25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

O nosso conservadorismo

Publicado em 25/04/2018 12:00 -

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O sociólogo Daniel Estevão Ramos de Miranda, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos e coordenador do curso de Ciência Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), afirma que o brasileiro não está mais conservador. Para ele, somos conservadores no comportamento, mas não tanto na economia. Miranda destaca, no entanto que as pautas conservadoras de caráter moral têm dominado o debate político no Brasil. Parte deste processo é fruto de problemas estruturais da democracia brasileira, que fazem com que parcela da sociedade atribua a própria democracia os problemas que, na verdade, são causados pelo enfraquecimento dela. “O Brasil não conseguiu garantir ao cidadão alguns direitos básicos. Num determinado momento, o cidadão começa a identificar esse problema não como um problema que deva ser superado com mais democracia, mas como algo gerado pela própria democracia”, afirma. Confira a entrevista.

 

O brasileiro está mais moralista?

Tentando fazer uma análise histórica, por um lado a sociedade brasileira é conservadora em determinados pontos, mas não em outros. Aquelas categorias de esquerda e direita, às vezes, engessam a análise, mas querendo ou não elas servem de referência. Nos últimos anos têm havido pesquisas de opinião tentando medir o posicionamento do brasileiro, e o interessante é que essas pesquisas, de maneiras diferentes, apontam que a população, de maneira geral, tende a ser um pouco mais conservadora em pautas que a gente poderia chamar de “morais”, ou seja, que remetem ao comportamento, mas não necessariamente conservadoras quando se trata de economia. Se a gente pega as divisões de esquerda e direita de maneira abstrata, em geral, as pessoas de direita tendem a ser mais conservadoras no ponto de vista moral e mais liberal no ponto de vista econômico. Pois bem, o que a gente observa é que há uma tendência do brasileiro em ser conservador em relação a pautas morais. Então, quando você toca em temas como descriminalização do aborto, descriminalização da maconha, redução da maioridade penal, regulação de comportamento sexual, educação de crianças e jovens, posse de armas, papel da polícia, direitos humanos a gente percebe nitidamente o conservadorismo. Agora, quando você vai para o lado econômico, o que se consideraria como sendo conservadorismo é o liberalismo econômico, mas aí nesse ponto o brasileiro não é tão conservador. A maior parte dos brasileiros prefere que o Estado intervenha, de maneira moderada, ou um pouco mais intensa, na economia, não acreditam tanto na meritocracia ou na livre iniciativa.

Este é um comportamento novo?

Não, não é algo que surgiu de repente. Este comportamento já está latente na cabeça do brasileiro há gerações. Mas o que aconteceu para que esses valores, que já estavam presentes, pelo menos em uma parcela da sociedade brasileira, viessem assim à tona agora com tanta força? Há 6, 7 anos a gente estava debatendo se o dinheiro do pré-sal ia para a educação ou não, e hoje estamos debatendo se pode ter uma exposição em um museu ou não. Aparentemente houve uma retração. A gente acreditava que esses valores básicos de liberdade já estavam consolidados. Estamos vendo que não necessariamente é assim.

Os valores morais passaram a ser a pauta política da direita?

No Governo, o PT assumiu uma posição de centro-esquerda, mas englobou pautas que podemos chamar de centro-direita, especialmente do ponto de vista econômico. Promoveu políticas liberais, mas não adotou medidas ligadas ao conservadorismo moral. Então, o que restou para a oposição? Basicamente essas pautas morais. A oposição começa a encostar, principalmente nas eleições presidenciais, os candidatos do PT contra a parede. Gosto de citar o caso de 2010, que foi uma das primeiras vezes que eu me lembre em que em uma campanha presidencial usou-se a questão do aborto como grande tema de debate: foi justo o José Serra tentando encostar a Dilma contra a parede. Este é só um exemplo, mas em 2014 vem a entronização do discurso da corrupção sob um viés moral, da corrupção como um desvio de caráter, como uma pauta moral que se liga a outras pautas morais e ajuda a ativá-las. A partir de 2013, a crítica social à política nacional, que tem no Governo Federal o alvo principal, abre espaço para comportamentos oportunistas. Temos então o crescimento, por exemplo, da Bancada BBB (bala, bíblia e boi), com o fortalecimento dos discursos de ideologia de gênero, de escola sem partido; começam a surgir movimentos como o MBL, Vem Pra Rua, Revoltados Online e assim por diante, quase todos pegando carona no declínio do PT no Governo, aproveitando que essa ativação de valores morais estava levando as pessoas para as ruas. Portanto, penso o seguinte: o brasileiro tem uma tendência conservadora em determinados pontos, mas a ascensão dessas pautas foi basicamente causa de um movimento simultâneo de declínio dos governos do PT, que foi abrindo espaço para esse comportamento oportunista de setores conservadores.

Há coesão nestas pautas morais?

Essa ascensão das pautas morais remete principalmente a um certo ativismo de algumas lideranças que estão mais a direita do que a própria população brasileira. Você pega a fala das lideranças evangélicas, são falas muito fortes. Quando ouvimos Marcos Feliciano, Silas Malafaia, entre outros, a gente pensa que os evangélicos são um bloco unido e que todo mundo pensa assim, que aquilo lá reflete o pensamento conservador brasileiro. Mas quando você faz pesquisa de opinião você percebe que o brasileiro não é tão conservador quanto suas lideranças. Então, percebemos que essas pautas morais se tornaram politicamente relevantes porque na verdade há lideres que passaram a explorar esses temas de maneira intensa com objetivo de mobilizar essas pessoas por um voto ideologizado.

Apesar disso, quando um Jair Bolsonaro incorpora quase 20% das intenções de voto, temos um sinal de que parte expressiva da sociedade se identifica com uma visão extremista da agenda moral.

Estamos passando por uma onda, por uma corrente de opinião que é conservadora em determinados aspectos. Lá nos anos 90, na época do Plano Real, o foco todo era inflação, a pauta econômica dominava a agenda. O brasileiro era conservador ali? Era, provavelmente ele já pensava desta forma, uma boa parte era favorável ao porte de armas, etc. Isso que está sendo manifesto agora estava latente lá trás, mas não vinha à tona porque estava todo mundo preocupado com inflação, desemprego, etc.  Depois veio o governo do PT que conseguiu hegemonizar o debate politico em torno das questões socioeconômicas. O que que nós temos hoje? Nós temos uma substituição dessa corrente de opinião que a gente não poderia chamar mais de econômica, onde os grandes problemas nacionais estavam relacionados a inflação, desemprego, etc., para uma outra corrente de opinião que, aí sim, passa a ser pautada pelo conservadorismo moral.

Trata-se de um grupo coeso em torno de temas muito retrógrados…

Quando a gente pensa em posicionamento ideológico ele sempre é multidimensional, a mesma pessoa pode assumir múltiplas posições. Então, é provável que uma pessoa nem seja assim tão conservadora, por exemplo, em relação a união civil de pessoas do mesmo sexo, mas pense que “bandido bom é bandido morto”. Não tem um alinhamento perfeito. Não acho que o brasileiro seja, hoje, mais conservador do que já era. Penso que este discurso estava sendo soterrado por outras prioridades construídas no debate político, que hoje se desfez. Na verdade, essas pautas conservadoras, que estão pautando o debate político, são uma espécie de onda que pode demorar alguns anos para passar, e vai surtir efeitos fortes, efeitos concretos sobre as políticas públicas, sobre Constituição e assim por diante.

O mundo virtual parece saturado por esta onda…

Acho que o mundo online, o mundo virtual tende a dar vasão, uma dimensão muito maior as coisas.  Na internet, quem se manifesta, geralmente, são as pessoas que estão mais mobilizadas, que consideram estas pautas realmente muito importantes. Acho que as redes sociais ampliaram a exposição e a vocalização destes setores, uma vocalização violenta do ponto de vista verbal, extremamente violenta.

E que leva estes discursos a outras pessoas. É uma bola de neve.

O Bolsonaro é deputado federal há 26 anos, mas só ganhou espaço na mídia nos últimos 5, 6 anos. Até então era considerado um maluco, que falava coisas que ninguém prestava atenção. Agora as pessoas estão prestando atenção nele, então ele passou a ser um formador de opinião. As pessoas, na medida que vão compartilhando vídeos, imagens, palavras, discursos, vão sendo cada vez mais expostas a esse discurso e aceitando-o.

Isso acaba fortalecendo candidaturas como a do Bolsonaro?

Do ponto de vista eleitoral, acho que este discurso caminha para perder força. Não porque as pessoas vão deixar de apoiá-lo, mas porque vai haver muito candidato querendo se apoiar no mesmo discurso pró-segurança pública, etc. Temos a intervenção no Rio de Janeiro, claramente tentando roubar pauta do Bolsonaro. Teremos vários candidatos surfando nessa onda e provavelmente eles vão se digladiar, vão acabar se dividindo. Agora, o fato é que isso vai deixar marcas na sociedade brasileira, porque a partir do momento que você tem esse discurso sendo repetido constantemente, isso vai encorajando outras pessoas a assumirem esse mesmo discurso.

A recente fala do Comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, dando a entender que as Forças Armadas poderiam intervir no país é reflexo disso?

Os militares, que desde o fim da ditadura mantiveram-se em silêncio, em uma postura de preservação, agora já se movimentam. Você vai encorajando um general a falar uma coisa ali, outro a falar outra coisa lá…  Esse é um discurso que começa a se a replicar em elementos importantes da sociedade brasileira, formadores de opinião. Quando um general diz “a gente não vai fazer isso, mas talvez seja necessário”, ele já encorajou 10 pessoas, que não falariam em prol de um golpe, a falarem também. Então você tem essa exposição de determinadas ideias, de determinadas opiniões que vão encorajando pessoas que até então não tinham coragem de falar porque havia um certo respeito à democracia, uma certa memoria das atrocidades do regime militar. Agora, estas pessoas são encorajadas, e na medida que você tem um duplo discurso, que é o da corrupção por um lado e o da criminalidade por outro – o grande problema do Brasil são os criminosos, sejam os de Brasília, sejam os da periferia – então a solução para isso é mais força, mais força. Isso acaba sendo um ponto de encontro dessas diversas opiniões conservadoras.  Ainda assim, repito: tenho a impressão de que a sociedade brasileira não está, necessariamente, mais conservadora, mas ela está mais intensamente mobilizada em entorno de uma meia dúzia de temas que despertam esses valores.

