial em Macapá. Segundo a PM, ele atirou antes. A irmã diz que ele foi executado pelos policiais e que não foi ouvida pelas autoridades. "Eu abri a veneziana do lado, quando vi eles colocarem a arma na mão do meu irmão e atirarem na parede. Depois, forjaram o tiroteio", conta.

Para o secretário da Segurança do Amapá, Carlos Souza, o alto índice de mortes por intervenção policial no estado é reflexo de um escalonamento do crime. “A taxa aumentou. É um número preocupante. Mas hoje tenho certeza que esses homens estão indo para a rua para proteger as pessoas e têm a sua vida ameaçada. Considero que houve um aumento do enfrentamento da criminalidade.”

Comandante-geral da PM em 2015 e 2016, ele diz que a missão da corporação “é sempre preservar a vida, nunca tirá-la". "Nós somos signatários do método de preservação da vida, do coronel Giraldi, onde temos uma doutrina específica de quando usar a arma de fogo. Desde a formação de soldado todos passam por isso. Intensificar treinamento é sempre muito importante.“

Segundo Souza, para interromper esse ciclo de violência é preciso prevenção. “O policiamento de proximidade é fundamental. E a repressão precisa ser extremamente qualificada, com o fortalecimento de todas as agências de inteligência", diz.

No estado de São Paulo, foram registradas 940 pessoas mortas por policiais. O estado fica apenas atrás do Rio de Janeiro no número absoluto de mortes. E aparece na primeira posição se for considerada a proporção de mortes cometidas por policiais sobre todos os crimes violentos: 19,5%. Isso significa que um em cada cinco assassinatos cometidos no estado tem um policial como autor.

O mecânico Eduardo Alves dos Santos, de 49 anos, faz parte das estatísticas. O crime aconteceu em 16 de janeiro, em Itapevi, na Grande São Paulo, quando a mulher dele, Fernanda Camargo, acionou a Polícia Militar para ajudá-la a tirar seus pertences de casa.

Ela conta que chamou a polícia por temer que o marido ficasse irritado com sua saída de casa. Santos morreu cerca de três horas e meia depois de ser agredido pelo policial militar Adriano Soares de Araújo. “Eu não chamei a polícia para matá-lo. Eu chamei a polícia para me ajudar”, diz.

“A morte do meu marido não foi porque meu marido tropeçou e bateu a cabeça. A morte do meu marido não foi porque levou um tiro de um bandido. Não. Meu marido foi espancado por um policial dentro da minha casa”, diz Fernanda Camargo, viúva de Eduardo dos Santos.

A Secretaria da Segurança de São Paulo diz que desenvolve ações para redução da letalidade policial. "Uma delas foi a implantação da resolução SSP 40/15, que visa garantir maior eficácia nas investigações de mortes, com o comparecimento das Corregedorias e dos comandantes da região, além de equipe específica do IML e do IC. Os casos só são arquivados após minuciosa investigação pelas polícias a pedido do Ministério Público e ratificação do Judiciário."

"Toda a ocorrência é acompanhada, monitorada e analisada para constatar se a ação policial foi realmente legítima. Em 2017, o índice de suspeitos que morreram após entrarem em confronto com a polícia foi de 18%. Também no ano passado foram presos em flagrante 152.448 pessoas contra 687 que morreram ao confrontar a polícia durante o serviço. Assim, o total de mortos sobre o universo de pessoas presas representa 0,45%", diz a pasta.

Sobre a morte do mecânico, a secretaria diz que o PM foi indiciado e está afastado do serviço operacional. "O Inquérito Policial Militar (IPM) também foi concluído e encaminhado à Justiça Militar. O processo está em instrução na 4ª auditória, avocado pela Corregedoria e o resultado foi lesão qualificada com resultado morte."

No Rio de Janeiro, que lidera as estatísticas em números absolutos (1.127) e tem a segunda maior taxa do país (6,7 mortes a cada 100 mil habitantes), o caso de Maria Eduarda Ferreira, de 13 anos, não é esquecido. A garota foi atingida por um tiro no pátio da escola em Acari, na Zona Norte do Rio, durante uma aula de educação física.

O responsável pelo tiro foi um cabo da PM. A Divisão de Homicídios do Rio concluiu que o policial assumiu o risco de matar ao fazer disparos na direção da escola, de onde dois criminosos também atiravam.

“Uma revolta, né, por ela ser morta dentro da escola, de uma forma brutal. (…) Quando eu lembro dela, é isso, é que eu nunca mais eu vou tê-la. Nem eu, nem minhas irmãs, nem minha mãe, nem o pai”, diz Uidson Ferreira, irmão de Maria Eduarda.

A Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro diz que tem diretrizes para as polícias Civil e Militar, referentes aos protocolos operacionais para áreas sensíveis, "localidades onde é elevado o risco de confronto armado com infratores da lei em decorrência de operações policiais com o objetivo de preservar a vida dos moradores e dos agentes da lei".

