29/03/2024 - Edição 540

Judiciário

O ano que passou afrontou liberdade de expressão;

Publicado em 02/01/2018 12:00 -

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A liberdade (…) é inseparável dos seus encargos. Dela não é digno o povo, que não saiba sofrer os males naturais de sua situação, e espere de outros recursos, que não a liberdade mesma, o meio de vencê-los.”
(Rui Barbosa)

Estamos inegavelmente vivendo tempos difíceis. 2017 corrobora essa assertiva. Não estamos a falar somente de questões políticas, de representatividade democrática ou de questões econômicas, mas, sim, de alguns conceitos recuperados de tempos remotos e sombrios. O Brasil, dada a diversidade que se impõe à sociedade, teve momentos de pouca tolerância com alguns assuntos, compreendendo-os mal, ao arrepio de valores que se imaginavam seguros e consolidados.

Um dos episódios que mais marcou a trajetória de 2017 foi a grita de muita gente em razão da exibição, como arte, do corpo humano desnudo em museus pelo Brasil, bem como a exposição de quadros artísticos em que era exibida, sem folhas de parreira, a genitália humana. Que a sociedade confunda a nudez de um corpo com a sexualidade que pode emanar disso, “vá lá”, faz parte de uma cultura muito enraizada no cristianismo e na condenação da genitália como elemento apenas pudico. Mas impedir a exibição do nu como uma expressão de arte, em local fechado e apropriado, em sua maior parte em Museus, como aconteceu em 2017, é perigosamente cruzar um limite cuja volta é longa, tortuosa e, por vezes, agressiva.

O fato, por conta desses episódios que foram disseminados numa boa parte do território brasileiro, sob o argumento da preservação de valores da família e de valores individuais, acabou por refletir uma sociedade brasileira um tanto distante da liberdade de expressão. Nenhum desses valores se sobrepõe à ideia de liberdade, incluindo a de expressão, natural de uma sociedade efetivamente democrática. Nossa sociedade não pode valorizar as relações domésticas mais do que as relações que devemos ter com as leis, com o Estado, com as normas, com a democracia. Esse é um dado cultural, acontecido em 2017, que precisa ser superado.

Também 2017 ficou marcado pela confirmação de o que atualmente mais atormenta a vida das pessoas públicas, notadamente os políticos: a publicação de reportagens. Em tempos passados mais próximos, a opinião era o que incomodava. Muito disso por conta do trabalho jornalístico exemplar que todos os veículos de comunicação vêm fazendo das operações que combatem a corrupção, a exemplo da “lava jato”. Para condenar os fatos revelados pela imprensa oriundos dessas investigações, muitos lançam o argumento de que os vazamentos das informações são feitos de forma seletiva e, portanto, há de se punir o difusor da informação. Como bem se sabe, não cabe punir a imprensa pelo exercício de legal e legítimo que realiza.

Na atividade jornalística, a busca por questões e assuntos de interesse público é o que pauta a informação, que deixa de ser do jornalista e do jornalismo, para, automaticamente, se incluir na esfera jurídica e de interesse da sociedade (art. 5º, XIV, CF). Ou seja, de posse dessas informações de interesse, cabe aos veículos publicá-las, independentemente da pessoa envolvida e do momento político da publicação. A tentativa em 2017, ainda que por diversas vezes buscada, não logrou êxito. Torçamos que assim continue em 2018.

Outrossim, ainda em 2017 assistimos um aumento significativo de ações de homens da república contra veículos de comunicação, discutindo, em sua grande parte, detalhes secundários de um universo de conteúdo revelador e bombástico a respeito de seus “afazeres” públicos, no intuito de convencer bancadas e eleitores de que estão “cobrando na justiça explicações contra essas inverdades” publicadas. Valeram-se do fato de que a maior parte do material investigativo que compõe as operações policiais e do Ministério Público está em segredo de justiça, exigindo, assim, que o veículo publicador da informação comprove determinado dado mediante provas documentais, sob pena de estar infirmada a notícia.

Há inúmeros casos judicializados exatamente nesse sentido, que, em razão de ainda não estarem definitivamente julgados, tomaremos a cautela de não mencioná-los. Em 2017 foram muitas ações promovidas por políticos graúdos e de grandes partidos, apanhados em investigações envolvendo recebimento de dinheiro e tantas outras mazelas.  

Essa discussão ainda caminhará pelo ano de 2018, especialmente frente às eleições que virão e o avanço das investigações contra a corrupção. Esperamos que valores como a liberdade de expressão e, por consequência, a atividade jornalística, continuem sendo prestigiados pelas nossas Cortes Regionais e Superiores, que enfrentarão grande quantidade de ações promovidas por políticos buscando descredenciar informações de interesse da sociedade.

