19/04/2024 - Edição 540

Auau Miau

Por que ainda maltratamos os animais?

Publicado em 15/03/2018 12:00 -

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Conheci a Sandra em 2013 numa prisão de Buenos Aires.

Ela tinha aspecto largado e a expressão triste de quem havia sido separada do filho ainda pequeno. Nascida na Alemanha, ela já havia passado 20 anos atrás das grades na Argentina e ignorava todas as visitas que recebia, inclusive a minha. Não quis me olhar nos olhos. Era como se eu – ou ela – não estivesse ali.

No ano seguinte, advogados de Sandra entraram com pedido de habeas corpus, alegando que seu encarceramento era cruel e injustificado. Por um motivo simples: ela não havia cometido crime algum. Estava presa só por ser um animal. Sandra é um orangotango, e a prisão é o zoológico de Buenos Aires.

A Justiça argentina acatou o pedido feito pela Afada, uma ONG de direitos dos animais. Assim, Sandra tornou-se o primeiro animal no mundo a ser reconhecido como “pessoa não humana” – e, portanto, “sujeito de direitos” que devem ser respeitados. Inclusive o direito de não ser explorada para divertimento humano. Sandra ainda aguarda definição sobre seu destino, mas seu caso serviu de precedente para a libertação de outros grandes primatas.

Com essa decisão, os tribunais admitiram pela primeira vez o que a ciência já sabe faz um tempo: os animais não são assim tão diferentes de nós. Já foi provado que centenas de espécies têm inteligência, emoções e relações sociais complexas. Assim como nós, vacas fazem amizade. Chimpanzés sentem inveja e vergonha. Galinhas têm noção de futuro. Polvos usam ferramentas e constroem abrigos.

Mas, acima de tudo, como vi nos olhos de Sandra, animais têm a capacidade de sofrer. Até os menos desenvolvidos, como lagostas e peixes, que não fazem cara feia quando sentem dor. Se você injetar veneno de abelha nos lábios de uma truta, ela vai parar de comer e esfregar a boca contra a parede do tanque.

Se você furar caranguejos com um anzol, eles vão passar as garras no lugar da lesão. E, se você passar ácido acético (um irritante) nas antenas de um camarão, ele vai massageá-las com as patas da frente – mas não se você aplicar anestesia antes. “Isso não é mero reflexo”, diz o biólogo Robert Elwood, da Queen’s University, na Irlanda do Norte. “É um comportamento prolongado e totalmente consistente com a ideia de dor.”

Mais de 2.500 estudos científicos já mostraram que os animais são seres tão complexos quanto nós – ainda que não sejamos idênticos. Mas fingimos que não sabemos disso, e seguimos tratando-os como se fossem inanimados.

Como conseguimos conciliar esses dois fatos? Por que torturamos outros bichos como Sandra, mesmo sabendo que eles sofrem?

“São da família”

Toda a nossa relação com os bichos é esquisita e irracional. Dividimos o reino animal em castas, que merecem mais ou menos direitos, de acordo com a sua utilidade. Há espécies, como as que nos servem de alimento, que são especialmente maltratadas. Multiplicamos de propósito bois, porcos e galinhas (só de galinhas, há 20 bilhões no planeta), apenas para confiná-los, criá-los em condições degradantes e depois matá-los. Ok, o ser humano sempre comeu carne – mas precisa tratar suas presas com tanta frieza? Frangos têm os bicos serrados para não praticar canibalismo dentro das gaiolas. Filhotes de boi são arrancados de suas mães e mantidos anêmicos para ficar com a carne macia. Milhares de peixes morrem todos os dias em redes que eram destinadas a matar outras espécies – e tudo bem. Além dos bichos que vão parar no nosso prato, há os que sacrificamos em nome do progresso. Cobaias de laboratório, por exemplo, nascem para ser torturadas até a morte. Fabricantes de cosméticos ainda gotejam xampu em coelhos imobilizados, que não podem piscar enquanto o produto corrói seus olhos. Já macacos bebês são trancados em jaulas e expostos a serpentes, choques e ruídos para desenvolver ansiedade e depressão e ter seus cérebros dissecados depois. Apenas nos EUA, 25 milhões de bichos são usados em experimentos, o equivalente a uma Austrália de animais humanos.

Aprisionamos, isolamos do mundo, arrancamos das mães, tiramos os órgãos sexuais e decidimos quando vão morrer até mesmo os animais que amamos, como gatos e cachorros.