Vivemos uma luta pela opinião pública na qual o conservadorismo está em vantagem?

Os estudos sobre opinião pública em geral enfatizam que a opinião que as pessoas têm, principalmente opiniões políticas, não se formam de maneira isolada. O filósofo Pierre Bourdieu diz que “a opinião pública não existe”, indo no sentido de que o pressuposto das pesquisas de opinião pública é de que as pessoas têm uma opinião formada sobre os assuntos, quando elas não necessariamente pararam para pensar sobre este assunto, de fato, seja o porte de arma, o aborto, o uso de drogas. Se essa pessoa nunca parou para pensar, ela não necessariamente tem uma opinião. A opinião pública tem centros formadores, grupos que formulam ideias, ideologias, visões de mundo, crenças, e partem para a difusão. Em países democráticos, esses centros quase sempre são ligados a partidos políticos. Então, você tem esses centros formadores de opinião, não é um indivíduo isolado que refletiu sozinho sobre um determinado tema, é alguém que foi exposto a esses diversos centros de opinião. Quanto mais difusa é uma determinada estrutura mais ela chega às pessoas, maior é o alcance dela. Porque você tem um crescimento das pautas conservadores voltadas à religião? Na verdade, igreja tem em praticamente todas as cidades do Brasil e em quase todos os bairros você vai encontrar uma igreja, que são centros muitos importantes de formação de opinião. Um sujeito que frequenta uma igreja vai estar exposto a uma opinião que já esta mais ou menos pronta. A opinião do sujeito não vai ser igual a do padre, do pastor ou da liderança religiosa, mas ela vai, de alguma forma, estar marcado por isso. Essa pessoa, que talvez ficasse em dúvida sobre determinado tema, pode expor determinada opinião com base na exposição que já sofreu.

Não deixa de ser uma disputa acirrada pela opinião.

De fato, existe uma guerra pela opinião pública, e até certo ponto ela é normal num regime democrático, onde há contraposição de ideias. Se ela permanece como contraposição de ideias, por mais forte que seja, por mais intensa, até certo ponto é sinal de uma democracia saudável, onde as pessoas discordam e conseguem manter a discordância. O problema é quando as pessoas começam a assumir uma posição que chamamos de posição antissistema, cujo objetivo é a superação da democracia: seja a extrema esquerda – em uma crítica a democracia burguesa -, sejam os ultraconservadores – para quem a sociedade brasileira precisa ser tutelada. Então o problema da guerra pela opinião pública não é a guerra em si, desde que ela permaneça nos marcos da democracia. O problema é que hoje há setores, principalmente à direita, que vêm assumindo cada vez mais opiniões e posições antissistema, antidemocráticas.

Recentes pesquisas têm mostrado que aumenta o percentual de brasileiros que desconfiam da democracia e dos valores democráticos. O que deu errado para que, nos últimos 30 anos, saíssemos de uma ditadura militar e chegamos a esse ponto hoje?

A sociedade brasileira não conseguiu superar alguns problemas básicos. A começar pelos próprios direitos civis, que são aqueles direitos que o indivíduo tem à integridade física e a liberdade, basicamente. Direito Civil é aquele que qualquer cidadão tem de poder se manifestar sobre um determinado assunto, seja político, religioso, artístico, e saber que não vai sofrer nenhuma violência por isso, que se ele for acusado de alguma coisa vai ter direito ao devido processo legal, etc. Direitos Civis são um conjunto de proteções para o indivíduo contra as arbitrariedades do Estado. A gente sabe que isso não existe no Brasil. Temos taxas de violência alarmantes, um número aterrador de mortes causadas por armas de fogo, uma taxa de resolução de crimes de menos de 10%. É como se matar no Brasil não gerasse punição.

A culpa das mazelas é da democracia…

O Brasil não conseguiu garantir ao cidadão alguns direitos básicos. Num determinado momento, o cidadão começa identificar esse problema não como um problema que deva ser superado com mais democracia, mas como algo gerado pela própria democracia. Como o Brasil não consegue resolver esses problemas básicos, setores da sociedade passam a perceber direitos civis não como algo que vai fortalecer a democracia, mas como mais um problema. Por isso estamos nesta encruzilhada histórica. Outra questão é que uma parcela da sociedade identifica democracia como sendo excesso de liberdade,  como sendo um problema que leva a violência. Relacionar a questão dos direitos humanos a discursos de esquerda – e, portanto, como algo a ser refutado pela direita – é a falência da democracia no Brasil.


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