28/03/2024 - Edição 540

Brasil

A transição da ditadura para a democracia é muito incompleta no nosso país, diz historiador

Publicado em 18/04/2018 12:00 -

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Lúcio Bellentani se emociona em uma sala do Museu da Resistência em São Paulo, colocado no mesmo lugar onde funcionou o DOPS, durante a ditadura militar. Aos 27 anos, o operário de uma das montadoras da Volkswagen no Brasil, foi preso por oito meses por entregar folhetos do Partido Comunista dentro da fábrica. Lúcio foi colocado no pau-de-arara, submetido a choques, perdeu os dentes até restarem apenas três e nunca ouviu um pedido de desculpas da empresa multinacional. Hoje, ele é um senhor vivendo em Jacareí, que reúne documentos por conta própria, para tentar provar o que sofreu nas mãos do regime.

“Nós vamos chegar lá”, diz ele emocionado. “Eu não fui dos que mais sofreu. Teve companheiros que, além do sofrimento físico, ainda tiveram a morte. Eu, felizmente, estou aqui, mas…Por isso eu continuo brigando por eles e pelo restabelecimento da verdade. É simples a coisa. Só a verdade”.

A sua história é o fio condutor do documentário Como a Volkswagen colaborou com a ditadura, exibido no último dia 17, no Instituto Goethe de Porto Alegre, dentro da programação do Conversas Cidadãs.

Em julho de 2017, um historiador contratado pela própria Volkswagen reconheceu que a empresa não apenas colaborou com o regime militar instaurado em 1964, como promoveu ela própria repressão dentro de suas fábricas. Relatórios e documentos da empresa mostram que ela fichava funcionários ligados a movimentos sindicais e políticos, os entregava à polícia política da ditadura e ainda vigiava suas vidas privadas. Ainda assim, a empresa resiste em reconhecer seu passado e assumir responsabilidade.

O filme realizado pela TV pública alemã desvela uma história descoberta recentemente pelos próprios brasileiros. O próprio Ministério Público Federal (MPF) só passou a investigá-la em 2017. O procurador Pedro Machado, que tenta esclarecer se a Volkswagen entregou funcionários para serem torturados, conta que em uma reunião com os representantes legais da multinacional, eles pediram que ele abandonasse o assunto.

A fábrica da Volkswagen no Brasil foi a primeira fora da Alemanha. Em pouco tempo, as montadoras daqui a levaram a se tornar a maior empresa privada na América Latina. Em 1975, a montadora comemorava sua unidade número 5 milhões saindo de uma fábrica do interior de São Paulo, com uma montagem de 1,7 mil por dia. O Brasil era a fonte mais lucrativa da VW.

Por dentro das fábricas, porém, havia algo fora do comum ocorrendo. Enquanto o país vivia um momento de ebulição política, cinco anos antes do Golpe de 1964, um antecedendo à renúncia de Jânio Quadros e à Campanha da Legalidade que garantiu a posse e João Goulart, a VW Brasil começou a trabalhar em cooperação com os militares do Brasil. Quando veio o golpe, ela foi mais que uma fiadora.

“O que nós poderíamos fazer? Depor a rev…O regime militar?”, questiona no filme o ex-presidente da Volkswagen, Carl Hahn, que fazia parte do Conselho da montadora neste período. Ele afirma que “não é como se tivessem chorado pelo fim da democracia” no Brasil”. “Deixamos essas coisas para os nativos. Mas não éramos comunistas, temos que confessar”.

A confissão poderia usar uma série de exemplos do modus operandi da empresa no Brasil. Foi aqui, por exemplo, que a Volkswagen empregou sem nenhum constrangimento Franz Stangl, comandante nazista de campos de extermínio, como Treblinka e Sobibor. Um assassino reconhecido, procurado internacionalmente e mais tarde condenado por 400 mil assassinatos, trabalhava sem se esconder ou usar nome falso na VW do Brasil.

Trabalhadores da Volkswagen que foram perseguidos na época da ditadura contam no filme que, além da vigilância constante da segurança interna, que os seguia até mesmo nos banheiros, durante uma época, a empresa passou a prender as pessoas dentro de suas instalações. Um dos operários conta que ficou 15 dias detido na fábrica, por estar envolvido com atividades de sindicato.

O chefe dos recursos humanos e supervisor do setor de segurança industrial na época diz que são todos mentirosos. Jacy Mendonça, 32 anos depois do fim oficial da ditadura, diz no filme que ela nunca existiu no Brasil. “Eu não gosto da rotulagem de ditadura. Nós nunca tivemos ditadura no Brasil. Quem se queixa de ditadura é quem sofreu as consequências. Por quê? Porque eram os esquerdistas que queriam bagunçar o país. Tudo aquilo que estava relacionado com os esquerdistas sofreu pressão do governo militar. Fora isso, foi só positivo”.

No documentário, Mendonça, que tem placas e troféus da VW pela estante de sua mansão, é questionado sobre como fichas e informações de funcionários, documentos oficiais da empresa, teriam parado nas mãos dos agentes da repressão. Ele responde: “Eu que vou saber? Eu só estranho, porque acho que ninguém teria direito de receber isso. É um documento interno da empresa”.

Simbiose civil militar

A cooperação entre empresas privadas e o governo militar é um assunto recente na historiografia brasileira, mas que se espalhou como terreno fértil. Depois da exibição do filme, o historiador Pedro Campos, um dos especialistas da questão no Brasil, realizou uma breve análise do que é trazido por ele.