Mas difícil mesmo é tentar justificar o que fazemos com os animais de que gostamos. Quem tem cachorro e gato, por exemplo, jura que ama seus bichinhos mais do que tudo. No Brasil, 61% dos donos de pets consideram seus animais um membro da sua família. Nos EUA, 36% compram presentes de aniversário para seus bichinhos. Mas ninguém em sã consciência trataria um parente Homo sapiens como trata um Canis familiaris ou um Felis catus. Pets são cruzados entre si para gerar raças deformadas e com graves problemas genéticos apenas porque as consideramos “fofas”. Todos são arrancados de suas mães e confinados dentro de espaços limitados até o dia de sua morte. Escolhemos quando, quanto e o que vão comer. Decidimos se poderão ficar com seus órgãos genitais ou não. E temos a palavra final até sobre quando serão sacrificados. Isso sem falar de outros animais de estimação, como canários, peixinhos dourados ou hamsters, que passam a vida em celas solitárias que chamamos de gaiolas e aquários.  Há correntes de filósofos e ativistas de direitos animais que apontam essas contradições para dizer que, não, adotar um bicho não é necessariamente bom para eles.

Em comum, todos os animais – os que amamos, os que odiamos, os que comemos – sofrem da mesma condição: são considerados posse dos seres humanos. E, como nossa posse, podem ser dispostos da maneira como quisermos. Essa noção, claro, é uma convenção: uma ideia que se espalhou há séculos, e que serve como manual de como tratar seres de duas, quatro, seis, oito ou nenhuma pata. É o que cientistas chamam de especismo – a noção de que o Homo sapiens é uma espécie superior, sagrada e incomparável, e que os diferentes de nós não merecem os mesmos direitos. Essa lógica não é parecida com outros discursos de superioridades que você já ouviu por aí?

E o pior: nem sempre foi assim.

Quem é que decide isso

Uma das legislações mais avançadas do mundo em relação aos direitos animais foi aprovada em 1936.

Ela continha cláusulas que proibiam a alimentação forçada para gansos na produção de foie gras (coisa que é corriqueira até hoje) e obrigava estabelecimentos a anestesiar peixes antes de matá-los (coisa que ninguém nunca fez na vida). Ela até penalizava restaurantes que cozinhassem suas lagostas vivas, o que é obviamente uma crueldade, mas que ainda é padrão.

Cães não podiam ter seus rabos e orelhas cortados e os experimentos científicos em animais eram reprimidos. Ironicamente, quem aprovou essa legislação foi o regime nazista alemão e ninguém menos do que Adolf Hitler a sancionou – um psicopata que não via problema nenhum em exterminar outros seres humanos. O negócio era tão estranho que, em 1942, nazistas proibiram judeus de possuir bichos de estimação. Dizer que o regime desumano de Hitler tratava bem os animais não é um argumento contra a proteção dos bichos – só mostra que direitos são questão de convenção. E convenções mudam o tempo todo.

Na Roma Antiga, por exemplo, animais e humanos eram considerados categorias bem diferentes de seres vivos – tirando criminosos e inimigos derrotados, é claro, que entravam no primeiro grupo.

Não à toa, bandidos, rebeldes, soldados capturados e leões lutavam contra si até a morte para a diversão de milhares de (outras) pessoas. Foi o Cristianismo que tirou os gladiadores do centro dos coliseus do Império, apenas no século 4, dizendo que, sim, eles tinham alma, assim como todo o resto dos Sapiens.

Os argumentos estavam lá, escritos na Bíblia, inclusive: “Deus fez o homem à sua própria imagem” e “Deus deu ao homem o domínio sobre as demais criaturas”. Isso incluía todos os homens.

Estranhamente, a Bíblia não impediu que pessoas fossem desumanizadas em outros períodos históricos. Ela não proibiu, por exemplo, que africanos fossem escravizados e tratados como posse até outro dia aqui nas Américas. Não impediu também que, na Idade Média, mulheres fossem consideradas propriedade de seus maridos, que tinham o direito até de matá-las caso não obedecessem a seus donos. Convenções, de novo, que determinavam que certos grupos de pessoas eram menos gente do que outros. A história do mundo é cheia de episódios de ódio e violência contra pessoas consideradas inferiores. Até que um dia as ideias mudam.

Pode soar absurdo, mas há uma sequência parecida na evolução do pensamento em relação a direitos de mulheres, negros e animais. Sexistas, racistas e especistas usam estratégias semelhantes para justificar seu domínio e superioridade sobre os demais. “Os racistas violam o princípio da igualdade ao darem mais peso aos interesses dos membros da mesma raça. Os sexistas, aos membros do mesmo sexo. E os especistas, aos da mesma espécie. O padrão é idêntico em todos os casos”, diz Peter Singer, filósofo australiano e pai do movimento de libertação dos animais. Ele defende que, assim como é inaceitável hoje em dia discriminar qualquer ser humano alegando que ele seja inferior, vai chegar o dia em que não poderemos mais fazer o mesmo com os bichos.

