28/03/2024 - Edição 540

Brasil

A trágica história do reitor cuja morte pôs em xeque os excessos da PF e da Justiça

Publicado em 11/01/2018 12:00 -

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Quando mergulhou no vão central do quinto andar do Beira-Mar Shopping, em 2 de outubro, em Florianópolis, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, 60 anos, deixou um único recado escrito à mão: “Minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”. O texto era guardado pelo professor na jaqueta de couro que ele vestia sobre uma camiseta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da qual era reitor.

Desde sua prisão pela Polícia Federal na Operação Ouvidos Moucos, em 14 de setembro do ano passado, Cancellier era só tristeza. A prisão, que durou apenas um dia, veio acompanhada da proibição judicial de acessar o campus da UFSC. O “reitor exilado”, como se autointitulou em artigo publicado no jornal O Globo quatro dias antes de seu suicídio, voltou à Reitoria dentro de um caixão, recebido sob aplausos por uma multidão.

O barulho causado pela morte de Cancellier atravessou os corredores da sexta maior universidade do país, uma comunidade de 50 mil pessoas. Entidades das mais diversas áreas e políticos de diferentes partidos se uniram em críticas ao que chamaram de “excesso”, “autoritarismo” e “arbitrariedade” do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. O discurso também foi utilizado politicamente por parlamentares enrolados até o pescoço na Operação Lava Jato, que tentaram se comparar ao reitor no papel de vítima.

A responsável pelo pedido de prisão, a delegada Erika Mialik Marena, virou alvo de um procedimento da própria PF que apura “abusos e excessos cometidos na Operação Ouvidos Moucos”, após o irmão de Cancellier, Acioli Antônio de Olivo, e o advogado Hélio Rubens Brasil entregarem representação ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Torquato Jardim, em 31 de novembro. A delegada que batizou a Lava Jato e que comandava o setor de repressão à corrupção e crimes financeiros em Santa Catarina chegou a ser promovida, no dia 1º de dezembro, para ocupar a superintendência da PF em Sergipe, afastando-se de vez do caso ainda na fase de inquérito. Mas a nomeação foi suspensa pelo novo diretor-geral da Polícia Federal, Fernando Segovia.

O mergulho no vão do principal shopping da capital catarinense pôs fim à vida de um acadêmico de trajetória acidentada e meteórica. Cau, como era chamado pelos amigos, chegou a Florianópolis aos 19 anos, em 1977, para cursar Direito na UFSC. Natural de Tubarão, no sul do estado, filho de um lavador de carvão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e de uma costureira, Cancellier morou na casa de amigos para driblar as dificuldades financeiras na capital.

Ele atuou no jornalismo por 15 anos, passando pela redação do jornal O Estado, principal diário de Santa Catarina. A vida profissional e a militância política, iniciada no Partido Comunista Brasileiro (PCB), levaram o jovem estudante a abandonar o curso de Direito. Ele só concluiu a graduação em 1998, aos 40 anos de idade.

Ainda no fim da ditadura militar, as aulas de Estudos de Programas Brasileiros (EPB) aproximaram Cancellier do então estudante de Ciências Sociais Carlos Damião. “Essa disciplina tinha o objetivo de doutrinar, mas acabou se transformando em um espaço de discussão crítica na universidade”, lembra Damião, jornalista, escritor, poeta e um dos amigos mais próximos do reitor. Foi ele que fez a última entrevista com o reitor, dias antes do suicídio.

Os dois viajaram para o congresso de reunificação da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1979, em Salvador, que pôs fim aos 13 anos de ilegalidade da entidade. “Fizemos a viagem toda praticamente sem dinheiro. Levei uns livros de poesia para conseguir uma grana para comer, mas nosso maior medo era a repressão. Por sorte, na batida só levaram um exemplar”, lembra Damião.

Juntos, participaram de episódios como a “Novembrada” – nome pelo qual ficou conhecida a grande manifestação popular contra a ditadura feita no centro de Florianópolis em 30 de novembro de 1979, durante a visita do general João Baptista Figueiredo. Também fizeram campanha pela anistia, pelas “diretas já”, pela eleiçã ode Tancredo Neves e pela Constituinte. Cancellier entrou na mira do serviço secreto catarinense e do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 1983. No relatório divulgado pela Comissão Nacional da Verdade sobre a visita do líder comunista Luiz Carlos Prestes à UFSC, ele é identificado como “PCB-Jornalista”.