Outro ponto que marcou o ano de 2017 e que certamente continuará a ocupar, de forma preocupada, veículos de informação no país é a mais recente forma de censura que se está por aqui a praticar. Falamos das solicitações de retirada de conteúdo de informação da internet. A facilidade da plataforma do meio digital não pode constituir passaporte para o impedimento de notícias e para a retirada de conteúdo já publicado, bem como igualmente não pode tornar-se uma espécie de coautoria de obra jornalística, nas hipóteses em que o Poder Judiciário determina o recorte de parte da informação ou o acréscimo de outra, fazendo as vezes de um editor de redação. Tudo isso está no conceito de tristes memórias passadas, em que oficiais do governo atuavam em redações de jornais e revistas, impugnando imediatamente o conteúdo informativo que se buscava ali publicar.

Essa prática vem sendo utilizada pela Justiça – especialmente em primeiro grau – como se isso não constituísse amarra, peia, efetivamente censura à atividade da imprensa. Como é sabido, a informação na mídia digital, radiofônica ou impressa continua sendo atividade jornalística, em que se exerce liberdade de expressão.

A título de ilustração, mas absolutamente pertinente pela proximidade de um novo período eleitoral, fazemos referência ao estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas acerca das Eleições de 2014, em que se concluiu haver deferimento do pedido de retirada de conteúdo em 66% dos casos em sede de liminar, 62% em Primeira Instância e 58% em Grau Recursal. Esses dados evidenciam medidas restritivas à liberdade de expressão do pensamento. E aqui convém reiterar a relevância reforçada que deveria existir da liberdade de expressão no período eleitoral, quando o debate de ideias deve acontecer do modo mais amplo possível.

Mas, nesse ponto, os tribunais regionais e as cortes superiores têm restabelecido a ordem e o respeito à liberdade de expressão, impedindo a manutenção de atos censórios, há muito banidos no nosso ordenamento jurídico. É sempre bom fazer a ressalva que sempre que houve por parte da imprensa o cometimento de violação a direito de terceiros, a condenação deve se impor igualmente, nas modalidades de reparação pecuniária, direito de resposta e, em alguns casos, de repressão penal, mas nunca, em nosso ver, com o cerceamento da palavra e o banimento do que foi publicado.  

Em 2017 também houve grande preocupação às chamadas fake news, as notícias mentirosas propositadamente lançadas à sociedade para atingir algo, alguém ou criar um ambiente de incerteza geral. Evidentemente que isso é condenável e deve ser objeto de repreensão do Estado, tratando-se de uma preocupação global. Mas o que nos preocupa, diante de tantas erronias no trato da liberdade de expressão, é que por conta de determinada doença, utilizemos como remédio o banimento e a perseguição de informações de origem conhecida e de credibilidade, simplesmente por não agradar.

A preocupação com essas notícias mentirosas e, por conseguinte, a abertura de uma janela de pretexto para cerceamento de notícias que simplesmente desagradam, ganha maior importância em 2018, ano eleitoral em que as campanhas políticas e as informações serão desenvolvidas, na sua maior parte, pela internet, ambiente aparentemente possível para a difusão de informação sem “autoria”. Aparentemente, sim, pois é absolutamente enganosa a ideia de anonimato na internet, pois seus subscritores se não imediatamente identificados, certamente são identificáveis.

O movimento de repressão que se buscará não pode, como visto, servir de pretexto para banir noticiário contrário a alguns interesses. Reside aí o cuidado grande de não aplicarmos remédio que, ao eliminar a doença, acaba também com o organismo.

Sempre defendemos que contra as ameaças da liberdade de expressão, há de se garantir mais liberdade de expressão. Ou seja, contra as notícias falsas, mais informação e liberdade, a fim de que uma quantidade grande de notícias com credibilidade torne absolutamente evidente aquilo que é falso.

E nesse sentido, para todas as preocupações aqui apontadas em 2017, mais liberdade de expressão em 2018, valendo seguirmos as orientações postuladas há muito por um dos nossos grandes tribunos: A liberdade (…) é inseparável dos seus encargos. Dela não é digno o povo, que não saiba sofrer os males naturais de sua situação, e espere de outros recursos, que não a liberdade mesma, o meio de vencê-los (Rui Barbosa).

Um grande 2018 a todos, de muita inspiração e sabedoria.

Alexandre Fidalgo – Sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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