16/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

O sistema é foda

Publicado em 16/03/2018 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O sistema é muito maior do que eu pensava.
Não é à toa que os traficantes, os policiais e os milicianos
matam tanta gente nas favelas.
Não é à toa que existem favelas.
Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília.
E que entra governo, sai governo, a corrupção continua.
Pra mudar as coisas, vai demorar muito tempo.
O sistema é foda.
Ainda vai morrer muito inocente.

(Capitão Nascimento, em Tropa de Elite 2)

Em muitos sentidos, Marielle era a cara do Brasil. Mulher como 51,48% da população, negra como 54% dos brasileiros. Tinha 38 anos, na faixa etária que contém o maior número de mulheres na pirâmide etária brasileira.

Sua história de vida também reflete a trágica realidade de um país brutalmente desigual e violento. Cresceu na favela da Maré, onde “a esperança não vem do mar e nem das antenas de TV”. Segundo o Censo de 2010, 11,4 milhões de brasileiros moravam em favelas. Hoje esse número deve ser bem maior.

Marielle cursou a educação básica em escola pública, como 81,7% dos alunos matriculados no país. A qualidade do colégio estadual em que se formou no ensino médio, o CE Professor Clóvis Monteiro, é atestada pela sua posição no ranking do último Enem: é a 11.093ª “melhor” escola brasileira. A nota média do colégio (488,15 pontos) está abaixo do limite de 50%.

Como o ensino não oferecia perspectiva alguma, Marielle engravidou de forma não desejada aos 17 anos. Fenômeno típico nas camadas mais pobres da população, em 2015 nasceram 477.131 crianças cujas mães não tinham sequer 18 anos. O pai de Luyara, sua filha, não quis saber da criança. Mais um fato absolutamente normal: 40% das crianças nascidas no Brasil não têm o nome do pai registrado em suas certidões de nascimento. Ou seja, a cada ano quase 200 mil crianças estão condenadas a crescer sem um núcleo familiar estruturado. E outras dezenas de milhares engrossarão essa estatística ainda na primeira infância.

Contra todos os números negativos da realidade social brasileira, Marielle venceu as adversidades. Com a filha um pouco mais crescida, entrou num cursinho pré-vestibular para jovens carentes, passou no vestibular da PUC-Rio, conseguiu uma bolsa integral, formou-se cientista social e fez mestrado na Universidade Federal Fluminense.

De certa forma, Marielle Franco é um exemplo de político que, independentemente da ideologia, boa parte do eleitorado brasileiro deseja. Segundo a última pesquisa Perspectivas para as Eleições Brasileiras, Marielle se enquadrava em diversas preferências da população brasileira para um candidato: por senti-los na pele desde criança, conhecia os problemas do país – 89% dos brasileiros esperam que um político tenha essa qualidade.

Para 62% dos eleitores é importante um bom candidato ter experiência política – e Marielle foi durante uma década assessora parlamentar de Marcelo Freixo na Câmara e na Assembleia.

Se 74% do eleitorado almeja um candidato com boa formação acadêmica, Marielle era mestre em Administração Pública. E para os 71% que desejam políticos com boa relação com os movimentos sociais, Marielle era a mulher certa: feminista, do movimento negro e a favor da causa LGBT.

Num país em que 55% dos eleitores afirmam querer votar em candidatos que não sejam políticos profissionais, Marielle representava a renovação da política brasileira.

Para começar, era do PSOL, partido criado por antigos militantes que perceberam que o projeto de poder do PT incluía a traição a seus ideais de ética na política. Por apostarem em novos nomes e numa gestão mais participativa, PSOL, Rede e Novo, mesmo ocupando posições diferentes no espectro ideológico, são esperança de oxigenação no falido sistema partidário brasileiro.

A campanha de Marielle foi relativamente barata, gastando R$ 92.151,91. Só para você ter uma ideia, o vereador mais votado, Flávio Bolsonaro, o “Zero Um”, gastou dez vezes mais que ela: R$ 971.507,51.

Se olharmos de onde veio esse dinheiro, também percebemos que a campanha de Marielle foi bastante democrática para os padrões brasileiros. Ao todo 195 pessoas doaram recursos para financiar suas despesas eleitorais, sendo que a maior contribuição foi de R$ 4.200,00. Para efeito de comparação, César Maia, ex-prefeito do Rio e pai do presidenciável Rodrigo Maia, teve apenas 11 doadores, sendo que R$ 242 mil vieram do seu partido, o Democratas.

Para quem não teve uma campanha muito cara, a votação de Marielle na sua estreia em eleições surpreendeu até o mais otimista dos correligionários. Foram 46.502 votos, a quinta maior votação no Rio de Janeiro.

E para afastar qualquer distinção entre morro e asfalto, zona sul e subúrbio, a candidata que se proclamava “mulher, negra e cria da favela da Maré” teve expressivas votações nos bairros nobres da capital. Quase um terço de seus votos vieram da faixa que vai do Aterro do Flamengo à Pedra da Gávea.

No exercício de seu mandato, Marielle defendeu as suas causas. Propôs 13 projetos de lei: criação de programas de atendimento noturno em creches e de atenção humanizada a vítimas de aborto, fim da isenção de impostos para as empresas de ônibus, restrições à terceirização dos serviços de saúde, exigências para que a Prefeitura publique estatísticas sobre a situação da mulher no município, políticas de reinserção de menores infratores e campanhas de conscientização contra a homofobia, a violência sexual e o encarceramento de jovens negros.

Independentemente de nossas preferências ideológicas, é inegável que desde junho de 2013, passando pelas manifestações a favor do impeachment, a sociedade brasileira está se movimentando para exigir melhores serviços públicos, menos corrupção e uma reforma geral do sistema político. A votação de vereadores novatos como Marielle era uma consequência desse movimento.

No entanto, apesar de tudo, como todos sabem, na noite da última quarta-feira, Marielle passou a fazer parte da mais cruel das estatísticas brasileiras: os nossos 60.000 homicídios anuais.

Por toda a sua trajetória, o brutal assassinato foi, para mim, muito mais do que uma tragédia pessoal. Ou o atestado de nossa incapacidade de criar um país onde se possa defender abertamente suas ideias de menos desigualdade e circular livremente pelas ruas.

A morte de Marielle é sobretudo um atentado a nossos anseios de renovação da política brasileira. É como se fosse um recado para o cidadão de bem que aos poucos volta a se interessar pela política: tome cuidado, o sistema aqui é bruto.

É como se os donos do poder emitissem um aviso: é melhor deixar tudo como está. Pra se meter com política, não basta ter estômago de avestruz. Se você não entra no jogo, pode acabar com a boca cheia de formiga. Ou executado com quatro tiros numa noite qualquer.

Bruno Carazza dos Santos – Doutor em direito (UFMG), mestre em economia (UnB) e bacharel em direito e em ciências econômicas (ambos os cursos pela UFMG). É servidor público federal, da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *