25/04/2024 - Edição 540

Especial

Os privilegiados de toga

Publicado em 28/02/2018 12:00 -

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Mais de 17 mil magistrados e quase 13 mil procuradores do Ministério Público Federal (MPF) recebem auxílio-moradia desde setembro de 2014. Entre os juízes, muitos têm imóvel próprio na cidade em que trabalham, alguns têm mais de um imóvel registrado em seu nome.

Entre os beneficiados com imóvel próprio está o juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, que tem um apartamento de mais de 250m2 bem perto do tribunal onde trabalha. O juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Criminal do Rio de Janeiro também é beneficiado. Sua esposa recebe o auxílio-moradia, apesar de resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ0 proibir a remuneração a casais que morem sob o mesmo teto.

Em São Paulo, dos 2.275 juízes que atuam na Justiça estadual, federal, do trabalho e militar na cidade, 680 recebem R$ 4.378 mensais de auxílio-moradia. Deste total, 43% têm ao menos um imóvel no município e 215 têm mais de uma propriedade registradas em seu nome.

O recordista entre os privilegiados é o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Antonio de Paula Santos Neto, que possui 60 imóveis e recebe o benefício. Suas propriedades estão distribuídas em bairros valorizadas da capital, como Bela Vista, Perdizes e Pacaembu.

O juiz, que tem salário de R$ 30.471,11, disse que considera inadequado o recebimento do auxílio-moradia, mas justificou a prática alegando que os demais juízes que têm imóveis próprios também recebem o benefício. Além disso, ele também alegou que o recebimento da verba é uma forma encontrada para driblar a falta de reajuste nos salários dos juízes. É a mesma desculpa usada por Moro e Bretas, entre outros.

O juiz Celso Fernando Karsburg, do Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região (TRF-4), que abriu mão do benefício de R$ 4,4 mil mensais por considerar o pagamento “imoral” e “antiético”. Outros dois desembargadores gaúchos também negaram o auxílio.

Karsburg faz parte de uma minoria. Apenas 15% dos juízes e desembargadores federais abrem mão do auxílio-moradia. Dos 2.203 magistrados dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), apenas 331 não receberam o benefício em dezembro. A Justiça Federal gastou R$ 8,2 milhões com esse tipo de verba apenas no período.

Também é pequeno o número de integrantes do Judiciário que optam por não receber o dinheiro, pago inclusive para quem mora em casa própria. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, só 6 dos 874 juízes e desembargadores ativos do órgão recusaram o auxílio-moradia no último mês de 2017. O TJ do Rio gastou R$ 3,8 milhões com o benefício em dezembro.

O juiz Carlos Roberto Gomes de Oliveira Paula, do Tribunal de Justiça do Maranhão, disse que abriu mão do extra de R$ 4,7 mil em novembro após ser cobrado pelo próprio filho. “O meu filho falava: ‘pai, tem muita gente que não tem um papelão para entrar debaixo, tem gente que não tem um prato de comida e a gente recebe auxílio-moradia, auxílio-alimentação’. Eu não sabia responder, porque é verdade”, disse o juiz. Ele também pretende devolver todo o auxílio que já havia recebido.

“Não tem argumento para justificar os penduricalhos. Não existe. Eu demorei para tomar coragem, mas a população tem razão: nós não precisaríamos e não precisamos disso”, completou Carlos Roberto.

O juiz Gerivaldo Alves Neivas, de Coité (BA), considera o benefício “injustificável”. “A magistratura não é caminho para ficar rico. É vocação. Mais do que um valor, trata-se de uma questão ética e moral. Não vale a pena enfrentar uma luta dessa por algo que não engrandece a magistratura, sobretudo nessa conjuntura horrível que passa o país”, declarou.

Justo e perfeito…

Não é o que pensa o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2014 concedeu liminar favorável à extensão do benefício a toda a categoria. Para ele, receber auxílio-moradia não é condenável.

Entre os quase 18 mil membros do Judiciário que desfrutam do benefício, que é isento de imposto de renda, está a filha de Fux, a desembargadora Marianna Fux, da Justiça Federal do Rio de Janeiro, proprietária de dois apartamentos no Leblon, na zona sul carioca, um dos metros quadrados mais caros do Brasil.

