23/04/2024 - Edição 540

Especial

O levante das comunidades tradicionais

Publicado em 30/01/2018 12:00 -

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“Até 2002 vivíamos com nosso modo de vida na invisibilidade, e a invisibilidade garantia nosso modo de vida. O autorreconhecimento veio da necessidade de defesa do nosso território”. Quem fala é Maria de Fátima Alves, de 38 anos, apanhadora de flores na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Tatinha, como é conhecida, narra com clareza e convicção que, antes de ter seu território ameaçado, ninguém havia importunado suas vidas e as comunidades viviam com liberdade há séculos. A fartura das roças e a comercialização de flores colhidas no alto da serra garantiam o sustento. Seu lugar permanecia resguardado.

Tudo mudou quando o Estado desconsiderou sua existência ao declarar que aquele território era um Parque Nacional, uma unidade de conservação que impõe restrições à ação humana. A partir de então, foi preciso sair do silêncio e afirmar sua existência. Reconhecerem-se como comunidade tradicional foi um processo dolorido. “A gente é criado numa sociedade em que é feio ser da roça”, conta. “Antes a gente não falava; porque antes também não tinha necessidade”.

Quando fala sobre sua vida, Tatinha narra a história de milhares de outras comunidades espalhadas pelo Brasil, chamadas genericamente de comunidades tradicionais. Algo semelhante se passou nas que vivem nos litorais de São Paulo e Rio de Janeiro. Os caiçaras se denominavam assim, mas evitavam a palavra, pois trazia cunho negativo. Com a chegada de grileiros e condomínios de luxo, perceberam que assumir esse nome lhes embuía de poder político para assegurar sua relação com o mar, onde pescavam, e com as terras, onde moravam e cultivavam roças.

A história é parecida por todo o interior e litoral do país. Especulação imobiliária, grandes fazendas agropecuárias, plantações de grãos ou eucalipto, mineração, estradas, barragens, parques eólicos e até unidades de conservação ambiental: são múltiplas as ameaças que têm feito, ao longo dos anos, comunidades tradicionais em todo Brasil assumirem diferentes identidades, a partir da iminência de serem deslocadas de seus lugares.

Os nomes pelos quais elas se apresentam são inúmeros: ribeirinhas, faxinalenses, quebradeiras de coco, pescadoras, vazanteiras, entre muitos outros. Assim como povos indígenas e quilombolas, desenvolveram maneiras próprias de viver enraizadas em seus territórios. No Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, instância de participação oficial ligada ao Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário, hoje são reconhecidos 26 tipos de comunidades, e é certo que outros passarão a reivindicar esse título nos próximos anos. Como as apanhadoras de flores e as caiçaras, as comunidades lançam mão da carta da identidade quando em conflito. E o Brasil segue como um dos líderes em conflitos no campo.

Diversidade e território

É o professor Carlos Walter Porto Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense, que usa a expressão “jogo de cartas” para fazer uma analogia ao uso das identidades nas disputas por território. “As cartas que as comunidades têm são a memória e a as experiências”, diz. “Esses grupos podem lançar mão da carta da identidade porque têm relação com as veredas, com as savanas, com o cerrado, e isso estrategicamente pode ser reivindicado como identidade”.

Essa relação com os biomas mostra as estratégias que as famílias criaram para que pudessem sobreviver e ter alimentação farta, à medida que não encontravam, no Estado, um aliado. Para isso, produziram tecnologias e saberes próprios sobre os solos, a vegetação, os animais e as águas. Na Serra do Espinhaço, as apanhadoras de flores fazem uso controlado do fogo para que determinadas espécies de plantas possam brotar.

Assim, essas comunidades mantêm e manejam as florestas onde vivem, áreas por isso extremamente preservadas, contrariando a ideia de que as matas só podem ser conservadas se livres da ação humana. Nelas, também constroem maneiras de viver – social, econômica, política e culturalmente – que dependem do território em que estão e de como se relacionam com ele e com seu entorno.

Muitas comunidades narram que só iam para as cidades em busca de sal e querosene, produtos que não conseguiam produzir. Outras tiveram de negociar com diferentes atores para permanecerem nos locais que ocupavam, até mesmo com pagamento de parte da produção. Nascidas para terem o máximo de autonomia, um traço comum é a relação que estabeleceram entre si.

“As comunidades falam a mesma língua, temos a mesma cultura. Um socorre o outro nas enchentes”, explica Reinaldo Pereira da Silva, da comunidade pesqueira e vazanteira Maria Preta, nas margens do Rio São Francisco. Ao longo do rio, são pelo menos 300 comunidades como a sua. Perto dali, Clarindo Pereira dos Santos, de 50 anos, resume: “O São Francisco, pra mim e pra todas essas comunidades, é a vida. Quando acabar, acabou tudo”. Ele é morador de Canabrava, hoje destruída pela ação de fazendeiros que alegam propriedade da área. Para o professor Carlos Walter, “a vida digna não pode existir de forma abstrata: o território é condição para dignidade”.

Concepções de mundo

Se determinado grau de isolamento do restante da sociedade e estratégias de relacionamentos possibilitaram a permanência dessas comunidades em suas terras durante gerações, com seus modos de vida particulares, hoje os conflitos se acirraram. São as áreas ocupadas por elas as mais cobiçadas pelos projetos de agronegócio, de mineração e de infraestrutura, que recebem maciços investimentos públicos.

Para Patrícia de Menezes, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, todos esses projetos, nas suas múltiplas formas, retratam a maneira como o campo é visto no país: como um espaço a ser “desenvolvido e modernizado”, sem lugar para outras maneiras de viver, tidas muitas vezes como sinal de atraso e pobreza.

Como muitas dessas comunidades acabaram expulsas de suas terras, com as pessoas indo para a periferia das cidades, a pesquisadora enfatiza que o “reconhecimento identitário e político é uma condição para poder existir e ser o que se é, ao contrário do pensamento de que todo mundo tem de fazer parte de uma sociedade urbana ou de uma sociedade agroindustrial”.

Reinaldo, da beira do São Francisco, tem uma avaliação parecida: “embora eu seja brasileiro, eles me excluem do Brasil”.

No Cerrado e na Caatinga, as áreas que muitas das comunidades ocupam são extensas. As famílias fixam moradia perto das águas e, em alguns casos, em vilas ou cidades, mas usam um amplo espaço para rodízio das roças e campos coletivos para pastoreio, coleta de frutos, pesca e caça para alimentação. Seguem um costume centenário em que a cerca só é usada para evitar que os bichos comam suas roças. Todos sabem até onde vão os campos e os animais são reconhecidos pelos sinais. As relações são baseadas na ajuda mútua, por meio de laços familiares e elos de compadre e comadre, cruciais para a reprodução da vida. A expressão mais forte disso são os mutirões – ou puxirões, como dizem os faxinalenses no Paraná.

Por outro lado, expressão da apropriação dos espaços por invasores é justamente o uso de cercas nessas áreas por grileiros. É quando as concepções de mundo entram em conflito. “São vários processos de colonização que se sobrepõem historicamente”, analisa a pesquisadora Patrícia de Menezes. “Os projetos estatais e privados, que muitas vezes se confundem, afetam esses mundos de forma violenta”.