Damião foi editor de Cancellier no Estado.“Era um excelente repórter de política, respeitado por todos os partidos. Cobria a Assembleia Legisativa”, lembra. Foi nessa época que ele conheceu a também jornalista Cristiana Vieira, dez anos mais nova, com quem viveu de 1986 a 2001. Da união nasceu Mikhail Vieira Cancellier de Olivo, hoje com 32 anos, professor-adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC. Nunca mais se casou.

Levava uma vida simples em um apartamento no Córrego Grande, ao lado da universidade. Em 1988, deixou a redação para trabalhar como assessor de imprensa da campanha vitoriosa de Nelson Wedekin (PMDB-SC) ao Senado. Nesse período, dividia a vida entre Brasília e Florianópolis. Na sequência, trabalhou nos governos catarinenses dos peemedebistas Pedro Ivo Campos e Casildo Maldaner.

O caminho até a reitoria

Depois de passar pelo jornalismo e pela política, Cancellier retornou aos bancos da faculdade de Direito na UFSC em 1996. Em rápida trajetória, emendou mestrado e doutorado e ingressou na docência. Tornou-se especialista em Direito administrativo e dedicou boa parte dos estudos a analisar influências jurídicas na literatura. Fez paralelos com Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre.

Costumava almoçar no restaurante dos servidores e frequentar o Bar do Silvinho, reduto da comunidade universitária. O cigarro, que havia largado depois de diversas tentativas, era ensejo para muitas aproximações com os alunos, professores e servidores. Chefiou o Departamento de Direito, a Fundação José Arthur Boiteux (Funjab) e o Centro de Ciências Jurídicas (CCJ). Antes de se candidatar ao cargo de reitor, ocupou assento no Conselho de Universitário por duas gestões. “Foi no retorno dele à universidade que nos aproximamos mais. Eu já tinha trabalhado um curto período de tempo com ele em O Estado e participado de algumas campanhas políticas ao seu lado”, conta Áureo de Moraes, professor do curso de Jornalismo da UFSC que virou chefe de gabinete de Cancellier. O professor foi responsável por apresentar o então candidato, pouco conhecido fora da faculdade de Direito, às demais áreas da universidade.

Demonstrando habilidade política, Cancellier se elegeu reitor após conseguir dialogar com setores à esquerda e à direita no campus. “A oposição à antiga gestão era uma situação confortável para ele”, conta Áureo. Mas na outra ponta Cau tinha apoio de setores mais à direita, como a Maçonaria e o Movimento Brasil Livre (MBL). As amizades históricas dos tempos de militância e o perfil conciliador garantiram a vitória do professor em uma disputa apertada contra o conservador Edson De Pieri.

O reitor recebia grupos de estudantes e de servidores em protesto no gabinete e em seu breve mandato sempre demonstrou abertura ao diálogo. Não se dizia partidário, mas mantinha fortes ligações com o PMDB, amizades iniciadas ainda nos tempos do velho MDB.

A prisão decretada pela juíza federal Janaína Cassol durou um dia. Acabou revogada pela juíza substituta Marjôrie Cristina Freiberger. Com uniforme de presidiário, pés acorrentados, mãos algemadas, foi submetido nu à revista íntima. Ficou em cela da ala de segurança máxima da Penitenciária de Florianópolis. Cardiopata, passou mal e chegou a ser atendido por um médico no cárcere. Em sua última entrevista, concedida a Carlos Damião em 20 de setembro, o “reitor exilado” revelou se sentir humilhado: “Ele tinha voltado a fumar e estava perplexo com o que se passou na prisão. Disse que a revista íntima foi vexatória. Ficou mesmo amedrontado”, relembra Damião. Impedido de entrar no campus por força judicial, afirmou que não sentia mais vontade de sair de casa.

Guerra com a corregedoria

O enredo da Ouvidos Moucos remonta a dezembro de 2016 e revela uma queda de braço entre a Reitoria e o corregedor-geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado.

Foi naquele mês que Cancellier afirmou ter tido conhecimento das denúncias de desvios de bolsas no sistema EaD, implantado em 2006, e que recebeu até este ano um total de R$ 80 milhões em repasses federais. As denúncias investigadas pelo corregedor vão da devolução de valores das bolsas de tutores do Ensino a Distância para coordenadores e chefes de departamento ao remanejamento de bolsas para remunerar familiares dos envolvidos. Também há suspeitas de superfaturamento na contratação de serviços. No entanto, nenhuma prova apontava para benefício direto de Cau, segundo o inquérito. No documento entregue pela família de Cancellier ao ministro Torquato Jardim, Rodolfo Hickel é apontado como “subordinado e oposicionista político” do ex-reitor.

