28/03/2024 - Edição 540

Especial

O levante das comunidades tradicionais – Parte 2

Publicado em 30/01/2018 12:00 -

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Ribeirinhos de Montanha e Mangabal

Comunidade se uniu a indígenas e, juntos, promovem a autodemarcação do seu território, enfrentando madeireiros, garimpeiros, grileiros e palmiteiros

A notícia chegou em garrafas de vidro jogadas no rio de um avião pequeno. A comunidade lembra bem do momento em que se descobriu, pela mensagem que caiu do céu, a grande luta pela frente. “Era uma carta proibitória: proibia caçar, pescar, fazer roça. Não tinha nenhuma atividade da nossa sobrevivência aqui que alguém pudesse fazer”, conta Maria Odileia Silva, 52 anos, todos vividos na mesma comunidade nas margens do rio Tapajós, oeste do Pará.

A carta vinha da Indussolo, empresa madeireira que afirmava ser dona de mais de 1 milhão de hectares, inclusive a terra das famílias ribeirinhas. A Indussolo chegou por ali na mesma época da rodovia Transamazônica, nos anos 1970. Naquela década, pessoas expulsas pela criação do Parque Nacional da Amazônia – uma unidade de conservação que também não permite a caça, a pesca e a roça – se juntaram aos que já moravam em Montanha e Mangabal.

De lá pra cá, os ribeirinhos têm lidado com diversos tipos de invasões, que costumam ser reunidas nas ações de figuras conhecidas na região: grileiros, que se dizem donos da terra; madeireiros, que retiram o jatobá e o ipê; garimpeiros, que se dizem donos de outra área; e palmiteiros, que devastam os açaizais não deixandonada pra quem se alimenta deles.

Mas nem sempre foi assim. “Era comum a gente viver em total harmonia com a natureza e sem problema nenhum com questão territorial”, explica Ageu Lobo, 36,morador de Montanha e Mangabal.

O rio Tapajós é considerado a despensa por essas famílias. É dele que retiram os peixes que são base de toda sua alimentação. Na terra, plantam a mandioca – a farinha não pode faltar –, frutas e leguminosas que alimentam as famílias e os vizinhos. Ninguém fica sem comer.“E lá na rua [na cidade] não, se você não tiver o dinheiro pra comprar, não tem como”, esclarece Maria Odileia.

Reconhecimento e autodemarcação

Em 2006, a comunidade foi oficialmente reconhecida por decisão da Justiça Federal, fruto de ação movida pelo Ministério Público, e, em 2013, foi criado o Projeto de Assentamento Agroextrativista de Montanha e Mangabal, pelo Incra. A responsabilidade, porém, ficou só no papel. “O Incra, ao deixar de atuar como deveria, está executando na prática uma política favorável a quem é contra o processo de reforma agrária aqui”, conta Edson Nunes, perito federal agrário, na região há 12 anos. “Esse não é um caso específico de Mangabal. Projetos de assentamento mais antigos estão todos entregues à grilagem, a fazendeiros e pecuaristas. É frustrante”.

A comunidade também sofre com a ausência de políticas públicas para educação e saúde. As omissões do Incra e da prefeitura de Itaituba já foram alvo de diversas denúncias da comunidade e ações do Ministério Público Federal. “A Regional do Incra no Oeste do Pará tem limitações orçamentárias e de pessoal, o que impede o atendimento de todas as demandas simultaneamente”, justifica o órgão (confira a resposta na íntegra ).

Atualmente, o superintendente da regional é Mário da Silva Costa, irmão do deputado federal Wladimir Costa (SD-PA), que ganhou os noticiários ao fazer uma tatuagem temporária em homenagem a Michel Temer e que teve seu mandato cassado em dezembro pelo Tribunal Eleitoral do Pará por irregularidades cometidas nas eleições de 2014.

Se, por um lado, o governo federal não atende direitos essenciais da comunidade, por outro tem representado uma ameaça para esses ribeirinhos e outros povos da região. O complexo hidrelétrico planejado para o Tapajós, suspenso atualmente, se alia aos planos de fortalecimento da região Oeste do Pará como rota de escoamento da soja – o chamado Arco Norte.

Com o rio e terras alagados pelas barragens, somem os pedrais e sinuosidades características do curso d’água, considerados os berçários de peixes pelos povos locais. Em contrapartida, fica mais fácil o tráfego de balsas e barcos grandes. A barragem de Jatobá, se construída, afeta todo o ecossistema do qual dependem as famílias.

Frente a esse “inimigo comum”, ribeirinhos e indígenas formaram uma aliança estratégica. Começou quando o povo Munduruku se viu ameaçado pelo mesmo projeto – parte de suas terras seria alagada pela barragem de São Luiz do Tapajós. Em 2014, eles decidiram fazer a autodemarcação do território e receberam o apoio dos ribeirinhos de Montanha e Mangabal, que ajudaram a fazer as picadas na mata.

Foi a inspiração para que, em setembro de 2017, a comunidade pedisse ajuda de organizações, apoiadores autônomos, indígenas Munduruku e Sateré Mauê para começar a autodemarcação de seu território. Foram 6 dias, 18 km de trabalho e 43 pessoas. A atividade foi acompanhada de ameaças de morte e intimidações por parte dos invasores. Com os índios, os beiradeiros também construíram um protocolo de consulta, que deve ser seguido sempre que houver um empreendimento que afete a vida da comunidade.

No meio do furacão, a tensão continua. Em novembro, deu-se início a nova etapa da autodemarcação. Junto dos ribeirinhos de Montanha e Mangabal, estavam indígenas da bacia do rio. Foram Kaxuyana, Tiriyó, Xeréu, WaiWai, Txikyana, Munduruku e Apiaká. Os povos que vivem dos rios da Amazônia seguem na luta pela proteção da floresta da qual também dependem.