"Por meio do Exército Brasileiro, o Gabinete de Intervenção Federal disponibilizou as estruturas do Exército Brasileiro no Rio de Janeiro para treinamentos periódicos dos policiais militares – que ocorrem também na sede do Comando de Operações Especiais", afirma a secretaria.

Falta de padronização e transparência

O levantamento durou mais de um mês e meio. Os dados foram solicitados via Lei de Acesso à Informação (sob a mesma metodologia utilizada nos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e também foram pedidos às assessorias de imprensa das secretarias da Segurança. O resultado: informações desencontradas e incongruentes.

Em Alagoas, por exemplo, o comando da PM enviou por meio da Lei de Acesso a seguinte resposta à pergunta sobre o número de pessoas mortas pela PM em serviço: “Nada registrado”. Já a assessoria da secretaria informou o dado: 117 vítimas.

A situação não foi muito diferente no Rio de Janeiro. A assessoria de imprensa da Polícia Militar afirmou que houve 80 mortes de policiais militares na ativa fora de serviço em 2017. Já o dado enviado pela Lei de Acesso à Informação, em resposta ao 2º recurso formulado pela reportagem, foi outro: 92 mortes. O Instituto de Segurança Pública (ISP) e a PM informam que usam metodologias diferentes para chegar aos números.

No Espírito Santo, ocorreu o contrário: a assessoria passou que eram 13 as vítimas mortas por policiais. O dado via Lei de Acesso, no entanto, se revelou bem maior: 39. A explicação dada, depois, pela secretaria foi que o primeiro dado não comportava os oficiais de folga.

Em Roraima, a informação passada pela assessoria era a de que nenhum policial militar fora de serviço havia morrido. Mas, via LAI, o dado também foi outro: um PM morto em 2017. Houve algo parecido no Amapá. O dado passado de 56 pessoas mortas pela polícia contrastou com o enviado pela Lei de Acesso dias depois: 66.

No Rio Grande do Norte, a resposta dada pela LAI também foi diferente da enviada pela assessoria em relação aos policiais mortos: 18 e 12, respectivamente. O primeiro número, no entanto, incluía PMs aposentados (esclarecimento que só foi feito após questionamento da reportagem).

Em alguns casos, o mesmo pedido, feito da mesma forma, foi respondido, sem explicação, de forma diferente. Foi o que aconteceu na Bahia. A reportagem pediu os dados seguindo o padrão metodológico utilizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que, por sua vez, fez a mesma solicitação para a publicação do anuário no fim do ano. A reportagem recebeu um número, e o Fórum, outro.

O mesmo aconteceu em Pernambuco. Após ser questionada sobre as diferenças nos dados recebidos pela reportagem, a assessoria de imprensa corrigiu as informações para os mesmos números recebidos pelo Fórum, bem mais altos.

A reportagem  teve de sanar todas essas disparidades para chegar aos dados finais e dar uma confiabilidade maior à estatística.

Em alguns estados, porém, não foi possível comparar os dados porque o pedido da Lei de Acesso à Informação não foi nem sequer respondido. É o caso de Rondônia, onde o requerimento continua em tramitação, sem previsão de resposta. O pedido, no entanto, foi protocolado em 26 de março.

Já o Tocantins, por exemplo, não mandou os números da Polícia Civil mesmo após o prazo ter expirado. Cobrada, a Controladoria Geral do Estado enviou uma nota: “Informamos que, devido à cassação do governador Marcelo Miranda, à posse do governo interino e a várias alterações dos responsáveis pelos setores dos órgãos, o atendimento da solicitação não foi possível ser realizado”.

Em outros dois estados, parte dos dados não foi enviada nem pela assessoria nem pela LAI. Isso significa que o número de vítimas pode ter sido ainda maior.

O que eles dizem:

– Mato Grosso do Sul: não enviou os dados de pessoas mortas por policiais civis. A reportagem entrou com recurso em 1ª instância via Lei de Acesso para conseguir as informações, mas recebeu a recomendação da própria Ouvidoria de entrar com um segundo recurso, já que os dados não foram disponibilizados

– Pernambuco: não informou o número de pessoas mortas por policiais de folga. Os dados constam como “não disponíveis”

Polícia que mata, polícia que morre

Foi na tarde de 13 de julho de 2017 que Ricardo Nascimento, de 39 anos, entrou para uma triste estatística: tornou-se uma dentre as 940 vítimas fatais de intervenções policiais no Estado de São Paulo registradas no ano passado. Negão, como era chamado, foi um carroceiro bastante conhecido e querido da região de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. Na tarde em que foi vítima da ação policial, Negão parecia alterado, e gritava na rua com um pedaço de madeira na mão. Um policial recém-formado o interpelou e, antes que pudesse obedecer, foi atingido por dois tiros na região do tórax.

O boletim de ocorrência afirma que o policial militar foi obrigado a se defender, o que justificava o homicídio praticado. Já os relatos de testemunhas e as cenas gravadas pela câmera de um prédio evidenciam o brutal despreparo do agente, que estava a metros de distância e desrespeitou todos os protocolos de uso da força na ocorrência.