Muitos dos territórios, por estarem preservados, estão sendo “transformados” em áreas de reservas ambientais de fazendas. Outros, usados para o plantio de monoculturas de soja ou eucalipto. As comunidades e organizações que atuam junto a elas acusam as empresas do agronegócio de estarem secando os lençóis freáticos, com o desmatamento e projetos irrigados. “O solo do Cerrado é arenoso e poroso. Quando entram as grandes lavouras, se faz ‘correção’ do solo, e ele se torna impermeável para não perder a água”, explica Julita Rosa de Abreu Carvalho, da Comissão Pastoral da Terra na Bahia. “Na medida em que isso acontece, há grande desastre de impedimento do lençol freático ser alimentado pelos caminhos que são abertos pelas raízes profundas das árvores”.

Em movimento

O uso da palavra tradicional pode remeter a algo estático, parado no tempo. “As pessoas que estão no território não estão condenadas a ser como tal o resto da vida, têm direito a reinventar outras formas de ser, o sentido próprio que lhes é atribuído”, relembra o professor Carlos Walter. Essas comunidades estão em constante movimento e configurando novos movimentos sociais. Nos últimos anos, elas passaram a se encontrar em articulações regionais, que reúnem indígenas, quilombolas e diversos outros tipos de comunidades tradicionais: a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, que também existe no Piauí e na Bahia; a Articulação Camponesa de Luta pela Terra e Defesa dos Territórios, no Tocantins; o Fórum de Comunidades Tradicionais entre o Rio de Janeiro e São Paulo, entre outras.

No final de novembro de 2017, mais de 700 pessoas de comunidades de todos os estados do Cerrado se encontraram em Balsas, no Maranhão, e no mês seguinte as comunidades maranhenses se reuniram no Quilombo Cocalinho, no município de Parnarama, para trocar experiências em sua "teia".

Os encontros são recheados de denúncias, indignações, tambores, maracás, cantos e rezas. Para as comunidades camponesas, são espaços de aprendizados, principalmente com índios e quilombolas, cujos percursos de luta estão mais consolidados. As palavras autonomia e retomada são repetidas à exaustão, e quase sempre o Estado é visto como um inimigo que ora se omite, ora investe em projetos contra seus modos de vida, ora não reconhece seus direitos territoriais. “Nós não conseguimos pensar nesse espaço com cada um no seu quadrado, ele é essa teia”, diz Rosenilde Gregório dos Santos Costa, 55 anos, a Rosa, quebradeira de coco no Maranhão.

As comunidades tentam pautar o Estado exigindo direitos territoriais e liberdade de autogestão. Mas não esperam por ele. “Muitas comunidades estão centrando fogo em estratégias de permanência no território, porque, se forem esperar o Estado resolver os imbróglios, perdem a terra”, observa Tatiana Emilia Dias Gomes, professora na Universidade Federal da Bahia e advogada da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, a AATR.

Muitas partem para a ação direta: cortam cercas colocadas por fazendeiros ou empresas que tentam se apropriar de suas terras, expulsam pistoleiros, promovem a autodemarcação e até retomam áreas das quais foram expulsas. Foi o que aconteceu no Vale das Cancelas, em Minas Gerais. Lá, comunidades geraizeiras enfrentaram sucessivas expulsões e apropriações de seu território por vários tipos de projetos. Há poucos anos, decidiram retomar sua área e promover a autodemarcação de mais de 200 mil hectares, onde montaram acampamento e exigem o reconhecimento do Estado.

Pela Constituição de 1988 e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, as comunidades tradicionais têm assegurado o direito a autoidentificação e a território, assim como a serem consultadas sobre projetos que as impactem.

Na prática, entretanto, as vias para conquista territorial são tortuosas. Muitas ainda dependem de um laudo antropológico ou de outro tipo de certificação. Enquanto a Fundação Nacional do Índio, a Funai, é responsável pela demarcação de territórios indígenas, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, pela titulação de terras quilombolas, não há um procedimento único para os outros tipos de comunidades.

Elas, então, apelam para diferentes instrumentos que foram sendo criados pelo Estado a partir de sua mobilização, nem sempre ideais. Pelo Incra, existem os Projetos de Desenvolvimento Sustentável e os Projetos Agroextrativistas, que não levam em conta apenas a divisão em lotes individuais. Pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, há unidades de conservação que permitem o uso do território pelas comunidades que as ocupam. A Secretaria de Patrimônio da União criou os Termos de Autorização de Uso Sustentável, que podem ser obtidos pelas comunidades que vivem nas beiras das águas.

Diante da pressão local, alguns estados também começaram a criar legislações específicas para demarcar territórios tradicionais. É o caso da Bahia, do Paraná e, mais recentemente, de Minas Gerais.

Apesar disso, o aparato jurídico disponível ainda é frágil, e as comunidades enfrentam cada vez mais reintegrações de posse em favor de fazendeiros ou empresas emitidas pela Justiça, mesmo que estejam em áreas públicas. “A titulação é uma forma de reconhecimento mas não encerra e não resolve os conflitos, pois o Estado tem interesse econômico nessas terras e recursos naturais”, observa a pesquisadora Patrícia de Menezes.

Assim, mesmo quando conseguem demarcações ou concessões de uso, muitas comunidades reclamam que o território acaba reduzido, e a liberdade restrita. Para a advogada Tatiana Emilia, “a lente do direito estatal não consegue compreender nem enxergar o que é útil para essas comunidades, e não tem a dimensão do que se dá nos territórios”.

OITO HISTÓRIAS

Quem estuda a sucessão de fatos que foi construindo o Brasil não encontra muitas histórias de como se deu a ocupação do país para além dos projetos de colonização oficiais. Invisíveis aos olhos da maioria e muitas vezes desconsideradas pelo Estado, muitas comunidades criaram modos de vida próprios, enraizados em territórios que foram transformando e construindo.

Neste especial, a Repórter Brasil retrata oito comunidades tradicionais diferentes. Durante muito tempo, elas se beneficiaram de certa invisibilidade e usaram estratégias silenciosas de relacionamento com o resto da sociedade para permanecerem nos locais que ocupavam. Hoje gritam a sua existência. Dar nomes aos seus modos de vida é um jeito de combater o avanço de invasores sobre suas terras e sobre suas águas.

Ao mergulhar nesse universo, encontramos histórias de violência, ameaças e conflitos, diante da expansão da fronteira agropecuária, da especulação imobiliária e de projetos geridos pelo governo. Elas são uma pequena amostra de milhares de comunidades espalhadas pelo país – e de suas lutas para serem o que são.

Para sobreviver, elas dependem da nossa rica diversidade de biomas: da Caatinga ao Cerrado, das florestas de Araucárias à Amazônia, dos mares aos rios. Os territórios que ocupam são alguns dos locais mais preservados do Brasil.

Juntas, estão formando articulações para compartilharem conflitos e estabelecerem estratégias coletivas de resistência, aprendendo com as experiências dos povos indígenas e quilombolas.

Muitas vezes, a palavra tradicional é associada a práticas do passado. Mas, ao percorrer a trajetória de uma pequena amostra dessas comunidades, este especial conta uma parte muito viva da nossa história, e que segue em construção.

