19/04/2024 - Edição 540

Comportamento

O que você ainda não entendeu sobre consentimento sexual

Publicado em 15/02/2018 12:00 -

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Segundo o dicionário norte-americano Merriam-Webster, “feminismo” foi a palavra que melhor definiu o ano de 2017. A pauta também foi contemplada na capa de dezembro da revista estadunidense Times, edição que selecionou como “pessoa do ano” as mulheres do #MeToo, movimento de denúncia dos casos de assédio de Hollywood.

Os reflexos desse novo levante de mulheres vítimas – sejam elas atrizes, cantoras ou personalidades públicas no geral –, aparentemente, não terão um fim tão próximo: as discussões sobre assédio sexual, consentimento e estupro seguem acontecendo em rodas de amigos e colunas de jornal.

Se por um lado o novo cenário abre espaço para discussões importantes sobre sexualidade, feminismo, assédio, abuso e temas similares, por outro, também abre brechas para propostas de intervenção e possíveis soluções. É o caso do Legal Fling, um novo aplicativo desenvolvido pela empresa holandesa LegalThings que se propõe a criar um “contrato” de consentimento para que duas pessoas mantenham relações sexuais.

O software ainda está em processo de desenvolvimento, porém, no site da empresa, já é possível conferir suas futuras funcionalidades. Segundo indicado na página da internet, o Legal Fling permite que o usuário selecione suas “regras” para transar, deixando claro o que aceita e o que recusa entre quatro paredes. Após ter suas escolhas marcadas, o indivíduo envia seu “formulário” preenchido e um convite de sexo para algum de seus contatos por WhatsApp, Facebook ou mensagem de texto. 

Em um comunicado de imprensa, o CEO da LegalThings, Rick Schmitz, explicou que a proposta do aplicativo é garantir que o ato sexual foi consentido e evitar “as várias coisas que podem dar errado” depois. “Pedir que alguém assine um contrato antes de transar é um pouco desconfortável. Com o LegalFling, um simples deslizar de dedo para consentir é suficiente para justificar legalmente o caso”, disse o porta-voz da empresa.

“Começou? Agora aguenta”

A proposta pode até parecer disruptiva, porém ignora o fato de que o consentimento sexual não é um contrato com cláusulas e passível de ser assinado e seguido à risca. Pelo contrário, o estabelecimento de uma relação sexual é um acordo constante estabelecido entre as partes integrantes e que é passível de mudanças, alterações e interrupções.

“Relações sexuais saudáveis – dentro ou fora de um relacionamento – envolvem a negociação quase que contínua das atividades que vão acontecer. O consentimento ocorre continuamente ao longo de cada encontro sexual e não pode ser encapsulado em um contrato”, explica a psicóloga Arielle Sagrillo Scarpati, doutoranda em psicologia forense pela Universidade de Kent, na Inglaterra. “Mesmo que uma das partes concorde inicialmente em fazer algo, ela deve ter o direito e a possibilidade de mudar de ideia a qualquer momento da relação, sem que isso implique em um problema."

Como, então, um aplicativo – que depende de acesso da internet para funcionar, que pode travar, ser “printado”, ter cadastros ‘fakes’, além de outros tantos pontos – pode substituir o bom e velho diálogo humano que deve nortear qualquer relação sexual?

“Ela não disse ‘não’ porque queria”

A questão do consentimento sexual está intrinsicamente relacionada à percepção que a mulher tem em relação à sua sexualidade – se ela conhece seu corpo, se tem domínio sobre as coisas que lhe trazem prazer ou não.

Segundo estudo realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), mais de metade das brasileiras ainda estão distantes do empoderamento sexual. O levantamento realizado pelo Projeto de Sexualidade da Universidade de São Paulo (Prosex), ouviu três mil participantes com idades entre 18 a 70 anos e constatou que 55,6% delas têm dificuldade para chegar ao orgasmo, sendo que 67% enfrentam dificuldades para se excitar e 59,7% sentem dor durante a relação.

Para Scarpati, os resultados da pesquisa vão de encontro à dificuldade da sociedade em legitimar o desejo sexual feminino. “Por conta de uma lógica machista, ainda associamos a sexualidade feminina à promiscuidade, como se o prazer sexual fosse algo restrito ao universo masculino e à mulher coubesse apenas o lugar de corresponder às expectativas do parceiro. Questões como o desejo sexual, as descobertas, a masturbação, por exemplo, são – ainda hoje – vistas com certo receio e apenas muito recentemente começamos a falar um pouco mais abertamente sobre isso”, afirma.