Quem discrimina tenta sempre dar uma aura científica aos seus argumentos. Racistas usavam a extinta frenologia (o estudo dos crânios humanos) para mostrar que havia diferenças biológicas entre brancos e negros. Nazistas saíram medindo os narizes e os portes físicos de judeus, eslavos e ciganos para tentar provar a inferioridade deles e justificar as atrocidades que fariam. E até Charles Darwin, o pai da evolução, tentou usar uma teoria para explicar por que os homens seriam superiores às mulheres. Em 1871, escreveu que eram mais capazes porque apenas eles tinham usado ferramentas ao longo da evolução (hoje sabemos que isso é mentira). Quando confrontado por uma ativista feminista, Darwin insistiu. “Embora as mulheres em geral sejam superiores aos homens nas qualidades morais, são inferiores nas intelectuais”, escreveu. Ou seja, até Darwin – o cara que enterrou de vez a noção de que somos uma espécie mágica, mirabolante, purpurinada e provou que o Homo sapiens é só mais um tipo de bicho – achava que tinha gente mais gente do que outras.

Com os bichos é a mesma coisa. Diversos são os argumentos usados para provar que eles são inferiores a nós: “animais não são inteligentes”, “animais não são autoconscientes”, “animais não têm cultura”. Tudo isso é verdade (em parte – a outra parte já foi desmentida pela ciência, como vimos).

Mas, se você parar para pensar, nem todos os humanos preenchem todos esses requisitos. “O princípio ético da igualdade não se baseia em capacidades cognitivas, memória ou inteligência. Até porque esses atributos variam de pessoa para pessoa”, diz Peter Singer. “Bebês e pessoas senis não têm a mesma capacidade intelectual que um jovem adulto, por exemplo. Nem por isso devem ser tratados pior. Do mesmo jeito, há enormes diferenças entre animais humanos e não humanos – mas é errado causar sofrimento a outro ser, mesmo que não seja da nossa espécie.”

Ou seja, ao que tudo indica, estamos seriamente correndo o risco de passar vergonha diante das gerações futuras. “Lembra aquela época atrasada em que era aceitável escravizar e torturar outros seres vivos?”, dirão nossos tataranetos. Mas tem algo que possamos fazer agora?

É bom para o moral

Estamos bem longe de estabelecer a igualdade interespécies. Não dá para imaginar o que aconteceria se soltássemos o bilhão de vacas e o 1,2 bilhão de ovelhas que criamos atualmente. Mudar o pensamento de um planeta inteiro é um negócio lento e custoso. O primeiro projeto de lei em defesa animal, escrito na Inglaterra no século 19, que proibia brigas entre cães e touros, foi derrotado no Parlamento e virou piada nos jornais. Outro, em defesa dos burros, gerou gargalhadas – mesma reação de muitos hoje quando ouvem falar de habeas corpus para orangotangos.

A palavra-chave para o manual de etiqueta dos bichos talvez seja “sofrimento” – e é ele que pode ser evitado. É moralmente impossível justificar o que grandes produtores de carne e farmacêuticas fazem com as outras espécies: precisa mesmo ser tão cruel? No futuro, esse dilema tende a acabar. Várias empresas de biotecnologia estão desenvolvendo carne artificial, feita diretamente a partir de proteína sintética. O primeiro hambúrguer de laboratório, desenvolvido em 2013, custou proibitivos US$ 300 mil. Hoje, companhias como a Memphis Meats, dos EUA, já conseguem produzir por US$ 1.000. Ou seja: se os custos continuarem caindo, em uma ou duas gerações a ideia de criar animais para ter bifes no prato estará relegada ao passado. Por enquanto, as alternativas são as que você imagina. Comer (bem) menos carne. Comprar ovos de galinhas que podem, pelo menos, ciscar na terra. Não comprar animais de raças puramente estéticas. Evitar produtos desenvolvidos em experimentos com bichos – até porque o FDA, a Anvisa americana, já reconhece que 92% das drogas aprovadas em animais não funcionam em humanos. Ditar o nosso comportamento para evitar o sofrimento animal pode fazer sentido, mas, de novo, é uma regra traçada aleatoriamente. Pelo menos, é uma que não nos botaria mais na saia justa de não saber responder à pergunta lá do começo desta reportagem: como ainda conseguimos tratar os animais assim?


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