Entrevista
Publicado em 20/03/2018 12:00 -
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O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista dela, Anderson Pedro Gomes, no último dia 14, na região central do Rio de Janeiro, levou milhares de pessoas às ruas. As homenagens póstumas lotaram locais simbólicos – como a Cinelândia e a avenida Paulista –, mobilizando não apenas grupos ligados à defesa dos direitos humanos, mas também quem simplesmente quis demonstrar seu rechaço à violência e cobrar uma investigação competente do crime.
A morte da vereadora e as manifestações ocorrem no momento em que o Rio é palco da primeira intervenção federal realizada no país desde a promulgação da Constituição de 1988. A intervenção, por sua vez, ocorre no ano em que haverá disputa pela Presidência do Brasil. Nesta eleição, o pré-candidato Jair Bolsonaro aparece em segundo lugar, apoiado num discurso de exaltação à violência policial, à tortura e à ditadura.
O caso Marielle colocou o debate sobre os direitos humanos no centro da agenda política. A parlamentar de 38 anos, uma mulher negra e feminista, era militante da área. Bolsonaro não se pronunciou, mas muitos de seus apoiadores, sim – responsabilizando Marielle pela própria morte e questionando o tamanho da repercussão do caso.
Em três perguntas, o filósofo e professor de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP), Pablo Ortellado, explica qual o impacto que esse evento pode ter no debate político em curso no Brasil atualmente.
O Brasil vive uma onda conservadora?
Acho que nós vivemos mais precisamente uma reação conservadora. O que surpreende não é o surgimento do conservadorismo moral que até algumas décadas era majoritário e amplamente dominante, mas o sentimento dos setores conservadores de que eles estão se tornando uma minoria. O que estamos vendo, então, é a migração do conservadorismo de uma posição de cômoda maioria para uma posição de minoria vocal, politicamente organizada. Em paralelo a isso, vemos uma articulação entre um liberalismo econômico renovado e esses setores conservadores morais, uma aliança que se constituiu também noutros países. Isso tem dado ao liberalismo uma base social mais ampla e ao conservadorismo um lastro no establishment político.
O que caracteriza essa onda conservadora?
Essa onda conservadora é uma reação às conquistas dos novos movimentos sociais, sobretudo o de mulheres, o LGBT e o negro, cujas agendas não se tornaram dominantes, mas cujos valores normativos já foram plenamente incorporados pela escola e pela universidade, pelos meios de comunicação e pelo meio artístico. É por esse motivo que os conservadores não gostam dos professores, nem da TV, nem dos artistas. No campo econômico, a renovação liberal parece estar mais ligada a uma reação ao longo domínio do PT sobre o governo federal.
O caso Marielle pode ser um ponto de virada nessa onda? Por quê?
Acho que houve uma conjunção de dois fatores. Como mulher negra da favela, Marielle representava para a esquerda a ascensão desses novos movimentos. No entanto, ela também representava a renovação, com uma prática política mais idealista, que não tinha sido corrompida. Acho que esse segundo fator foi o mais decisivo para a comoção atingir também grupos que não estão na zona de influência da esquerda. A comoção mostrou que há trajetórias que impõem tamanho respeito que são capazes de mobilizar e sensibilizar setores diferentes, que normalmente não caminham juntos. Infelizmente, neste momento, nada me faz acreditar que a grande mobilização protestando contra a sua morte vai constituir uma virada duradoura, o início de uma grande mudança, seja para o ambiente político, seja mesmo para a questão mais circunscrita da intervenção no Rio de Janeiro. Mas o fato de ter sido possível uma mobilização mais transversal num momento em que o país está tão dividido deveria, por si só, ser motivo de esperança.
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