Apanhadores de flores

Parque Nacional proíbe atividade tradicional que é o centro da vida de dezenas de famílias do norte de Minas: a colheita de flores

“Como que chega uma pessoa no meu território, em que a gente nasceu e se criou, onde a gente sobrevive durante anos e diz: ‘vocês têm que viver assim’?”. A fala de Aldair Souza, 44 anos, não se dirige exatamente a uma pessoa, mas a uma unidade de conservação. Ele é morador da comunidade de Pé de Serra, a 47 km de Buenópolis, a cidade mais próxima. Criou-se na vida tranquila dos campos abertos da Serra do Espinhaço, norte de Minas Gerais. O trabalho sempre veio da terra, seja com a colheita das flores para venda, seja com a criação de gado, a agricultura e a colheita dos frutos secos do cerrado. Bisneto de apanhadores de flor, ele aprendeu na família como fazer a colheita e as queimadas controladas, que fazem as flores brotarem depois. Como tantos ali, conhece a diversidade e particularidade das mais de 200 espécies que nascem só nessa região, entre elas as flores sempre-vivas.

A chegada do Parque Nacional das Sempre-Vivas, criado em 2002, mudou drasticamente as condições de vida dessa população. Quase tudo o que sabiam fazer se tornou proibido e invalidado. Com 124 mil hectares, a unidade de conservação se sobrepõe a 11 comunidades tradicionais existentes na região, que em sua maioria se identificam como apanhadoras de flores – mas há também vazanteiras, geraizeirase quilombolas, e em muitas delas as identidades se misturam. O parque, que abrange os municípios de Olhos d’Água, Bocaiúva, Buenópolis e Diamantina, é uma unidade de proteção integral. Dentro dele é proibido caçar, pescar, criar animais e exercer qualquer uma das atividades praticadas pelas famílias que vivem ali. Até a coleta de flores foi proibida depois da criação do parque, quando passou a ser considerada como uma atividade de impacto.

A colheita das flores é o centro da vida da gente que vive na região, gente acostumada a se guiar pelo ritmo dos ciclos da natureza. Na época das colheitas, famílias inteiras vão para o alto da Serra. Montam moradia nas cavernas que lhes dão sombra – chamadas de lapas – e passam ali cerca de três meses. É quando acontecem os encontros, reencontros, a alegria da festa, casamentos e nascimentos. “É uma farra”, resume Aldair em um sorriso. Maria de Fátima Alves, de 38 anos, é ela mesma filha da colheita. Seus pais se conheceram em cima da Serra e dali construíram a família e seu sustento.

Foi a partir de 2007 que as coisas começaram a mudar e chegou o terror, como define Aldair. A gerência do Parque começou a fazer intimidações e ameaças às famílias que permaneciam ali. Aldair e Maria de Fátima citam um episódio em que uma funcionária do parque apontou uma arma para uma criança. Antônio, de 74 anos, pai de Maria de Fátima, foi multado e ameaçado dentro de sua casa, segundo ela relata. Muitas vezes, os barracos e pertences das famílias eram queimados ou levados. Com a violência, muitas pessoas adoeceram, outras se mudaram dali. O ICMBio afirma que sua corregedoria instituiu um processo administrativo disciplinar para apurar os fatos e que o Ministério Público Federal abriu inquérito civil com o mesmo objetivo.

Após denúncias dos moradores, a gerência mudou. Mas as proibições continuaram. “Eles falam que não proíbem a pessoa, que podem continuar, porque realmente por lei eles não podem tirar enquanto não for indenizado, mas ao mesmo tempo vai privando as pessoas de ter as coisas”, relata Maria de Fátima. Apesar das restrições às comunidades, seguiram os avanços da monocultura de eucalipto, para produção de carvão mineral, da mineração de quartzito e de fazendeiros, que ameaçam a permanência no território tradicional.

Resistência

Foi com a ameaça de perda de território que as comunidades começaram a perceber que tinham modo de vida próprio, que dependia da serra para continuar existindo. Eram elas quem, há gerações, mantinham a área do parque “conservada”. Passaram a afirmar sua condição, vencendo o estigma da pobreza.

Organizadas, exigem que o Parque se torne uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, o que permitiria a continuação do manejo praticado pelas famílias e seu sustento. Aldair aponta dificuldades em dialogar com o ICMBio. “Muitas vezes as propostas são ignoradas. Não consideram as ideias da gente, na verdade não consideram as comunidades”, fala. A atitude desrespeita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho , que estabelece no Brasil um marco legal de consulta às comunidades tradicionais sobre qualquer projeto que as afete.

O ICMBio afirma que desde 2012 busca construir um instrumento de garantia de direitos das comunidades tradicionais, “não obtendo sucesso mesmo com o apoio do MPF, pois as lideranças com quem o órgão dialogava não aceitavam que o ICMBio iniciasse este debate nas comunidades”. Confira a íntegra da resposta.

Hoje, nas brechas, as famílias conseguem desenvolver a colheita das sempre-vivas, as flores mais cobiçadas. Em 2017, a colheita rendeu quase meio milhão de reais ao conjunto de comunidades da região de Pé de Serra, segundo Aldair. As flores são vendidas a atravessadores e vão para exportação. Atualmente, as comunidades estão aprendendo melhor sobre a cadeia de valores para incidir sobre ela. As sempre-vivas custaram, nessa colheita, R$ 16,50 o quilo.

“Essa política ambiental está muito equivocada ao achar que o caminho da conservação ambiental é esse de retirar comunidade tradicionais, como se isso fosse de fato promover conservação”, critica Claudenir Fávero, professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. “Acho que está muito claro que este não é o caminho. São muitos exemplos de que isso não resulta em conservação e causa exclusão social”.

Pescadores e vazanteiros do norte de Minas Gerais

Pescadores que plantam nas margens do Rio São Francisco são expulsos e ameaçados de morte. Comunidade inteira entrou em programa de proteção

Tem quem compare Reinaldo Silva a Zumbi dos Palmares. Isso porque, como o líder quilombola, Reinaldo só anda à noite. Tem motivo. Ele lidera a retomada das terras de sua comunidade e corre risco se visto de dia. Vive com a esposa e a filha, de 11 anos, e mais 74 famílias na comunidade de Maria Preta, norte de Minas Gerais, município de Itacarambi.

A vida toda o rio São Francisco garantiu sua sobrevivência, pela pesca e na área de vazante, onde plantam feijão, milho, abóbora, quiabo e tantos outros alimentos na terra fertilizada pela cheia do rio. Assim já se vão os 40 anos que Reinaldo carrega no corpo. Nos últimos três, porém, a chuva não apareceu e as famílias não conseguiram colher nada. Mês passado a chuva voltou com força. Os ciclos da água têm disso. São as outras pressões que representam a maior ameaça ao seu modo de vida.

As comunidades pesqueiras e vazanteiras do norte de Minas convivem há gerações com o sufocamento do seu território, além do constante risco de serem expulsas da beira do rio que lhes dá a vida. Na região dos municípios de Itacarambi, Manta e Januário, se tem notícias de 16 comunidades pescadoras e vazanteiras. Ao longo do rio São Francisco, são mais de 300.

Desde 2012, comunidades de todo Brasil promovem uma campanha nacional para buscar a regularização dos territórios pesqueiros. Nesse processo de troca, muitas têm aprendido sobre direitos territoriais. Mas, junto com a luta por direitos, também vêm a violência, as ameaças e os processos judiciais.

