25/04/2024 - Edição 540

Especial

Brincando, brasileiro fala sério

Publicado em 14/02/2018 12:00 -

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O carnaval de 2018 entrou para a história como um dos mais politizados de todos os tempos. Na esteira da condenação do ex-presidente Lula (PT-SP), e diante dos altos índices de impopularidade de Michel Temer (MDB-SP), o que não faltou na folia foram manifestações contra a classe política, como um todo, e figuras do Judiciário, como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Com a tradicional irreverência do brasileiro, os protestos ganharam ruas, bailes e avenidas do samba, principalmente a Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.

Mas foi o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), que parece ter acendido o pavio da explosão do descontentamento popular. Dias depois de sua posse, no início de 2017, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus anunciou, como uma das primeiras medidas de sua gestão, que cortaria repasses da prefeitura para as escolas de samba, algo que tradicionalmente é assegurado às agremiações. Foi o que bastou para que não só a turma do samba, mas o próprio setor de cultura do estado – e, em certa medida, do país –, colocasse o bloco da resistência em marcha.

Resultado: logo no primeiro dia de desfiles do grupo principal na Sapucaí, a Estação Primeira de Mangueira, uma das mais tradicionais e vitoriosas escolas de samba do país, mostrou a que veio com o enredo “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco” – um recado claro, direto a Crivella. Em um dos carros alegóricos, o próprio prefeito é retratado como o Judas bíblico, ao lado de uma faixa com a frase “Prefeito, pecado é não brincar o carnaval”!

Encerrado o desfile, o presidente da escola de samba, Chiquinho da Mangueira, resumiu o mote concebido pelo carnavalesco Leandro Vieira e levado à avenida pela comunidade: “Foi a resposta para ele repensar o que fez com o carnaval. Cometeu a maior injustiça com a maior festa popular do mundo. A Mangueira se propôs a se rebelar contra isso tudo”. Nas arquibancadas, o grito de “Fora, Crivella!”. Por meio de nota, a Prefeitura do Rio de Janeiro rebateu as críticas e lamentou a “falta de respeito e ofensa gratuita”.

Manifestoches

A irreverência aliada à indignação do carnavalesco não poupou Michel Temer, o primeiro presidente da República investigado por suspeita de crime no exercício do mandato em toda a história do Brasil. E a tarefa de criticá-lo coube à escola de samba Paraíso do Tuiuti, estreante no grupo de elite dos desfiles. Retratado como um “vampiro neoliberalista”, a imagem de Temer como patrocinador de políticas que favorecem o mercado financeiro constrangeu apresentadores da TV Globo (veja o vídeo e leia mais abaixo), que tem exclusividade na transmissão do show.

A escola adentrou a avenida no domingo (11) e, em sua primeira participação no grupo de gigantes como Mangueira, Portela e Beija-Flor, trouxe ao grande público um forte discurso contra mazelas políticas e sociais. Com o samba “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, a agremiação soltou o grito contra o racismo renitente na sociedade brasileira, com suas variadas formas de “escravidão” social – entre elas, na ótica do carnavalesco, as relações trabalhistas recentemente modificadas pelo governo Temer, com o auxílio providencial do Congresso.

No encerramento do desfile, a Tuiuti destacou no alto de um carro um homem de terno e cabelos grisalhos portando a faixa presidencial. Com a denominação de “vampiro neoliberalista”, a alegoria fez uma clara alusão a Temer, em um carro repleto de “paneleiros” com camisas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

A crítica foi mais longe: a ala intitulada “Manifestoches” exibiu passistas fantasiados de patos amarelos, numa analogia aos protestos de rua que ganharam corpo em 2016 e, simbolizados com o pato amarelo gigante concebido pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), contribuíram para o impeachment de Dilma Rousseff. Fantoches de manifestação, na visão da Tuiuti.

Na referência mais clara ao neoliberalismo posto em campo pelo governo Temer, outra ala retratou o trabalho informal, em referência à reforma trabalhista que alterou, no ano passado, diversos pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – e, segundo críticos das mudanças, precarizaram as condições do trabalhador e desequilibraram, em favor dos patrões, a relação entre empregadores e empregados: 74% dos senadores que votaram a favor das alterações na legislação são empresários.