Campos começou apontando que, na época do regime militar, o Brasil registrou cerca de 8 mil acidentes de trabalho, graças ao enfraquecimento de leis trabalhistas. Para ele, a cifra poderia ser levada em conta para se reconsiderar o número oficial de 464 vítimas da ditadura no Brasil e ver o quão maior ela foi. Ele defende ainda que ela não é um problema só de historiadores, mas de toda a sociedade. Não é uma questão de passado, mas ainda muito presente.

O primeiro governo militar foi responsável por reestruturar o sistema tributário do país, tornando imposto regressivo e com incidência maior sobre o consumo do que sobre a renda. O que nos tornou um dos países com a carga mais injusta de tributos. “Uma espécie de Robin Hood às avessas, que tira dos pobres e dá aos ricos”, complementa o historiador.

Nesse contexto, as montadoras de automóveis se tornaram as maiores beneficiadas. É a época do “milagre brasileiro”, quando o setor automobilístico crescia na média de 20% ao ano. Na outra ponta, a ditadura vinha promovendo o desmantelamento das ferrovias no Brasil – ajudando a impulsionar as vendas de carros e as construções de rodovias que se tornariam elefantes brancos superfaturados. Com elas, o regime conseguiu desarticular um dos movimentos de trabalhadores mais fortes e articulados do país: a União dos Ferroviários.

Até os sistemas de bondes, que eram tradicionais em muitas cidades grandes do país, como Porto Alegre, acabaram desligados nesse período.

Enquanto isso, a Volkswagen conseguiu alcançar o valor de 1% do PIB brasileiro. “O Brasil já foi a quarta maior indústria automobilística do mundo. Acho que o caso Volkswagen tem muito a dizer sobre a ditadura brasileira, a quem ela servia, como ela foi pró-empresarial e legou um país com vários problemas acentuados. Ela nos deixou um país muito desigual”, explica Campos.

Ele diz que, sem querer diminuir a luta dos operários que foram vítimas de perseguições e tortura e ainda esperam um reconhecimento oficial da empresa, acredita que há outros elementos que devem ser acrescentados a ela.

“Eu entendo que a gente tem que pensar o papel das empresas com a ditadura, quem se beneficiou com a ditadura, quem foi onerado com ela. Até hoje temos uma ponte Costa e Silva, homenagens a ditadores, torturadores ou pessoas que estiveram diretamente envolvidas no processo da repressão. Existe um engajamento para mudar os nomes de logradouros que ainda fazem referência ao regime”.

“A gente pode avançar mais e avançar em outros temas da transição incompleta que a gente teve no Brasil. A gente tem vários legados. Uma consequência, por exemplo, é a militarização constante das nossas políticas de segurança. A nossa estrutura fundiária brasileira, que é altamente concentrada, não é obra exclusiva da ditadura, mas foi acentuada durante ela. Nosso sistema tributário, extremamente desigual, que é de certa forma produto da ditadura. A gente tem oligopólio das comunicações que é obra da ditadura. Eu entendo que a gente tem que repensar e ampliar na transição política da ditadura para a democracia, que é muito incompleta no nosso país”.

O papel da comunicação

As relações entre grupos empresariais e o governo militar, apesar de chegar ao ápice com a Volkswagen, também está ilustrada num dos maiores grupos de comunicação do Brasil: a Globo e a família Marinho. Campos afirma que a Rede Globo de Comunicação é fruto de uma operação ilegal, no governo do primeiro presidente da ditadura de 64, Humberto Castelo Branco. Na época, a Constituição de 1946, que ainda era vigente, determinava que toda a empresa de comunicação deveria ter capital 100% brasileiro. A Globo, porém, foi criada com um acordo com o grupo norte-americano Time/Life.

“Eles tiveram uma série de prescrições e know-how para fazer essa rede de televisão. Então, se você olhar, a Time/Life recomendou, por exemplo, isso está na pesquisa de um colega do Rio de Janeiro, João Braga, colocar na programação da televisão entretenimento, jornalismo e entretenimento. Todo mundo sabe que é novela das 7-Jornal Nacional-novela das 8. Qual a lógica? Você potencializa o poder político da televisão, que está no jornal. Se você coloca entretenimento, você puxa o público para cima, vai ter audiência maior. Então, você tem um jornal com alta audiência e seu poder político, de influência, vai ser enorme. O JN era uma espécie de Diário Oficial da ditadura”.

O historiador lembrou ainda de uma frase famosa de Emílio Garrastazu Médici, o terceiro presidente da ditadura, que encampou o país exatamente na era do “milagre brasileiro”. Se referindo ao Jornal Nacional, o General declarou: “Depois de um longo dia de trabalho, chego em casa, ligo a televisão, vejo o mundo em guerra, miséria, desagregação e vejo o Brasil marchando, em paz, rumo à prosperidade e ao desenvolvimento. É como se eu tivesse tomado um tranquilizante depois de um longo dia de trabalho”.

Dois anos depois do golpe, a Globo chegou a ser alvo de uma CPI do Congresso Nacional, investigando o acordo Globo-Time/Life. O relatório aprovado pela comissão dizia que a criação da Rede Globo feriu a Constituição brasileira e ela tinha ilegalidade na sua origem. Como Castelo Branco era próximo da família Marinho, o então presidente rejeitou o relatório da CPI. O presidente dela foi cassado pouco tempo depois.

“No ramo da comunicação, antes da ditadura, a gente tinha vários jornais, eram muitas opiniões. A gente tinha acesso a posições distintas diante do que era a realidade nacional, de diferentes colorações políticas. Depois da ditadura, a gente tem um processo de concentração da imprensa que é um negócio impressionante. A gente encerra esse período com praticamente 5 jornais. Há uma concentração enorme, justamente nas mãos dos jornais que colaboraram ou tiveram proximidade com o regime”.

Confira o filme na íntegra abaixo:


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