29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Queermuseu volta no Rio para dar basta a onda de obscurantismo, diz curador

Publicado em 05/04/2018 12:00 -

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Alvo de ataques e controvérsias, a exposição Queermuseu vai ser remontada no Rio, depois de ter sido fechada pelo Santander Cultural no ano  passado, em Porto Alegre.

O curador da mostra, Gaudêncio Fidélis, conversou conosco sobre as circunstâncias do veto, as pressões, as campanhas nas redes sociais, seu depoimento na CPI e outros temas que marcaram o episódio.  Para Gaudêncio, o Santander cometeu, em sua decisão de interromper a mostra, um “crime contra a arte e a cultura brasileira”.

A remontagem da Queermuseu vai acontecer na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, provavelmente em junho. Além da exposição, está prevista a realização de um seminário com diversas mesas de debates. Para bancar o evento foi promovida uma campanha de levantamento de fundos, por meio de doações, leilão de obras oferecidas por artistas e um show de Caetano Veloso –que aconteceu um dia depois do assassinato da vereadora Marielle Franco. Foram arrecadados R$ 1.075.926  –um recorde em iniciativas desse tipo no país.

 

Quando você organizou a Queermuseu, no Santander de Porto Alegre, imaginou que a mostra sofreria tantas pressões? Como você viu a decisão da instituição de ceder às manifestações e fechar a exposição?

Eu sempre tive plena consciência da força artística e política desta exposição. Desde que eu dirigi o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), entre 2011 e 14, e também durante a 10a Bienal do Mercosul, da qual fui curador, eu já observava manifestações de ataques de setores obscurantistas em direção à arte.

Poucas pessoas que eu lembre estavam prestando atenção e considerando a gravidade das manifestações. Mas de fato seria inimaginável que uma exposição como a Queermuseu fosse atacada como foi e que o Santander, seu patrocinador e realizador, fosse fechá-la abruptamente. É o banco que consuma esse crime contra a arte e a cultura brasileira. Sem a ação e conivência do Santander isso não teria acontecido.

Vale lembrar que as pressões realmente tomaram corpo quando o Santander fechou a exposição e condenou moralmente as obras através da nota que emitiu. Tal atitude reforçou a narrativa difamatória que estava sendo construída e deu legitimidade a ela diante da opinião pública. Para se manifestar a favor de uma exposição em que a própria instituição que a promove condena, e que se encontra fechada, ou seja, impossibilitada de averiguação pelo público, é preciso estar muito próximo dela, ter pleno conhecimento dos fatos, muita clareza sobre o avanço dessa onda obscurantista – ou, de outra forma, esperar que os fatos sejam esclarecidos. Caso contrário só resta mesmo os reacionários que odeiam a arte e a cultura e têm princípios incompatíveis com a democracia.

O Santander Cultural perdeu sua legitimidade como instituição. Usou o prestígio da classe artística durante esses 17 anos de sua existência para se instituir, e a atacou quando teria que ser defendida. Trata-se de uma instituição censora, que deveria ter suas portas fechadas, porque não podemos ser condescendentes com esse violento ataque e rompimento com os princípios mais básicos que uma instituição cultural deve manter.

Até que ponto manifestações de repúdio a uma mostra ou a outras produções culturais são aceitáveis? Há casos também, no Brasil e em outros países, de tentativas de setores de esquerda de impedir palestras e exibições de filmes e obras. Qual o limite da liberdade de expressão? A arte tem um estatuto diferenciado nesse contexto?

Manifestações de repúdio não são aceitáveis, mesmo quando a arte não obtenha consenso. O território de existência da arte é aquele do debate e do diálogo. Muito se fala sobre setores da esquerda que tentam cometer atos de censura, mas todas as vezes que lembro foram episódios baseados em alguma visão equivocada da interpretação de direitos aparentemente violados  –e não casos extremos como o fechamento de uma exposição de 264 obras de 85 artistas. De fato a esquerda cometeu diversos erros na sua interpretação da dinâmica artística e cultural –e a direita cometeu atrocidades muitas vezes.

Mas, no caso, temos uma ação concatenada e vasta dirigida contra a Queermuseu, da qual fazem parte outros ataques, como aqueles direcionados às religiões de matriz africana, ao carnaval, ao universo acadêmico. Não podemos confundir isso com casos isolados|. Ações de censura isoladas são graves, mas é preciso diferenciá-las de um plano dentro do qual a Queermuseu foi inserida.

Todos estão aprendendo com o processo desencadeado pela censura à Queermuseu –e esperemos que os setores mais progressistas da sociedade também aprendam. Não deve haver limite para a liberdade da expressão artística, à exceção de postulações de ódio ou racismo, por exemplo, como está previsto na Constituição. A arte não seria arte se promovesse crimes. Esse é um pressuposto elementar do objeto artístico, que é universal e todos que trabalham com arte sabem disso: se a arte ingressa no terreno do crime, imediatamente é destituída de sua condição artística, pois isso tem influência nas prerrogativas artísticas e estéticas que a constituem.