Foi nos anos 1950, quando o governo de Minas criou o Projeto Jaíba, considerado o maior projeto de agricultura irrigada da América Latina, que os habitantes de Maria Preta foram expulsos. A retomada da beira do rio começou em março de 2014, depois que Reinaldo aprendeu sobre os direitos de comunidades tradicionais, como a sua. Descobriu que as beiras de rio pertencem à União e que, de acordo com a lei, elas têm destino de uso para comunidades tradicionais que ocupam este pedaço de chão. Foi aí que a luta começou e a comunidade pediu à Secretaria de Patrimônio da União a concessão do Termo de Autorização de Uso Sustentável, que regulariza o uso tradicional dessa área. O processo ainda não andou.

A justiça estadual tem sido o canal por onde chegam as ordens de despejo expedidas em favor de fazendeiros, ainda que a beira de rio seja de competência federal. É pelos tribunais também que lideranças e agentes de organizações que apoiam as comunidades para garantir o cumprimento da lei são perseguidos e criminalizados.

Sufocamento

Reinaldo relata que vaqueiros armados, em defesa da fazenda que cerca a comunidade,aparecem atrás do gado que chega perto das casas dos pescadores para fazer xingamentos e ameaças. Por tudo isso, ele foi incluído no Programa de Defensores de Direitos Humanos, mas não vê eficácia. “É um programa que só protege depois que morre, pra ser bem realista”.

É por isso que Maurício Silva, morador da comunidade de Barrinha, vizinha a Maria Preta, fala com nítida apreensão. “A lei não funciona pros pequenos”, sublinha. Em Barrinha e Cabaceiras existe um pedido de reintegração de posse em favor de Helton Jun Yamada, diretor da fazenda Brasnica, reconhecida pela produção de frutas. A angústia vem de que aconteça o pior, dizem os moradores: que as casas, roças e criações de animais sejam destruídas, como aconteceu em Canabrava.

Lá, Solange Santos observa do outro lado do rio o mato tomar conta da casa que construiu e da plantação que criou. A liminar de despejo veio em 2016 pela vara de justiça agrária de Minas Gerais, mas a decisão foi suspensa. Ainda assim, agentes da Polícia Militar derrubaram casas no dia 18 de julho de 2017, acompanhados dos herdeiros de Breno Gonzaga Junior – Adriano, Artur e Bráulio. Gonzaga Junior era dono da fazenda Canabrava/Bananal, onde há cerca de três anos não há moradores.

Dois dias depois, funcionários e os herdeiros da fazenda retornaram, atearam fogo em tudo e destruíram o restante das casas. Esses episódios foram registrados em perícia do Ministério Público Federal. O relatório aponta que, ao ser questionado, com os braços cobertos de cinza, Adriano Gonzaga negou responsabilidade pelos incêndios e tiros deflagrados. A perita do MPF avalia que “eles agiram por entender que possuíam direito de posse resguardado pela decisão judicial”, apesar de revogada.

No dia 1º de agosto, o desembargador Antônio Bispo, do Tribunal de Justiça de Minas, determinou a prisão de qualquer pessoa na área e pediu investigação policial contra as lideranças de Canabrava e agentes do Conselho Pastoral de Pescadores. As famílias se abrigaram na ilha Esperança, onde a violência continuou.

Atualmente, com a cheia do rio, a ilha está debaixo d’água e as famílias sem ter onde morar. Toda a comunidade foi incluída no Programa de Defensores de Direitos Humanos e tem sobrevivido de doações. “Hoje a pesca tá fechada, e não tem vazante, não tem nada, já estou passando até necessidade pra falar a verdade”, relata Clarindo Pereira.

Unidas, no dia 13 de novembro, as comunidades ocuparam a sede da Secretaria de Patrimônio da União em Belo Horizonte para pedir urgência na regularização. Uma semana depois, cerca de 500 pescadores e pescadoras artesanais de diferentes partes do Brasil ocuparam o Ministério do Planejamento, em Brasília. Em dezembro, foram feitas as vistorias de identificação das áreas, mas “não há previsão para a conclusão desses trabalhos”, afirma a secretaria em resposta aos questionamentos da reportagem. Enquanto isso, a insegurança das comunidades persiste, por todo o rio São Francisco. E a luta também.

Quebradeiras de coco babaçu

Barradas ao tentar entrar nas fazendas onde fazem a colheita tradicional do coco, maranhenses discutem território

Do babaçu, nada se perde. Da palha, cestos. Das folhas, o teto das casas. Da casca, carvão. Do caule, adubo. Das amêndoas, óleo, sabão e leite de coco. Do mesocarpo, uma farinha altamente nutritiva. “A gente diz que a palmeira é nossa mãe”, resume Francisca Nascimento, coordenadora-geral do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu. O tempo que o cacho com os cocos leva para cair é de exatos 9 meses. E é quando caem que entram em ação as quebradeiras de coco babaçu, grupo de cerca de 300 mil mulheres espalhadas em comunidades camponesas do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará, em uma área de convergência entre o Cerrado, a Caatinga e a Floresta Amazônica, especialmente rica em babaçuais. Há gerações essa tem sido a rotina dessas trabalhadoras: passar o dia coletando os cocos e quebrando-os ao meio para extrair sobretudo suas amêndoas, da qual se produz um dos óleos mais versáteis da natureza.

No entanto, a maior parte dos babaçuais está em grandes fazendas. As quebradeiras estão dispostas a mudar esse quadro. De violências sofridas durante décadas por essas mulheres, e resultado da sua ampla organização, foi criada a Lei Babaçu Livre, implantada pela primeira vez em 1997 no município maranhense de Lago do Junco. Outros municípios seguiram o exemplo e o Tocantins aprovou a lei em nível estadual. Basicamente, ela proíbe a derrubada de palmeiras e garante o acesso e o uso comunitário dos babaçuais por parte das quebradeiras, mesmo se estiverem em terras privadas. São raros, porém, os municípios nos quais a lei é cumprida – além dos esforços em revogá-la por parte de fazendeiros. “Eles estão dizendo que babaçu é praga”, ironiza Francisca.

Cenas de violência se repetem em todas as comunidades: as quebradeiras saem de casa para coletar os cocos e se deparam com uma cerca que as separa dos babaçuais. Quando a cerca não é eletrificada, há um capanga cobrando o acesso às terras. O pagamento pode ser metade das amêndoas colhidas. Não raro, a intimidação inclui ameaças de morte e outras formas de violência, inclusive sexual.

As cercas foram erguidas nos últimos 40 anos por fazendeiros interessados em usar aquelas terras para a criação de gado e o cultivo de soja e eucalipto, muitas vezes por meio de incentivos públicos. Quanto às palmeiras, ou são derrubadas para a abertura de pastos e lavouras, ou permanecem ali, cercadas e inacessíveis às quebradeiras. “Eles fazem por maldade mesmo”, argumenta Francisca. “Não é porque precisam do babaçu, é porque não querem deixar a área aberta.”

Território das quebradeiras

A luta é antiga. As dificuldades impostas levaram as quebradeiras a se organizar: o MIQCB, rede de cooperativas, associações e comissões dedicada à luta pelo direito das comunidades que extraem o babaçu, tem mais de 20 anos. Desde então, a Lei Babaçu Livre tem sido a principal bandeira das quebradeiras.