Caiçaras de Paraty

Habitantes das praias mais preservadas do litoral carioca, comunidades são proibidas de pescar e expulsas por condomínios de alto padrão

Todo o tormento começou com as estradas. Primeiro a Cunha-Paraty (RJ), aberta em 1955, que inaugurou a conexão do território caiçara com o resto do país, trazendo com ela os primeiros turistas e, também, os primeiros interessados em adquirir aquelas terras, de olho no futuro. Quando a Rio-Santos rasgou a região em 1974, estava selado o destino dos caiçaras de Paraty – uma luta infinda para permanecer no lugar de seus antepassados, combatendo dois inimigos ao mesmo tempo: a especulação imobiliária e a preservação ambiental ditada pelo Estado.

O primeiro avanço foi a compra de terrenos de caiçaras para a construção de casas de veraneio e condomínios de luxo e, de forma mais violenta, mediante a ação de grileiros. Destes, o mais conhecido foi Gibrail Tannus Notari, que empreendeu uma investida sobre as comunidades tradicionais que já dura seis décadas, herdada por seu filho.A família é acusada de grilagem no Atlas Fundiário do Rio de Janeiro de 1991 e há uma ação movida pelo estado no Superior Tribunal Federal contra os títulos que os Tannus Notari apresentam como seus.

Expulsos, o destino dos caiçaras foi o mesmo: ir morar nas favelas de Paraty e, muitas vezes, trabalhar como caseiros ou domésticas nas mesmas casas que se construíram sobre suas antigas roças. “Fizeram de tudo para expulsar as comunidades”, diz Marcela Cananéa, liderança da praia do Sono.

Foi para conter a especulação imobiliária que os órgãos ambientais criaram três Unidades de Conservação na região: o Parque Nacional da Serra da Bocaina, em 1971, a Área de Proteção Ambiental do Cairuçu, em 1983, e a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, em 1992 – as duas últimas se sobrepõem. Dessas, só a APA não é de proteção integral, ou seja, permite o uso da terra e do mar pelos caiçaras – existe, inclusive, uma parceria ali, com os caiçaras participando do novo plano de manejo da unidade. Quanto às outras duas, se por um lado ajudaram a frear o avanço dos condomínios, por outro impuseram numerosas regras que comprometem o modo de vida caiçara. Todas são geridas pelo ICMBio “Essas unidades não me reconhecem como parte do ambiente”, diz Robson Possidonio, liderança de Trindade. “Não posso fazer roça, não posso retirar madeira para a canoa, não posso pescar.”

Se ao menos a preservação oficial do meio ambiente freasse de fato a especulação, já seria alguma coisa. Mas, diz Robson, não é bem isso que ocorre: “O empresário começa a construir sua casa, vem o Instituto Nacional do Meio Ambiente, embarga, e, na semana seguinte, por influência política, a construção já está desembargada. Hoje a península toda é casa de magnata”. A península à qual ele se refere é a ponta da Juatinga, onde fica a Reserva Ecológica homônima e o trecho mais preservado da região, em que, não por coincidência, está a maior parte das últimas comunidades praieiras tradicionais, que seguem com a cultura caiçara.

Não bastassem as restrições à pesca e às roças, as famílias se veem impactadas pela presença das casas de veraneio. Na Praia Grande da Cajaíba, a vítima mais séria da grilagem pelos Tannus Notari – que, apesar de responder por crimes ambientais, pretendem construir um resort no local –, o número de famílias caiçaras foi reduzido de 24 para duas em menos de duas décadas.

Na praia do Sono, o conflito é com o vizinho Condomínio Laranjeiras, que fechou o acesso das 40 famílias à comunidade onde vivem. “Você só chega no Sono por trilha ou de barco”, explica Marcela. O problema é que a trilha leva duas horas para ser percorrida e o cais de onde saem os barcos fica dentro do condomínio . Para acessá-lo, os caiçaras devem pegar uma kombi, já que não podem transitar a pé lá dentro.

União

O principal instrumento de luta dos caiçaras surgiu em 2007, com a criação do Fórum de Comunidades Tradicionais Angra–Parati–Ubatuba. Um marco também porque, pela primeira vez, os caiçaras se uniam aos indígenas e aos quilombolas em um esforço coletivo pela garantia do território. “Um está sensibilizado com o outro”, afirma Robson Possidonio. “Se os indígenas têm algum problema, caiçaras e quilombolas vão lá ajudar.”

O fórum foi o primeiro passo de um movimento interestadual que, em 2014, tornou-se nacional, com o surgimento da Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras, que reúne representantes do litoral do Paraná ao do Rio de Janeiro.“O movimento ainda é bebê”, diz Marcela, mas aponta na direção de algumas soluções viáveis.

Uma delas é o turismo de base comunitária, que já vem sendo implantado em algumas comunidades, junto a iniciativas de agroecologia e educação diferenciada. Outra é a criação de uma Reserva Extrativista Marinha que permita regularizar a pesca feita pelos caiçaras –em tese proibida pelas Unidades de Conservação de Proteção Integral– e, ao mesmo tempo, garantir o acesso aos cardumes, cada vez mais raros pela concorrência com a pesca industrial. “É uma pesca desleal”, diz Robson. “Quando a pescaria chega para a gente, os barcos já estão aqui.” Caiçara, palavra que deriva do tupi-guarani, significa “cerca feita de ramos”: uma referência ao cercado das roças ou à pesca de cerco que fazem no mar, perto das encostas.

Procurados pela reportagem, a família Tannus Notari, os responsáveis pelo Condomínio Laranjeiras e o ICMBio não responderam até o fechamento desta edição.


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