O valor máximo do benefício é de R$ 4.377,73, número que supera o salário de 92% da população brasileira, tendo como referência o ano de 2018.

Para Rafael Custódio, da ONG Conectas, a disparidade social brasileira deve ser levada em conta neste debate sobre o auxílio-moradia do Judiciário. “O Brasil é um país notoriamente desigual. Dentro dessa desigualdade, há um déficit habitacional histórico. O auxílio-moradia se trata de desvio de dinheiro público, que poderia estar sendo aplicado em política habitacional, mas a casta judicial resolve pegar um quinhão do orçamento público para o próprio benefício”, diz.

Um cálculo feito pela ONG Contas Abertas aponta que, de setembro de 2014 até dezembro do último ano, o auxílio-moradia custou à União e estados R$ 5,4 bilhões. Para chegar a esse montante, a ONG considerou que os benefícios se destinam a um universo de cerca de 30 mil pessoas, entre 17 mil magistrados e 13 mil membros do Ministério Público.

Só neste ano, o contribuinte brasileiro vai bancar mais de R$ 2 bilhões com o pagamento do auxílio-moradia a autoridades e funcionários de alto escalão, cuja remuneração pode passar dos R$ 30 mil. Para ter uma ideia, com o valor do benefício seria possível construir mais de 43 mil casas populares, ao custo de R$ 50 mil cada, ou conceder Bolsa Família para 11 milhões de pessoas.

Essas são as despesas previstas com o benefício para os três poderes, o Ministério Público e a Defensoria Pública, no âmbito federal, e para conselheiros dos tribunais de contas de estados e municípios, juízes, procuradores, promotores e defensores públicos estaduais. O total gasto em todo o país com o auxílio-moradia é ainda maior. Não estão computadas na conta as despesas dos estados com representantes do Legislativo e do Executivo locais.

Juízes ganham R$ 211 milhões com “auxílios” atrasados

Auxílio-moradia, auxílio-alimentação e auxílio-saúde não são os únicos itens a chamar a atenção nos contracheques dos juízes brasileiros. Quase 7 mil deles receberam em dezembro um total de R$ 211 milhões em pagamentos retroativos de benefícios e indenizações – uma média de R$ 30 mil por magistrado.

Isso significa que, no fim de 2017, cerca de 30% dos juízes federais e estaduais do País tiveram os vencimentos engordados por algum “penduricalho do passado”, com juros e correção monetária. Muitos deles foram contemplados graças ao auxílio-moradia que os deputados federais recebiam entre 1992 e 1998.

Mas como o auxílio-moradia pago pela Câmara dos Deputados há mais de duas décadas pode ter impacto agora na folha salarial do Judiciário? A explicação envolve uma batalha por equiparação de privilégios, na qual a balança da Justiça pendeu para o lado dos juízes em diversas ocasiões, gerando um passivo no orçamento dos tribunais que até hoje é pago de forma parcelada.

Tudo começou em 1992, quando o Judiciário instituiu o pagamento da Parcela Autônoma de Equivalência – um bônus – para que ministros de tribunais superiores recebessem salário igual ao de deputados, com base na premissa constitucional de que deve haver paridade de remuneração entre membros de distintos poderes. Isso gerou um efeito cascata com impacto no contracheque de quase todo juiz.

Mas os parlamentares recebiam na época, além do salário, auxílio-moradia, mesmo sem precisar comprovar gastos com aluguel. Isso foi entendido como remuneração indireta, o que abriu brecha para magistrados exigirem nova equiparação, levando em conta o adicional de moradia. O STF acolheu a reivindicação em 2000: decidiu que os juízes federais deveriam receber, além do salário, o valor que os deputados embolsavam como auxílio-moradia. Na época, isso equivalia a R$ 3 mil (R$ 9,2 mil em valores atualizados).

Em seguida, associações de magistrados reivindicaram o pagamento retroativo, referente ao período em que os deputados receberam auxílio-moradia e os juízes, não. Tiveram ganho de causa: uma bolada equivalente a cinco anos do benefício. O efeito cascata teve continuidade quando o mesmo direito foi estendido a magistrados aposentados.