De poucos anos pra cá, no entanto, a reivindicação começou a ser outra. Mulheres do Maranhão passaram a participar de uma articulação estadual que reúne indígenas, quilombolas e outros tipos de comunidades camponesas, na Teia de Povos e Comunidades Tradicionais. No aprendizado com os outros grupos, perceberam que seu modo de vida, sem um território garantido, permanecerá ameaçado e violentado.Suas vidas submissas aos desmandos de fazendeiros.

“Por mais que a gente não falasse assim, mas era esse sentimento de território que fazia a gente dizer: vamos pegar o nosso coco. Usamos estratégias para isso. Uma delas foi a lei que garantia a nossa presença nos babaçuais”, relembra Rosenilde Gregório dos Santos Costa, 55 anos, também integrante do MIQCB. Além da luta pela terra via reforma agrária, outra frente foi a tentativa tímida de demarcação de reservas extrativistas. Até então, havia quatro Resex na zona dos babaçuais, todas criadas em 1992, apenas uma regularizada até hoje – a do Quilombo do Frechal, no Maranhão. Nas outras, os fazendeiros se empenharam em fracionar suas terras, de modo a impedir a desapropriação.

Em 2016, um dos encontros da Teia foi no Centro dos Pretinhos, comunidade de quebradeiras do município de Dom Pedro,no Maranhão, cercada por grandes fazendas. “Lá tem só o espaço das casas”, diz Sheila da Silva Lima, 21 anos. O encontro teve como mote a frase “Não existe babaçu livre com terra presa”. A ideia tem se espalhado pelos outros estados.

“A implantação de grandes projetos está matando as nossas águas e a nossa terra, e assim a gente morre junto, mata a nossa cultura e a nossa história. Nós somos comunidades tradicionais, sim. Não é só um trabalho ser quebradeira, temos um jeito de nos relacionar com os babaçuais”, disse Rosa, no último encontro da Teia, em dezembro de 2017. “Estamos discutindo território”, diz Francisca. O sonho é de uma terra que inclua as quebradeiras e outras comunidades tradicionais, unidas em favor do cuidado dos babaçuais, pois deles dependem. “A quebradeira, antes de ser quebradeira, é negra, é indígena, é branca”, afirma Francisca, evocando suas múltiplas identidades para lembrar que a luta é comum. E comum, se fortalece. “Quanto mais eles ameaçarem, mais a gente vai mostrar que tem força.”

Faxinalenses do Paraná

Enquanto aumentam os impactos sobre seu modo de vida centenário, os faxinalenses crescem como força identitária. Suas áreas estão entre as mais preservadas do estado

Onde há faxinal, há mata. Quase todos os pontos verdes no mapa do Paraná, exceto a área da Serra do Mar e das grandes unidades de conservação, guardam em si pequenos territórios nascidos da relação do homem com a floresta. Essas comunidades existem há pelo menos 200 anos, e por quase todo esse tempo permaneceram em um estado de delicado equilíbrio entre o uso e a preservação do que a natureza dispõe: a atividade econômica e a vida em comunidade.

A única cerca existente é a que circunda os faxinais, servindo de divisa entre as roças de alimentos, situadas do lado de fora e o faxinal em si: área que pode variar de 200 a 1,5 mil hectares onde ficam as casas, a mata e os pastos de criação. Cada um é dono de seus bois, cavalos, porcos e ovelhas, mas a terra é de uso comum, e todos os animais vivem à solta. Também a floresta é comunitária: dela os moradores extraem pinhão, erva-mate e plantas medicinais.

Nos anos 1970, com a expansão de grandes lavouras, os faxinalenses viram o início da desestruturação do seu modo de vida. Em 1997, o governo estadual do Paraná criou uma categoria específica de proteção dos seus territórios: as Áreas Especiais de Uso Regulamentado (Aresur), que não apenas delimitam os faxinais como possibilitam recompensar as comunidades com o ICMS Ecológico.

Existem hoje 28 dessas áreas no estado. Parece bom, mas ali é criado outro problema. “As Aresur foram criadas de cima para baixo, sem que nos consultassem”, diz Hamilton José da Silva, liderança no Faxinal dos Ribeiros, em Pinhão. “Na hora de delimitar os faxinais, houve muita perda de território.” Não bastasse isso, nem sempre as comunidades recebem a cota que lhes cabe do ICMS Ecológico. Ou porque as prefeituras repassam menos do que deveriam, ou simplesmente porque destinam a verba a outro uso.

Por quase uma década os faxinalenses estiveram à mercê das regras desse jogo, até o momento em que, pela primeira vez, se reuniram para discutir seus interesses comuns. Foi em 2005, com um encontro no município de Irati, que reuniu mais de 200 faxinalenses, que eles se reconheceram como comunidade, compartilhando do mesmo modo de vida, da mesma cultura e dos mesmos objetivos. Disso nasceu a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, hoje o principal meio de pressão sobre o poder público desas comunidades. Já no ano seguinte ao desse encontro, conseguiram do governo do Paraná o reconhecimento oficial como comunidade tradicional.

Ameaças e organização

Enquanto aumentaram os impactos sobre seu modo de vida centenário, os faxinalenses cresceram como força identitária. No centro do Paraná, as monoculturas de milho e soja estão mais perto do que nunca, contribuindo para o desmatamento das florestas nativas, entre elas as de araucárias, e para a contaminação da água com agrotóxicos, quando não para o esgotamento das fontes hídricas.

“Temos relatos de riachos que secaram”, conta Amantino Beija, um dos coordenadores da Articulação Puxirão. Amantino vive no faxinal Meleiro, em Mandirituba. Nos arredores de Curitiba, a água dos faxinais também está sendo sugada, mas pelo cultivo de pínus e eucalipto – um problema a mais para os faxinalenses da região.

Perto da capital, outro desafio é trabalhar com os jovens. As escolas do campo, nas quais as crianças faxinalenses poderiam desfrutar de um conteúdo e uma prática curriculares voltados à comunidade, ainda são um sonho. “Os professores vêm todos de fora e dizem que os alunos precisam estudar e abandonar nosso modo de vida para ser alguém na vida”, diz Amantino. A comunidade acaba sofrendo com a venda de terras, por parte das gerações mais novas, para a criação de chácaras de veraneio. “As pessoas da cidade compram área de faxinal e não procuram saber como é a vivência da comunidade, inclusive cercando suas terras”, relata Amantino, ressaltando que, com isso, moradores mais antigos ficam sem pasto para os animais, tendo que recorrer à ração.

A implantação dos mecanismos já existentes, ainda que não sejam ideais, é um dos marcos da luta. “A Aresur oferece muitas vantagens, mas precisa ser bem discutida com a gente”, diz Hamilton. No último levantamento feito por organizações parceiras da Articulação Puxirão, foi registrada a existência de 227 faxinais no Paraná, mas apenas 30 fazem parte da articulação, dada a falta de recursos para conectar comunidades tão distantes geograficamente. Para as comunidades faxinalenses, Puxirão significa mutirão, o que traduz bem não só o modo como cuidam de suas criações, mas como percebem o território.

Geraizeiros do Vale Das Cancelas

Famílias que viviam nas chamadas “terras livres” lutam para retomar áreas que foram judicialmente apropriadas por fazendas

Um fenômeno peculiar atinge o norte de Minas Gerais, lá onde vive o povo contado por Guimarães Rosa: a grilagem judicial. A prática de falsificar documentos e processos para transformar terras públicas em privadas, identificada no local pela pesquisadora Sandra Gonçalves Costa, da Universidade de São Paulo, remonta as décadas de 1920 e 1930. Foi quando elites locais, com acesso ao aparato jurídico e burocrático da recém-criada República brasileira, começaram a titular como privadas as “terras livres” dos Gerais. A prática se estendeu pelo século seguinte.

O uso da expressão “terras livres” diz muito. Eram livres as terras porque não tinham cercas e eram de uso comum das comunidades camponesas. Eram livres as comunidades que viviam em uma relação de interdependência umas com as outras e com o Cerrado. São as comunidades geraizeiras, que hoje decidiram retomar seus territórios. Nas chapadas, lugares mais altos, criam o gado e outros animais soltos. É onde também buscam frutos, plantas medicinais e caça. Nas margens dos pequenos cursos de água, plantam.

Na região do Vale das Cancelas, em 13 processos analisados, de um total de 36 referentes à divisão e demarcação nas terras da Comarca de Grão Mogol, a pesquisadora Sandra identificou mais de 1 milhão de hectares de terras públicas que se tornaram privadas.

Demorou ainda para que a expulsão batesse na porta da família de Lurdes da Costa, hoje com 55 anos. Ela lembra que uma empresa de reflorestamento estava atrás das suas terras. Era 1974, segundo conta. Foi durante o regime militar, entre as décadas de 1960 e 1980, que o governo de Minas Gerais, por meio de agências de incentivo, arrendou as terras de uso comum das comunidades geraizeiras para que empresas plantassem eucalipto com dinheiro público. Sob o nome de reflorestamento, as monoculturas destinavam-se para a produção de carvão para siderúrgicas, e estão presentes até hoje.

Com a pressão, Lurdes, os cinco irmãos e os pais saíram fugidos da região de Grão Mogol. Foram morar nas ruas de Montes Claros. Lá, o pai desapareceu. Ela se separou da mãe e dos irmãos – só os reencontrou em 1981. Invisíveis e fugindo da violência, geraizeiros e geraizeiras perderam os laços com a terra da qual viviam. Perderam a liberdade e a paz.

No caminho de buscar entender os porquês da sua história, Lurdes retornou em 2006 para os Gerais, onde montou seu barraco e uma pequena roça, com criação de animais. Quis retomar o modo de vida que foi obrigada a deixar na infância e lutar pelo seu direito à terra.

Apropriação e retomada

Em inquérito civil, o Ministério Público Federal aponta apropriação privada de terras públicas de uso das comunidades geraizeiras a cinco empresas: a Florestas Rio Doce – empresa que Lurdes nomeia como responsável pela expulsão de sua família –, a Norflor Empreendimentos Agrícolas, a Floresta Minas Reflorestamento e a Rio Rancho Agropecuária. Essa última é de propriedade do ex-governador e ex-deputado federal por Minas em três legislaturas, Newton Cardoso, e seu filho Newton Cardoso Júnior, também deputado federal (PMDB-MG).

A apropriação também é identificada em projetos de mineração. Foi assim que Adair de Almeida, geraizeiro de 43 anos, soube que perderia as terras de seus pais, “sem direito a nada”. Como nos anos 1970, por volta de 2010 manipulações, ameaças e intimidações bateram à porta dele e de seus vizinhos. As comunidades geraizeiras se viram cada vez mais encurraladas. Sem a terra, o trabalho se destinou ao corte de cana e à colheita de café, no sul de Minas e em São Paulo, ou nos próprios empreendimentos criados.

Em uma luta contra a fome, a miséria e a seca, geraizeiros e geraizeiras do Vale das Cancelas decidiram iniciar a retomada das suas terras, quando o prazo de arrendamento concedido às empresas de eucalipto expirou. Em novembro de 2015, as comunidades realizaram a autodemarcação de seu território tradicional e declararam a proteção dos cerca de 228.000 hectares de Cerrado e de suas águas nos municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis, assim como da cultura de seu povo, dos costumes e das trocas realizadas.

Um ano depois, 120 famílias geraizeiras ocuparam uma área da Fazenda Buriti Pequeno, produtora de eucalipto, para pressionar por seus direitos.

Ali, com a retomada das atividades tradicionais, Adair começa a ver a diferença: “Quando tem muito animal, a gente percebe que está voltando ao normal”, explica. A tensão não deixa de existir. No acampamento da comunidade São Francisco, área retomada em outubro de 2017, o enfrentamento se dá há anos com a empresa AJR Energética, da família do empresário João Lima Gel e do grupo Floresta Minas Empreendimentos. Agora, as comunidades são alvo de um processo de reintegração de posse que não se difere muito do que já foi levado a cabo num passado recente.

“Todos os dias as terras devolutas vêm sendo griladas por mineradoras e empresas de reflorestamento”, denuncia Adair. Além delas, a Diferencial Energia recebeu em 2017 a licença de instalação – sem consulta prévia, denunciam as comunidades geraizeiras – ao projeto da termelétrica de Grão Mogol, que gerará energia a partir do eucalipto fornecido pela Norflor. No mesmo ano, o governo de Minas regulamentou a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais do Estado de Minas Gerais. A luta não para, a próxima é para que a lei saia do papel.

Retireiros do Araguaia

Comunidades que criam gado livre em um dos melhores pastos naturais do país são cercadas por plantações de soja e ameaçados por grileiros

Desde que chegaram às margens do rio Araguaia movidos pela expansão agrícola dos anos 1940, os retireiros puderam usufruir de um dos melhores pastos naturais do país. Todo ano, quando acaba a temporada de chuvas, o rio volta ao seu leito, transformando a área antes alagada em um grande campo verde, úmido e enriquecido pelos nutrientes deixados pelo rio Araguaia, no Mato Grosso. A esse terreno, dá-se o nome de “varjão”, e foi nele que há quase 80 anos se instalaram os “retiros”. O nome é dado aos pontos onde cada criador instala sua casa, roça e curral para alimentar o gado durante a estiagem. É lá que eles ficam até que voltem as chuvas, por volta de outubro.

Nos retiros, cada cabeça tem seu dono, mas o campo é de todos. Ou era.

O Vale do Araguaia guarda intensos conflitos . Nos anos 1960, essa região mato-grossense que fica entre o Cerrado e a Amazônia começou a receber fazendas agropecuárias, implantadas com incentivo fiscal do governo militar. Foi naquelas terras que Ariosto da Riva, conhecido por “desbravar” áreas no estado, instalou a fazenda Suiá Missú, com meio milhão de hectares, onde antes viviam índios Xavante, transferidos pelo governo para longe dali em 1966.

Foi dessa região que Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, denunciou ao mundo a existência de trabalho escravo contemporâneo no Brasil.

No início do século 21, grandes lavouras se expandiram, cobiçando o solo fértil e plano das margens do Araguaia. Justo as terras dos retireiros, que, embora sejam propriedade da União, passaram a ser objeto de fraude de titulação – a famosa grilagem de terras. “Ao contrário dos índios, a proteção legal para os retireiros é muito precária”, diz Wilson Rocha, procurador do Ministério Público Federal que atuou por quatro anos junto a essa comunidade . “Quando chegou o agronegócio, eles não tinham terras garantidas.”

Tensão

De olho no avanço da soja e do arroz, famílias da região com grande poder político começaram a cercar os varjões com cercas de arame, não só reduzindo a área das pastagens como também impedindo o acesso do gado à água do rio. Os retireiros, em resposta, entraram em 2003 com o pedido de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mato Verdinho, área de 110 mil hectares que teria a função de regularizar o uso tradicional das terras, que continuariam sendo públicas.

De lá para cá, o embate só aqueceu, chegando ao clímax em 2013. Foi quando os que se diziam proprietários de terra fecharam durante uma semana os acessos à cidade de Luciara, fizeram barricadas e queimaram a casa de dois líderes retireiros. Uma delas foi a de Jossiney Evangelista. “Fui ameaçado de morte. Pensei até em largar essa luta minha”, ele diz.

O clima na região era de bastante tensão. Um ano antes, os índios Xavante conseguiram a desintrusão e a retomada de seu território, a terra indígena Maraiwãtsédé. “O ódio aos índios se estendeu aos retireiros”, afirma Claudia Araújo, que foi agente da Comissão Pastoral da Terra no Araguaia. Mas a luta continuou, agora acrescida de novos antagonistas: parte da população da cidade de Luciara e até mesmo entre os próprios retireiros.

“Os grileiros usaram a população como massa de manobra e também geraram medo nos retireiros”, afirma Jossiney. Resultado: o processo de criação da reserva travou. “Em 2014, tentamos uma estratégia diferente”, diz Wilson Rocha. “Entramos com um pedido de Taus [Termo de Autorização de Uso Sustentável] à Secretaria de Patrimônio da União”. Segundo o procurador, a secretaria respondeu bem, dando o primeiro passo para a criação de um território retireiro: expediu uma portaria declarando 1,6 milhão de hectares como sendo de interesse da União. Três meses depois, porém, o mesmo órgão revogou a decisão.

O motivo do recuo seria pressão política, segundo a secretária na época responsável pela revogação, Cassandra Nunes. A pressão veio de prefeitos e deputados, muitos dos quais "exaltados", segundo ela. Cassandra acredita que "o alarido teria sido menor se não tivéssemos delimitado uma área tão grande, o que trouxe ainda mais tensão a um clima que já era de polarização em todo o país".

"Uma das razões que me fez rever essa portaria foi pensar em uma área menor, que excluísse terras já protegidas, e ao mesmo tempo trabalhar com mais calma na definição desse território, já que estávamos em transição no Governo Federal", ela diz. De fato, em 2016, foi dado início a um novo estudo de campo na região, que gerou um relatório mais apurado daquele que talvez venha a se tornar um território de uso coletivo dos retireiros. Fernando Campagnoli, coordenador-geral da Amazônia Legal na época, diz que "agora a SPU tem todos os elementos técnicos para recolocar essa portaria".

Mas, enquanto isso, o agronegócio avança. “A soja já está lá pertinho”, avisa o líder Jossiney. As lavouras ainda não invadiram o território retireiro, mas os criadores já sentem seu impacto: “Elas [plantações de soja] estão sugando muita água do rio. As cheias do Araguaia diminuíram e o varjão está sofrendo.”

Sem acesso ao rio, os retireiros foram obrigados a abrir cacimbas, covas escavadas no chão para reter água para o gado beber. Não é exatamente uma boa solução, pois as cacimbas se tornam um lamaçal podendo até matar os animais atolados. “Eu vivo é do gado, eu como é do gado”, lamenta Jossiney, lembrando que esta é a única fonte de renda dos retireiros. O que leva, segundo ele, à mais triste das soluções: “Muitos estão pegando empréstimo em banco" e, assim, as áreas comuns acabam ainda mais cercadas e reduzidas.

Ribeirinhos de Montanha e Mangabal

Comunidade se uniu a indígenas e, juntos, promovem a autodemarcação do seu território, enfrentando madeireiros, garimpeiros, grileiros e palmiteiros

A notícia chegou em garrafas de vidro jogadas no rio de um avião pequeno. A comunidade lembra bem do momento em que se descobriu, pela mensagem que caiu do céu, a grande luta pela frente. “Era uma carta proibitória: proibia caçar, pescar, fazer roça. Não tinha nenhuma atividade da nossa sobrevivência aqui que alguém pudesse fazer”, conta Maria Odileia Silva, 52 anos, todos vividos na mesma comunidade nas margens do rio Tapajós, oeste do Pará.

A carta vinha da Indussolo, empresa madeireira que afirmava ser dona de mais de 1 milhão de hectares, inclusive a terra das famílias ribeirinhas. A Indussolo chegou por ali na mesma época da rodovia Transamazônica, nos anos 1970. Naquela década, pessoas expulsas pela criação do Parque Nacional da Amazônia – uma unidade de conservação que também não permite a caça, a pesca e a roça – se juntaram aos que já moravam em Montanha e Mangabal.

De lá pra cá, os ribeirinhos têm lidado com diversos tipos de invasões, que costumam ser reunidas nas ações de figuras conhecidas na região: grileiros, que se dizem donos da terra; madeireiros, que retiram o jatobá e o ipê; garimpeiros, que se dizem donos de outra área; e palmiteiros, que devastam os açaizais não deixandonada pra quem se alimenta deles.

Mas nem sempre foi assim. “Era comum a gente viver em total harmonia com a natureza e sem problema nenhum com questão territorial”, explica Ageu Lobo, 36,morador de Montanha e Mangabal.

O rio Tapajós é considerado a despensa por essas famílias. É dele que retiram os peixes que são base de toda sua alimentação. Na terra, plantam a mandioca – a farinha não pode faltar –, frutas e leguminosas que alimentam as famílias e os vizinhos. Ninguém fica sem comer.“E lá na rua [na cidade] não, se você não tiver o dinheiro pra comprar, não tem como”, esclarece Maria Odileia.

Reconhecimento e autodemarcação

Em 2006, a comunidade foi oficialmente reconhecida por decisão da Justiça Federal, fruto de ação movida pelo Ministério Público, e, em 2013, foi criado o Projeto de Assentamento Agroextrativista de Montanha e Mangabal, pelo Incra. A responsabilidade, porém, ficou só no papel. “O Incra, ao deixar de atuar como deveria, está executando na prática uma política favorável a quem é contra o processo de reforma agrária aqui”, conta Edson Nunes, perito federal agrário, na região há 12 anos. “Esse não é um caso específico de Mangabal. Projetos de assentamento mais antigos estão todos entregues à grilagem, a fazendeiros e pecuaristas. É frustrante”.

A comunidade também sofre com a ausência de políticas públicas para educação e saúde. As omissões do Incra e da prefeitura de Itaituba já foram alvo de diversas denúncias da comunidade e ações do Ministério Público Federal. “A Regional do Incra no Oeste do Pará tem limitações orçamentárias e de pessoal, o que impede o atendimento de todas as demandas simultaneamente”, justifica o órgão (confira a resposta na íntegra ).

Atualmente, o superintendente da regional é Mário da Silva Costa, irmão do deputado federal Wladimir Costa (SD-PA), que ganhou os noticiários ao fazer uma tatuagem temporária em homenagem a Michel Temer e que teve seu mandato cassado em dezembro pelo Tribunal Eleitoral do Pará por irregularidades cometidas nas eleições de 2014.

Se, por um lado, o governo federal não atende direitos essenciais da comunidade, por outro tem representado uma ameaça para esses ribeirinhos e outros povos da região. O complexo hidrelétrico planejado para o Tapajós, suspenso atualmente, se alia aos planos de fortalecimento da região Oeste do Pará como rota de escoamento da soja – o chamado Arco Norte.