Nenhum dos apresentadores da TV Globo mencionou o nome de Temer diante da aparição da fantasia trajada pelo chefe do atelier da Tuiuti, o historiador Leo Morais. Do camarote onde eram narrados os desfiles e, ao final de cada um deles, realizadas entrevistas com personalidades, sambistas e carnavalescos, a jornalista Fátima Bernardes se limitou a dizer que a ala representava “o regime de exploração nos mais diversos níveis”. Antes, o apresentador Alex Escobar e o carnavalesco Milton Cunha manifestaram parcimônia ao comentar a crítica clara ao presidente.

“O vampirão…”, sintetizou Milton, levando Escobar a uma risada contida.  Em seguida, o protagonista do quadro de esportes “Cafezinho com Escobar” limitou-se a descrever o óbvio: “Tá com a faixa de presidente esse vampiro aí”…

Seguindo o roteiro, o camarote da Globo recebeu para a descontraída entrevista alguns integrantes da Tuiuti. No entanto, o Temer como vampiro neoliberal, os “manifestoches” ou os paneleiros não foram mencionados na ocasião.

Ratos

O que teve início no domingo com a Estação Primeira de Mangueira e a estreante Paraíso do Tuiuti se repetiu na terça-feira (13) de forma ainda mais chocante na avenida do samba carioca. Com um enredo que caprichou na crítica ao poder e à corrupção no Brasil, a Beijar-Flor de Nilópolis levou ao grande público um Congresso com ratos. E, para traduzir a revolta popular com os poderosos, retratou a cena em que o ex-governador Sérgio Cabral, preso em desdobramento da Operação Lava Jato, celebrou a gastança com dinheiro público em uma patética performance com guardanapos na cabeça, acompanhado pela esposa Adriana Ancelmo, também condenada, e alguns de seus aliados na corrupção em um restaurante de luxo em Paris.

Na escolha da simbologia, a Beija-Flor caprichou na ilustração do famoso jantar, em um restaurante luxuoso na capital francesa, em que Cabral, auxiliares e empresários que tinham negócios com o estado confraternizam com guardanapos na cabeça. Ocorrido em setembro de 2009, o episódio ficou conhecido como a “farra dos guardanapos”. E, na triste crônica política do Rio e do Brasil, demonstra a que ponto podem chegar agentes públicos e privados no deboche à sociedade desamparada.

Com o enredo “Monstro é aquele que não sabe amar – Os filhos abandonados da pátria que os pariu”, a agremiação liderada pelo intérprete Neguinho da Beija-Flor decidiu arriscar e, se não primou pelo rigor técnico, segundo especialistas, privilegiou o impacto. Para tanto, mostrou os efeitos da corrupção para a principal vítima, as classes menos assistidas, de uma forma aguda: crianças em caixões, policiais mortos (foto abaixo) e até uma encenação de um aluno disparando tiros com arma de fogo em colegas. No lugar das fantasias luxuosas e alegorias suntuosas, farrapos e trapos a conotar a miséria do povo enganado. Nas alas, diversas referências a políticos corruptos com suas malas de dinheiro e cédulas mal escondidas em ternos.

Na sinopse do enredo disponível em sua página na internet, a agremiação já havia sinalizado o que levaria para a passarela do samba. “Somos parte de um sistema doentio, onde uma desigualdade se alimenta do descaso, formando uma geração dominada pelo caos e vitimada pelo abandono. […] Cavaleiros do Apocalipse político camuflados com ternos e gravatas espalham a morte, a fome e a violência. O favelado não tem pra onde fugir e o refugiado da seca continua sem esperança de encontrar a terra prometida. Há aves de rapina no poder!”, registra a escola de samba, partindo para a referência ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, sem citar seu nome.

“Em templos luxuosos, falsos profetas exploradores da boa fé cobram dízimos celestiais, perseguem crenças diferentes, sufocam manifestações culturais e fomentam uma guerra santa: o sagrado versus o profano, a batucada proibida, a roda de samba coibida, a bebida no boteco, tudo é coisa do ‘coisa ruim’! […] Não, não será agora que o ‘bispo’ dará um xeque-mate no nosso ‘rei’ que é Momo, que é da folia, que é do povo. Mais uma vez a vitória será da velha ‘dama’ e dos ‘peões’”, acrescenta a Beija-Flor, referindo-se ao corte financeiro promovido por Crivella.