A novela não acabou aí. Associações de juízes exigiram depois o recálculo da chamada Parcela Autônoma de Equivalência referente a janeiro de 1998 a setembro de 1999, com direito a juros e correção monetária. Mais uma vez obtiveram decisão favorável, gerando novos rombos contábeis nos tribunais – sempre cobertos com suplementações orçamentárias.

Bola de Neve 

A bola de neve gerada pela concessão do auxílio-moradia a parlamentares na década de 1990 está rolando até hoje. A reportagem perguntou a 32 tribunais qual o motivo dos pagamentos retroativos na folha salarial de dezembro. Desembolsos referentes à Parcela Autônoma de Equivalência, bem como correção monetária e juros sobre ela, foram citados por 14 deles.

Outros tribunais citaram o pagamento do que consideram uma “dívida” da época em que muitos juízes ficaram sem receber auxílio-moradia, por causa da controvérsia sobre a legalidade do benefício.

Como o ministro Luiz Fux liberou o pagamento do auxílio a praticamente toda a magistratura em 2014, tribunais decidiram pagar retroativamente o benefício, por considerar que houve prejuízo a quem não recebeu na tramitação do processo. 

Foram citadas ainda quitações retroativas de itens como gratificação por acúmulo de jurisdição, adicional por tempo de serviço, diferença de proventos e pensões e verbas rescisórias de instituidor de pensão, entre outros. O maior pagamento individual, de R$ 8,2 milhões, foi feito pelo Tribunal Regional do Trabalho do Ceará. Refere-se a concessão de pensão vitalícia a uma servidora com efeitos a contar de março de 1993 – só de juros e correção, o montante foi de R$ 6,6 milhões.

Greve imoral

A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, marcou para o dia 22 de março o julgamento do auxílio-moradia pago a juízes de todo o país. Seis ações que tratam do tema deverão ser apreciadas – cinco delas sob a relatoria de Fux e outra relatada por Luís Roberto Barroso.

Apontando perseguição à classe, por parte de políticos, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) realizou uma consulta virtual com seus associados para avaliar a possibilidade de paralisação, já no próximo dia 15 de março. A depender da opinião dos juízes, vai ter greve sim. Balanço preliminar da consulta mostrou que a maioria dos juízes federais é a favor da paralisação. Mais da metade dos 2 mil coligados à entidade votou “sim”.

O presidente da Ajufe, Roberto Carvalho Veloso, defendeu por meio de nota um tratamento igualitário para toda a magistratura nacional. Ele criticou a pauta de julgamentos do STF, que inclui a questão do auxílio-moradia para juízes federais, mas deixa de fora a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.393, que trata da Lei dos “Fatos Funcionais da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro”. O processo questiona benefícios como auxílios de saúde, de alimentação, pré-escolar e gratificações concedidas a magistrados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).

Para Veloso, “não basta apenas julgar as ações que tratam do auxílio-moradia, que atingirão apenas os juízes federais, deixando sem resolução os diversos pagamentos realizados nos âmbitos dos demais segmentos do Judiciário”. Por isso, a associação cobrou que a ação referente aos juízes estaduais do Rio de Janeiro também seja incluída na pauta do STF.

“Para que sejam definidos, pelo STF, quais são os pagamentos legais e constitucionais devidos a todos os magistrados brasileiros (ministros, desembargadores e juízes), colocando uma resolução definitiva nesta questão, que tanto atormenta a população e a opinião pública brasileiras”, justificou o magistrado, que já havia pedido o adiamento do julgamento sobre o auxílio-moradia.

Perseguição

A nota sinaliza que está em curso, por retaliação, uma suposta perseguição contra os juízes federais em curso: a tentativa de “minorar os seus direitos” seria fruto da atuação das autoridades no julgamento de escândalos de corrupção.

“Os juízes federais entraram no foco de poderosas forças em razão de sua atuação imparcial e combativa contra a corrupção e as desmazelas perpetradas na administração pública por alguns, independentemente de quem fossem, motivo pelo qual somente a eles busca-se minorar os direitos”, aponta o texto.

“Por essa razão, a Ajufe tem mobilizado todos os magistrados federais para que não deixem de exercer sua atividade judicante, de forma altiva e responsável, não aceitando tratamento diferenciado e depreciativo, inclusive de forma reflexa, atingindo a remuneração que lhe é devida, como todo trabalhador brasileiro”, finalizou Roberto Veloso.


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