O desentendimento entre reitor e corregedor já era de conhecimento do círculo mais próximo de Cau, na reitoria, mas só veio à tona depois que a troca de ofícios entre os dois ficou conhecida por meio do inquérito policial. Hickel negou que Cancellier avocasse para si o processo administrativo, defendendo sua prisão e afastamento. Sustentou, em depoimento à superintendência da CGU, que havia interesses pessoais na tomada do procedimento. “Fora o interesse pessoal do reitor e seus protegidos, não há o preenchimento dos requisitos necessários para o pleito”, escreveu, defendendo que era sua a competência para conduzir aquele processo. O advogado Hélio Brasil, que defendeu Cancellier no inquérito da PF, diz que os argumentos do corregedor eram fracos para sustentar a prisão temporária. No entanto, a delegada alegou que a detenção era necessária para evitar interferência na coleta de provas.

Mas a disputa interna na UFSC parece não ter sido superada nem mesmo com a morte de Cau. Depois de eleger, por decisão unânime, a vice-reitora Alacoque Erdmann para ocupar a reitoria até o fim da gestão, em 2020, o Colegiado da Universidade voltou atrás quando a reitora em exercício desautorizou o afastamento de Hickel assinado pelo chefe de gabinete, Áureo de Moraes. Indignados com a manutenção do algoz de Cancellier no órgão correcional da universidade, o Conselho Universitário elegeu novo reitor pro tempore, Ubaldo César Balthazar, e chamou eleições para abril de 2018.

Hickel pediu afastamento da Corregedoria com uma licença médica e a vice-reitora Alacoque se afastou, também por indicação médica. O chefe de gabinete Áureo de Moraes, que havia pedido exoneração depois que Alacoque cancelou seu ato retornou ao cargo e, agora, também responde pelo órgão correcional. Áureo, no entanto, não tem poderes para conduzir nenhuma investigação administrativa de desvio de bolsas nem a denúncia contra o corregedor. Ambas tramitam desde o afastamento de Hickel na Superintendência da CGU em Brasília.

Doutor em Direito pela própria UFSC, Cancellier defendeu em ofícios e no seu depoimento à CGU a legalidade de seus atos. Apresentou jurisprudências para justificar suas decisões, mas os argumentos não foram suficientes para impedir que a Polícia Federal decretasse sete prisões e cinco conduções coercitivas em 14 de setembro.

Em tese, a prisão de Cancellier teve como mote a suspeita de tentativa de obstrução da Corregedoria da UFSC. “Um reitor é surpreendido por uma denúncia e pede para ter acesso ao processo. O corregedor passa parcialmente o caso e isso implica denúncias contra o próprio reitor, mas ele sequer é chamado na Corregedoria. Acho que, se não fosse conduzido dessa forma, não seria tão traumático”, defende o chefe de gabinete, que falou pela última vez com o reitor um dia antes da prisão. Naquele dia, despacharam o pedido de afastamento do corregedor. Áureo diz que as consequências da investigação são frutos de um processo “atabalhoado”. “Me surpreende que a polícia e a Justiça tenham aceitado o processo da forma em que transcorreu. O reitor estava tomando providências sobre as denúncias”, disse.

Lava Jato

A enxurrada de repercussões sobre a morte e as associações do episódio com a sua prisão 12 dias antes também abriu espaço para aquilo que o juiz federal Roberto Carvalho Veloso classificou como “uso político da tragédia”. Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), há 22 anos na magistratura, Carvalho diz que teve conhecimento do caso e que se “solidariza com a família”, mas que o fato não pode ser utilizado para desqualificar o trabalho da PF ou da Justiça. “Temos que confiar nas decisões do nosso Judiciário”, diz.

Segundo o magistrado, muitas das manifestações têm como pano de fundo atingir a Lava Jato. “São duas investigações distintas, que não se comparam. No caso do reitor, o próprio ato da Justiça foi revisto no dia seguinte com a revogação da prisão no mesmo processo”, ressalta. Carvalho diz que a Justiça tem se aperfeiçoado ao longo dos últimos anos e cita instrumentos como a delação premiada e os acordos de leniência como parte desses avanços, além da independência dos juízes em suas decisões.

Já o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Lédio Rosa de Andrade defende mudança de postura do Judiciário brasileiro. “A prisão tem que sera última alternativa. Prisão de alguém que não é réu beira situação de estado de exceção”.

“A morte do meu irmão causou um trauma profundo que jamais será esquecido. Toda família foi abalada e terá dificuldades em seguir em frente nas suas vidas. O dano é irreparável. Não há nada que possa trazê-lo de volta. O máximo que esperamos é que outros cidadãos honrados não tenham que tirar a própria vida diante de circunstâncias e injustiças como essa”, lamenta o jornalista Julio Cancellier, irmão do ex-reitor.


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