No vídeo abaixo, o desfile que pode não ser consagrado como o campeão de 2018, mas que se unirá à Mangueira e à Paraíso do Tuiuti no panteão das comunidades que, diante da força da máquina pública, deixaram a zona de conforto para dar sua resposta com samba no pé e mostrar que a democracia brasileira, ainda imatura, há de vencer.

Lula

Em um país polarizado à beira de um ataque de nervos, o ex-presidente Lula não passaria incólume pelo espírito zombeteiro do povo. Acusado de ter recebido propina disfarçada em um tríplex no Guarujá e um sítio em Atibaia, litoral e interior de São Paulo, respectivamente, o petista vez ou outra é “lembrado” nas ruas, principalmente em transmissões ao vivo da TV Globo e outras emissoras. Na última sexta-feira (9), em uma passagem no meio do carnaval de rua do Rio de Janeiro, um folião passou a gritar “Lula na cadeia” repetidamente, atrás de uma repórter pega de surpresa.

Mas foi nas redes sociais e no mundo incontrolável da internet que o ex-presidente foi alvo constante. Uma das marchinhas dedicadas ao petista brincou com a língua portuguesa ao falar de um tal Tio Lu – na verdade, a deixa para a letra de “Tio Lu lá no xilindró”.

Em outro desses registros que viralizam em plataformas como Facebook e Twitter, além do quase onipresente WhatsApp, o petista é brindado com uma irônica canção de samba no melhor estilo carioca. No sambinha “Não é nada meu”, o cantor Neguinho da Beija-Flor, puxador de samba da escola multicampeã homônima, junta-se ao sambista Boca Nervosa para zombar da defesa resoluta de Lula a respeito de suas posses.

Gilmar “habeas corpus” Mendes

Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes tem testado a paciência do povo brasileiro com os seguidos habeas corpus expedidos para tirar da cadeia figurões da política e do mundo empresarial. Em 14 de janeiro, a indignação da sociedade foi expressa até em Portugal, onde duas brasileiras o flagraram em dolce far niente noturno e rasgaram o verbo em críticas ao magistrado.

Mas foi durante a folia que a criatividade brasileira, misturada à revolta contra os desmandos do poder, faz-se mais vicejante. O juiz, que tem o hábito de se reunir com Temer fora da agenda oficial, ganhou uma das marchinhas mais comentadas deste carnaval. Autor de canções que embalam o povo desde a década de 1960, o compositor João Roberto Kelly caprichou na verve e fez uma bem humorada e ácida crítica à postura de Gilmar, amigo de poderosos considerados corruptos e visto como alguém sempre disposto a ajudá-los com decisões polêmicas.

Na marchinha abaixo, a letra de “Alô, Alô, Gilmar”, lançada no início deste ano, é impagável. “Alô, alô, Gilmar / Eu tô em cana / Vem me soltar / Eu roubei, eu roubei, eu roubei / Não estou preso à toa / Mas no mundo não há quem escape / De uma conversinha boa”, diz a introdução da obra de João Roberto.

Recado a Temer

O caráter de politização deste carnaval de ano eleitoral transpôs as fronteiras da Marquês de Sapucaí, palco de críticas ferozes à classe política, espraiou-se para as ruas e desembocou no Aeroporto Santos Dumont, localizado no centro do Rio de Janeiro. Sob o espanto de agentes de segurança, uma multidão de foliões vinda de um bloco de rua adentrou o saguão do aeroporto na segunda-feira (12) e, multicolorida, encheu o ambiente de gritos contra o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, e o presidente Michel Temer (veja no vídeo abaixo).

Pagodinho

Até o sambista Zeca Pagodinho viralizou e virou meme no carnaval 2018. Desta vez não por algum episódio relacionado à cervejinha que ele tanto venera, mas devido à polêmica de uma foto quase não tirada com o prefeito de São Paulo, o tucano João Doria.

A primeira versão que surgiu foi a de que Zeca, em um camarote no Sambódromo do Anhembi, recusou-se a tirar uma foto ao lado o político. As imagens da reação do artista ao encontro com o prefeito caíram nas graças da internet. Ficou entre os assuntos mais lembrados pelo Twitter na manhã de domingo (11).

Segundo relatos, Zeca gesticulou com as mãos e fez sinal de negativo com a cabeça enquanto o prefeito se aproximava, vindo do camarote da prefeitura. Cabisbaixo, o cantor ouviu o prefeito, que insistia na foto. O caso só foi resolvido quando o dono do camarote interveio e pediu ao artista que posasse ao lado de Doria. Zeca Pagodinho disse que a recusa não era pessoal, mas não queria ser fotografado ao lado de político. Aceitou posar, mas pediu a presença do ex-jogador Amaral entre os dois.

Depois de muito disse-me-disse e atuação das respectivas assessorias, o caso ganhou nova versão. Segundo a coluna de Mônica Bergamo (leia a íntegra), que diz ter testemunhado a cena in loco, o que aconteceu foi o contrário: amigos de Zeca queriam fazê-lo desistir do convite de João Doria para uma foto. “Eu estou na casa dele [sambódromo]. Vou na casa de uma pessoa e me nego a tirar uma foto com ela?”, indagou o cantor, segundo a colunista, que declara ter presenciado a cena ao lado de Zeca.

Presidente Despirocado

Mas não foi no Rio e em São Paulo que os políticos passaram por poucas e boas. Mais antigo bloco de carnaval de Brasília (criado em 1978), o tradicional Pacotão colocou em marcha toda a sua irreverência e acidez contra a classe política pelo 40º ano consecutivo. Como já era de se esperar, o presidente Michel Temer foi um dos alvos principais da turma, que preparou uma marchinha oficial intitulada “O presidente despirocado” – alusão desbocada ao fato de que o peemedebista passou, recentemente, por tratamento urológico e teve seus órgãos genitais afetados.

“Ô Charles Preto o que é que há / Esse ano tá difícil pra caraca / Esse golpista é muito chato / Perde o pinto mas não perde o mandato!”, diz a introdução da letra, que embala um hilariante e tresloucado presidente dançante.

Outra figura da política que não escapou da flecha satírica do grupo foi Rodrigo Rocha Loures, ex-assessor especial de Temer e suplente de deputado pelo PMDB do Paraná. Réu por carregar mala de dinheiro atribuído ao presidente, Rocha Loures já havia entrado para o folclore da política nacional depois de flagrado em plena corridinha de mala em punho, por uma rua de São Paulo, levando R$ 500 mil em dinheiro vivo. Para os investigadores, trata-se da primeira parcela de uma espécie de aposentadoria milionária para os peemedebistas pelos próximos anos. Da página policial para o acervo do Pacotão foi um pulo.

Neste ano, entidades aproveitaram o propósito do bloco para fazer um protesto criativo contra a reforma da Previdência. No vídeo abaixo, eles empilharam cédulas cenográficas para compor uma montanha de dinheiro – uma forma nada sutil para dizer a Temer que o setor previdenciário tem dinheiro sobrando e basta que ele seja bem distribuído. Além disso, a ideia é rechaçar a tese, encampada pelo governo Temer, de que servidores públicos acumulam privilégios e, por isso, sobrecarregam a Previdência Social.

Com quase quatro metros de altura, a instalação foi posta na quadra 302 Norte, área central de Brasília, e é uma iniciativa conjunta da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), da Frente Nacional contra a Reforma da Previdência e o do Movimento Acorda Sociedade.

Além das menções a Temer e Rocha Loures, teve defensor de Lula que comparou o juiz Sérgio Moro, responsável pela condenação do petista, ao diabo; teve faixa acusando o “golpe sujo” do impeachment; teve recado/cobrança para o governador de Brasília, Rodrigo Rollemberg – não bastassem as notícias negativas para a sua gestão, que enfrenta desabamentos e ameaças de queda de estruturas urbanas e uma situação de caos na saúde pública.

Na escolha do nome, nada mais óbvio que um motivo político: trata-se de uma crítica ao famigerado pacote de medidas que, formulado em 1977 pelo então presidente da República, general Ernesto Geisel, alterou regras eleitorais. O conjunto de mudanças ficou conhecido como Pacote de Abril.

No bloco há figuras históricas como o corretor de imóveis Jafé Torres que desde 1993 representa o ex-presidente da República Itamar Franco (1930-2011). Era o primeiro ano de governo efetivo de Itamar, político mineiro que assumiu o comando do país após o processo de impeachment e a consequente renúncia de Fernando Collor de Mello, em 1992.


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