Com o rio e terras alagados pelas barragens, somem os pedrais e sinuosidades características do curso d’água, considerados os berçários de peixes pelos povos locais. Em contrapartida, fica mais fácil o tráfego de balsas e barcos grandes. A barragem de Jatobá, se construída, afeta todo o ecossistema do qual dependem as famílias.

Frente a esse “inimigo comum”, ribeirinhos e indígenas formaram uma aliança estratégica. Começou quando o povo Munduruku se viu ameaçado pelo mesmo projeto – parte de suas terras seria alagada pela barragem de São Luiz do Tapajós. Em 2014, eles decidiram fazer a autodemarcação do território e receberam o apoio dos ribeirinhos de Montanha e Mangabal, que ajudaram a fazer as picadas na mata.

Foi a inspiração para que, em setembro de 2017, a comunidade pedisse ajuda de organizações, apoiadores autônomos, indígenas Munduruku e Sateré Mauê para começar a autodemarcação de seu território. Foram 6 dias, 18 km de trabalho e 43 pessoas. A atividade foi acompanhada de ameaças de morte e intimidações por parte dos invasores. Com os índios, os beiradeiros também construíram um protocolo de consulta, que deve ser seguido sempre que houver um empreendimento que afete a vida da comunidade.

No meio do furacão, a tensão continua. Em novembro, deu-se início a nova etapa da autodemarcação. Junto dos ribeirinhos de Montanha e Mangabal, estavam indígenas da bacia do rio. Foram Kaxuyana, Tiriyó, Xeréu, WaiWai, Txikyana, Munduruku e Apiaká. Os povos que vivem dos rios da Amazônia seguem na luta pela proteção da floresta da qual também dependem.

Caiçaras de Paraty

Habitantes das praias mais preservadas do litoral carioca, comunidades são proibidas de pescar e expulsas por condomínios de alto padrão

Todo o tormento começou com as estradas. Primeiro a Cunha-Paraty (RJ), aberta em 1955, que inaugurou a conexão do território caiçara com o resto do país, trazendo com ela os primeiros turistas e, também, os primeiros interessados em adquirir aquelas terras, de olho no futuro. Quando a Rio-Santos rasgou a região em 1974, estava selado o destino dos caiçaras de Paraty – uma luta infinda para permanecer no lugar de seus antepassados, combatendo dois inimigos ao mesmo tempo: a especulação imobiliária e a preservação ambiental ditada pelo Estado.

O primeiro avanço foi a compra de terrenos de caiçaras para a construção de casas de veraneio e condomínios de luxo e, de forma mais violenta, mediante a ação de grileiros. Destes, o mais conhecido foi Gibrail Tannus Notari, que empreendeu uma investida sobre as comunidades tradicionais que já dura seis décadas, herdada por seu filho.A família é acusada de grilagem no Atlas Fundiário do Rio de Janeiro de 1991 e há uma ação movida pelo estado no Superior Tribunal Federal contra os títulos que os Tannus Notari apresentam como seus.

Expulsos, o destino dos caiçaras foi o mesmo: ir morar nas favelas de Paraty e, muitas vezes, trabalhar como caseiros ou domésticas nas mesmas casas que se construíram sobre suas antigas roças. “Fizeram de tudo para expulsar as comunidades”, diz Marcela Cananéa, liderança da praia do Sono.

Foi para conter a especulação imobiliária que os órgãos ambientais criaram três Unidades de Conservação na região: o Parque Nacional da Serra da Bocaina, em 1971, a Área de Proteção Ambiental do Cairuçu, em 1983, e a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, em 1992 – as duas últimas se sobrepõem. Dessas, só a APA não é de proteção integral, ou seja, permite o uso da terra e do mar pelos caiçaras – existe, inclusive, uma parceria ali, com os caiçaras participando do novo plano de manejo da unidade. Quanto às outras duas, se por um lado ajudaram a frear o avanço dos condomínios, por outro impuseram numerosas regras que comprometem o modo de vida caiçara. Todas são geridas pelo ICMBio “Essas unidades não me reconhecem como parte do ambiente”, diz Robson Possidonio, liderança de Trindade. “Não posso fazer roça, não posso retirar madeira para a canoa, não posso pescar.”

Se ao menos a preservação oficial do meio ambiente freasse de fato a especulação, já seria alguma coisa. Mas, diz Robson, não é bem isso que ocorre: “O empresário começa a construir sua casa, vem o Instituto Nacional do Meio Ambiente, embarga, e, na semana seguinte, por influência política, a construção já está desembargada. Hoje a península toda é casa de magnata”. A península à qual ele se refere é a ponta da Juatinga, onde fica a Reserva Ecológica homônima e o trecho mais preservado da região, em que, não por coincidência, está a maior parte das últimas comunidades praieiras tradicionais, que seguem com a cultura caiçara.

Não bastassem as restrições à pesca e às roças, as famílias se veem impactadas pela presença das casas de veraneio. Na Praia Grande da Cajaíba, a vítima mais séria da grilagem pelos Tannus Notari – que, apesar de responder por crimes ambientais, pretendem construir um resort no local –, o número de famílias caiçaras foi reduzido de 24 para duas em menos de duas décadas.

Na praia do Sono, o conflito é com o vizinho Condomínio Laranjeiras, que fechou o acesso das 40 famílias à comunidade onde vivem. “Você só chega no Sono por trilha ou de barco”, explica Marcela. O problema é que a trilha leva duas horas para ser percorrida e o cais de onde saem os barcos fica dentro do condomínio . Para acessá-lo, os caiçaras devem pegar uma kombi, já que não podem transitar a pé lá dentro.

União

O principal instrumento de luta dos caiçaras surgiu em 2007, com a criação do Fórum de Comunidades Tradicionais Angra–Parati–Ubatuba. Um marco também porque, pela primeira vez, os caiçaras se uniam aos indígenas e aos quilombolas em um esforço coletivo pela garantia do território. “Um está sensibilizado com o outro”, afirma Robson Possidonio. “Se os indígenas têm algum problema, caiçaras e quilombolas vão lá ajudar.”

O fórum foi o primeiro passo de um movimento interestadual que, em 2014, tornou-se nacional, com o surgimento da Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras, que reúne representantes do litoral do Paraná ao do Rio de Janeiro.“O movimento ainda é bebê”, diz Marcela, mas aponta na direção de algumas soluções viáveis.

Uma delas é o turismo de base comunitária, que já vem sendo implantado em algumas comunidades, junto a iniciativas de agroecologia e educação diferenciada. Outra é a criação de uma Reserva Extrativista Marinha que permita regularizar a pesca feita pelos caiçaras –em tese proibida pelas Unidades de Conservação de Proteção Integral– e, ao mesmo tempo, garantir o acesso aos cardumes, cada vez mais raros pela concorrência com a pesca industrial. “É uma pesca desleal”, diz Robson. “Quando a pescaria chega para a gente, os barcos já estão aqui.” Caiçara, palavra que deriva do tupi-guarani, significa “cerca feita de ramos”: uma referência ao cercado das roças ou à pesca de cerco que fazem no mar, perto das encostas.

Procurados pela reportagem, a família Tannus Notari, os responsáveis pelo Condomínio Laranjeiras e o ICMBio não responderam até o fechamento desta edição.


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