Portanto, sim, temos que fazer uma diferenciação entre a liberdade de expressão artística e a liberdade de expressão em geral. Uma não tem prioridade sobre a outra, mas a segunda envolve territórios mais vastos que não estão assegurados pelas prerrogativas que designam o que seja um objeto de arte ou não. 

Quais foram os momentos mais difíceis pelos quais você passou nesses meses?

Talvez tenha sido convencer as pessoas mais próximas que a estratégia de enfrentamento a esses ataques não seria ficar calado, como se tudo fosse, eventualmente passar. Eu sempre tive essa consciência, de que não iria passar e que nenhum setor da sociedade escaparia ‘as consequências desses ataques. Também foi difícil fazer com que muitas pessoas entendessem que o caso da Queermuseu está relacionado a um crescimento do fundamentalismo no país, mesmo porque ele adquire aqui uma engenharia complexa, pois une a ultradireita, alguns setores do capital financeiro, o neopentecostalismo, e grupos fascistas como o MBL (Movimento Brasil Livre), além de outros.

Cada um com interesses diversos, mas no centro dessa união estão a direita e a ultradireita juntamente com o fundamentalismo religioso. Precisam um do outro, pois o populismo da “teologia da prosperidade” dos neopentecostais é indispensável para essa equação política. O esforço físico e mental que fiz e continuo fazendo para dialogar incessantemente com parcelas da população e tentar esclarecer a opinião pública representou um desafio extraordinário nesses últimos tempos.

A ideia de convocar um curador de arte para depor na CPI dos ”Maus Tratos” do Senado  pareceu um despropósito, uma medida sem sentido –a não ser o de chamar atenção e servir de palanque para o senador Magno Malta (PR). Alguns sugeriram que você não falasse, mas você acabou depondo e saiu-se, segundo as avaliações gerais, bem. Como foi esse processo?   

A maneira como a CPI dos Maus Tratos, destinada inicialmente a investigar “maus tratos em crianças e adolescentes”, foi transformada em um instrumento de criminalização da produção artística e dos artistas (e, pior ainda, com motivos obscuros e eleitoreiros) é uma coisa muito grave. Como tudo, aliás, que o senador Magno Malta faz.

Felizmente houve um entendimento por parte da maioria da comunidade artística e cultural da gravidade do que estava acontecendo. Um processo de resistência e articulação política foi colocado em curso para que se barrasse a condução coercitiva no âmbito do Legislativo e da CPI. Se esse instrumento fosse adotado, não há dúvida que parlamentares inescrupulosos passariam a usá-lo indiscriminadamente para fins obscuros. Essa articulação envolveu a mobilização de grandes parcelas da sociedade, de parlamentares, juristas e lideranças de diversas áreas.

Talvez muitos ainda não entendam o que realmente aconteceu ali, mas barramos uma das maiores investidas obscurantistas que este país já viu depois da ditadura em direção à arte e à cultura. As implicações seriam trágicas para todos. Este é um caso em que houve uma disputa sobre a estratégia  que eu deveria adotar na abordagem do depoimento da CPI, mas vencida esta etapa, creio que é evidente que falar para a sociedade brasileira, e não para o senador Magno Malta, foi a escolha correta.

A montagem da Queermuseu, que será reaberta nos próximos meses no Parque Laje, no Rio, retoma uma história que foi interrompida com o endosso explícito do prefeito carioca, Marcelo Crivella. Qual o significado dessa iniciativa?

A intervenção do prefeito Marcelo Crivella entrará para a história como uma das mais desprezíveis investidas feitas por um administrador público contra a arte. Ela foi uma atitude covarde e oportunista, pois o prefeito não só mentiu para a sociedade brasileira e para a população do Rio de Janeiro, como utilizou a máquina pública ao fazê-lo.

Vale dizer que ele só faz isso porque tem foro privilegiado. Do contrário duvido que o fizesse pois seria processado por suas calúnias. Além disso, ele faz uma associação perniciosa e vil entre um dos aspectos mais relevantes da paisagem da cidade do Rio de Janeiro, que é o mar, e um das mais importantes instituições brasileiras, o Museu de Arte do Rio (MAR). Por tudo isso e muito mais ele não é digno dos votos que recebeu da população que supostamente deveria representar. Ao proibição de montar a mostra no MAR foi a  segunda censura imposta à Queermuseu.

Reabrir a exposição é portanto uma forma de dar um basta a esta onda de obscurantismo que avança sobre o país. Pretendemos também criar um grande fórum de debates paralelamente à exposição para discutir todas estas questões que envolvem a exposição e que são extremamente relevantes, especialmente no ano em que o Brasil realiza aquela que poderá ser a mais importante eleição do período pós-ditadura.


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