Maira Pinheiro, advogada criminalista e membra da Rede Feminista de Juristas, acredita que a pornografia reforça ainda mais a ideia de omissão e indiferença feminina nas relações sexuais: “A formação sexual da nossa geração, em grande parte, se deu através da pornografia, conteúdo que ensina que a mulher é passiva na sexualidade. São sempre feitas coisas à ela; ela não faz muita coisa. Além disso, o prazer feminino não é um requisito para o relação começar e terminar. Há apenas uma visão de que a ejaculação masculina é o desfecho do sexo.”

Juntos, esses fatores criam uma cultura rígida que ensina a mulher a ficar em silêncio e a não comunicar o que ela quer ou não durante a relação física. Para uma mulher dizer “sim” e “não”, ou seja, expressar a presença ou ausência de seu consentimento, é nadar contra a maré a ainda correr o risco de ser ignorada durante a verbalização de seu desconforto.

“Não houve constrangimento”

De acordo com a lei brasileira, o consentimento sexual é determinado pela presença do não, e não somente pela ausência do sim. “Em casos de assédio ou abuso, o 'não' é cobrado da vítima – mesmo que ela não tenha dito 'sim' em nenhum momento”, analisa Pinheiro. “Isso acontece porque o direito é androcêntrico, ou seja, foi pensado por homens e criado para homens, com base em uma estrutura patriarcal."

Além da necessidade da existência do “não”, a lei brasileira só configura um ato como abuso ou estupro se ele tiver ocorrido mediante violência ou grave ameaça à vítima. Foi nisso em que se baseou o jurista responsável pelo julgamento do caso em que uma mulher recebeu uma ejaculação no rosto em um ônibus em São Paulo, no ano passado. Para o juiz, a vítima não foi violentada na ocasião.

“Na nossa visão, essa interpretação está completamente equivocada, pois o cerne da violência sexual deve-se basear no consentimento; é ele quem protege a liberdade e a dignidade do indivíduo”, explica a advogada Isabela Guimarães Del Monde, cofundadora da Rede Feminista de Juristas.

Pare, olhe, escute

De acordo com pesquisa realizada pela Universidade de Binghamton, em Nova York, o consentimento sexual parece uma incógnita para os homens heterossexuais. O estudo abordou 145 homens na faixa etária dos 20 anos, e averiguou que a média de compreensão deles para uma recusa verbal é de 2,34 – em uma escala que vai de 1 a 7. Ou seja, quando a mulher expressa com palavras sua negativa, ainda há grandes chances de ele não entender o desconforto feminino.

De acordo com Pinheiro, a presunção do consentimento por parte do homem é o que cria um padrão violento e as experiências sexuais ruins para as mulheres. “Grande parte do sexo ruim que as mulheres vão viver na vida passa pelo aspecto de ser abusivo. É ruim porque é abusivo, porque o homem ignorou o prazer feminino, porque não ocorreu a ele tentar identificar os sinais na parceira”, explica.

Porém, como o sexo é uma via de mão dupla, é fundamental que a mulher também explicite seu desconforto, suas preferências, gostos e se deseja continuar o ato ou parar. “Para as mulheres, se pronunciar no sexo é difícil, porque isso é um reflexo do silenciamento que elas passam em toda a vida. É claro que elas devem aprender a dizer 'sim' ou 'não', mas devemos ensinar aos homens que ao longo do ato sexual, as coisas devem ser perguntadas: 'você está de acordo com isso?', 'está tudo bem?', 'você gosta disso?', e não partir do pressuposto que a satisfação sexual deles funciona para a parceira”, afirma Del Monde.

Posicionar-se durante o ato sexual e mostrar a importância do prazer feminino abarca em mudanças estruturais na sociedade que, por sua vez, se refletem na esfera jurídica, ressaltam as especialistas da Rede Feminista de Juristas.

“Por enquanto, não temos representatividade feminina no legislativo para a feitura das leis e nem no julgamento dos casos de forma mais próxima à realidade. Porém, o direito reflete nossa cultura, então, tendo uma educação sexual mais humana e menos baseada na pornografia e internalizando a figura da mulher como indivíduo e não como objeto, as formas que nos relacionamos hoje mudar”, sintetiza Del Monde.


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