São Paulo, reconhecido nacionalmente como o principal caso de sucesso na redução dos homicídios, cuja redução ultrapassa 70% desde o ano 2000, assume hoje uma liderança ingrata: 1 em cada 5 assassinatos do estado tem a autoria de policiais, a maior proporção do país.

Mas este problema não se restringe às polícias paulistas. Casos como esse acontecem diariamente em todo o país e não há como estimar quantas dessas mortes podiam ter sido evitadas. O número de mortos em decorrência de intervenções policiais divulgado pelo Monitor da Violência mostra que o Brasil está flertando com a barbárie.

Em março, a divulgação dos indicadores de homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte mostrou um aumento de 2,7% em relação a 2016. Agora, o indicador de letalidade da polícia apresentou crescimento de 18,7% no mesmo período, indicando um total descontrole das forças policiais em diversos estados.

Todos estes casos foram registrados como morte decorrente de intervenção policial/resistência seguida de morte, ou seja, supõem que os policiais fizeram uso da força em legítima defesa e no estrito cumprimento do dever legal. Casos de homicídio, feminicídio ou mesmo envolvimento de policiais em chacinas e execuções sumárias não estão incluídos nessa conta.

Ainda mais grave é constatar que as mortes decorrentes de intervenções policiais já são a segunda causa de assassinatos em todo o Brasil, ultrapassando os feminicídios (946) e os latrocínios (2.447). Isso significa dizer que na terra do samba e do futebol é mais provável ser vítima de um tiro da polícia do que ser morto por um assaltante durante um roubo.

Geralmente justificadas como sinônimo da eficiência policial, que chega mais rápido ao local da ocorrência, ou como resposta ao aumento da criminalidade, o fato é que o aumento da letalidade policial demonstra o completo descontrole do Estado brasileiro sobre suas forças policiais. Não à toa, o Brasil foi condenado na OEA ano passado pelas chacinas ocorridas na Comunidade Nova Brasília, durante operações policiais no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, em 1994 e 1995.

As mortes de policiais

Um fenômeno sobre o qual sabemos muito pouco diz respeito às circunstâncias dos assassinatos de policiais no Brasil. Se a princípio podemos comemorar a redução de 15% nos homicídios de policiais entre 2016 e 2017, pouco sabemos sobre como chegamos a esse resultado.

Dos 385 policiais assassinados em 2017, 91 estavam no horário de serviço quando foram mortos e 294 foram mortos fora do horário de trabalho. De um lado, isso revela que os policiais estão menos expostos durante o expediente, quando estão com a equipe, viatura, rádio e todo o apoio da corporação. Ainda assim, é inconcebível olhar para essa estatística como algo positivo porque nenhum policial devia ser morto por cumprir sua função. Esse número é muito elevado sob qualquer critério internacional, assim como em comparação com outras carreiras. Não seria um escândalo se 91 juízes ou médicos tivessem sido assassinados enquanto trabalhavam no ano passado?

Mais preocupante é verificar que quase três centenas de policiais foram mortos fora do serviço, em situações que desconhecemos por completo, mas cujas hipóteses são: policiais morrem durante o “bico” como segurança particular, um mecanismo para complementar renda que faz parte do cotidiano da grande maioria dos profissionais de segurança; policiais morrem porque são levados a crer que são “policial 24 horas”, estando sempre armados e prontos a reagir a qualquer situação, mesmo sem apoio operacional; policiais morrem simplesmente porque são policiais, e no mundo do crime a cabeça de um policial vale muito; maus policiais morrem porque estão envolvidos com a criminalidade.

Não é raro vermos políticos ou mesmo lideranças das organizações policiais verbalizando a máxima de que bandido bom é bandido morto. Em uma sociedade aterrorizada em que os índices de violência só crescem, é natural que discursos de ordem a qualquer custo seduzam eleitores reféns do medo. Mas para além das retóricas de gabinete, permeadas de adjetivos que pintam as ruas das cidades brasileiras como cenários de guerra, o fato é que uma política de segurança baseada no enfrentamento violento não produz nenhum resultado positivo, nem para a polícia nem para a sociedade.

Se assim o fosse, após mais de um milhão de assassinatos nos últimos 20 anos, o Brasil viveria em plena paz dos cemitérios e é exatamente o contrário disso o que acontece. Vamos naturalizando a violência e os políticos vão “dobrando as metas de mortos”, quase que como em um moto perpétuo. Ninguém tem coragem de parar e buscar soluções que garantam a segurança pública como fator de cidadania e de desenvolvimento.

Nesse movimento, tratar os policiais como “heróis” é a melhor desculpa que um político pode ter para privá-lo do instrumental mais básico de trabalho. Heróis não precisam de bons salários, armas de fogo de qualidade ou seguro de vida, apenas de sua coragem. A propaganda ideológica de policiais heróis é perversa e faz com que a população aplauda medidas extralegais e, em especial, faz com que os policiais tenham seus direitos desrespeitados e vilipendiados. Policial é trabalhador e servidor público e precisa ser valorizado e respeitado.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *