20/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Liberdade de expressão não autoriza manifestação em favor da ditadura

Publicado em 08/02/2018 12:00 -

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O recrudescimento conservador que se vivencia no Brasil nos últimos tempos tem incentivado determinados grupos à organização de atos em favor de bandeiras que se pensava estarem superadas pela história. Um exemplo são as manifestações de rua pleiteando um novo Golpe de Estado, aos moldes do ocorrido em 1964, ou ainda demandando a prática de ações autocráticas semelhantes a que se sucederam à ruptura institucional, ocorrida no referido ano, contra o Presidente João Goulart (inclusive assassinatos ou torturas).

A legitimidade de manifestações, como as acima citadas, é justificada pela liberdade de expressão, direito inserido na Constituição da República de 1988 como essencial à sobrevivência da democracia. Sob tal entendimento, tem-se, nas manifestações pró-ditadura, o paradoxo de exercício de um direito eminentemente democrático em desfavor da própria democracia.

Pretende-se, com o presente artigo, refutar tal legitimidade, sustentando-se uma vedação democrática a manifestações em favor do regime ditatorial pós-1964.

O precedente do STF e o trauma da perseguição

Para se alcançar o fim proposto, é preciso, de pronto, lembrar que o Supremo Tribunal Federal, há alguns anos, consolidou o entendimento no sentido de não ser a liberdade de expressão um direito a ser exercido ilimitadamente. 

Por ocasião do Caso Ellwanger (STF, HC 82.424-2-RS), decidiu a corte que a liberdade de expressão não autorizava a publicação de livro contendo anti-semitismo e que fizesse apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica. Foi deliberado que a Constituição da República determina que a liberdade de expressão tem de ser exercida em conformidade à imagem, honra e vida privada (art. 5º, X), cabendo ao Estado defender os fundamentos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), do pluralismo político (art. 1º, V) e do repúdio ao racismo (art. 4º, VIII).

Essa decisão teve como pano de fundo o trauma do massacre da Alemanha nazista sobre minorias como judeus, homossexuais, ciganos e testemunhas de Jeová. É sempre importante lembrar que tal regime baseou-se na perseguição política aos adversários e na perseguição racial a populações pertencentes ao que os nazistas consideravam raças inferiores, gerando, como bem se sabe, a prisão, a tortura e a morte de milhões de seres humanos.

O trauma do nazismo ainda é um problema a ser superado

Daí, nos dias de hoje, a propaganda nazista ser considerada crime na Alemanha, situação que não difere da França (país ocupado pelas tropas de Hitler), que criminaliza a negação ao Holocausto. Note-se: Alemanha e França, locais onde a democracia, de origem liberal, é tida por sólida, lá vigorando ampla liberdade de expressão.

O Brasil também sentiu o trauma do regime nazista. Milhares de imigrantes, inclusive judeus, chegaram a terras brasileiras fugindo dos horrores que ocorriam na Alemanha e nos países ocupados pelo exército comandado por Hitler. Além disso, têm-se os soldados brasileiros mortos e feridos, quando foram a Europa combater os nazistas na Segunda Guerra Mundial.

O alcance no Brasil das consequências traumáticas do nazismo certamente influenciou o STF a declarar a necessidade do exercício da liberdade de expressão em conformidade a valores democráticos no paradigmático Caso Ellwanger. O anti-semitismo traz à lembrança de todo o horror que ocorreu sob o nazismo, gerando forte dor, ainda hoje, nas populações vítimas do massacre.

O trauma da ditadura

Infelizmente, o ocorrido na Alemanha não serviu de lição a determinadas elites políticas e econômicas que apoiaram a derrubada de João Goulart em 1964 e o regime ditatorial instituído a partir de então.

Os governos comandados por militares e apoiados por grupos civis levaram a cabo forte perseguição aos adversários políticos, prendendo-os, torturando-os e matando-os – que segundo a Comissão Nacional da Verdade, ocorreram 434 mortes e desaparecimentos sob o regime.

Da mesma forma, houve uma robusta perseguição racial aos povos indígenas, cuja secular luta contra práticas colonialistas foi tida como obstáculo aos projetos de expansão do capital a todo custo (segundo a Comissão Nacional da Verdade, a ditadura matou mais de oito mil indígenas).

Perceba-se: tal como no regime nazista, a perseguição foi política e racial.

É verdade que o massacre ocorrido deu-se de forma mais sutil, sob o discurso de “guerra à ameaça comunista” e de “necessidade de assimilação dos povos indígenas à cultura do civilizado”.

Todavia, os tempos eram outros – inclusive de proteção transnacional dos Direitos Humanos pela ONU -, compelindo os ditadores a adotar práticas mais discretas de extermínio daquele visto como inimigo.

De toda forma, o trauma da ditadura pós-1964 perdura como um fantasma na sociedade brasileira. Famílias de desaparecidos, ainda hoje, procuram os corpos de entes queridos, reprimidos pelo sistema.

Essas mesmas famílias ainda lutam pela aplicação de penalidades a torturadores, cuja impunidade é baseada em uma lei de anistia de legitimidade bastante discutível. Por outro lado, indígenas também continuam a lutar pela terra que foram expulsos por projetos expansionistas liderados pelos ditadores de farda.

Imagine-se, então, a dor de familiares e de amigos de presos, mortos e torturados (inimigos políticos ou indígenas) quando se deparam ou tomam ciência de manifestações – partidárias ou até mesmo carnavalescas – que cultuam a figura de torturadores e assassinos da ditadura pós-1964.

É preciso se colocar no lugar dessas pessoas. Por isso, entende-se que permitir ditas manifestações configura permitir o exercício da liberdade de expressão em desconformidade à imagem, honra e vida privada (art. 5º, X, da Constituição), ignorando-se o dever constitucional do Estado em defender os fundamentos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), do pluralismo político (art. 1º, V) e do repúdio ao racismo (art. 4º, VIII).

Uma cautela final

Como última observação, cabe lembrar que a conclusão acima alcançada não significa que seja proibido defender ideias que, distorcidas, levaram a opressões ocorridas ao longo da história.

Não se pode sustentar que defender o neoliberalismo significa defender o ditador chileno Augusto Pinochet, o primeiro a implementar o ideário neoliberal na América Latina. De igual maneira, não pode-se sustentar que defender a atuação forte do Estado na economia significa defender a opressão dos governos pró-União Soviética ocorrida no Leste Europeu.

Salientou-se, neste texto, um trauma específico brasileiro e que gerou efeitos concretos a milhares de brasileiros: uma ditadura que perseguiu adversários políticos e fomentou a opressão contra indígenas. Não se falou aqui da limitação de ideias, cuja difusão sempre terá apoio na liberdade de expressão.

Ressalvado esse ponto, fica aqui a defesa da necessidade do Brasil reconhecer seus próprios traumas históricos tentando superá-los. É preciso respeitar a dor daqueles que foram diretamente traumatizados por um triste momento da história brasileira.

André Augusto Bezerra – Doutor pelo Programa Humanidades, Direitos e outras legitimidades da Universidade de São Paulo (Diversitas/USP). Membro e ex-presidente (2014-2017) da Associação Juízes para a Democracia (AJD).


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