19/04/2024 - Edição 540

True Colors

O preconceito no olhar

Publicado em 22/11/2017 12:00 - Luiza Sansão – Outras Palavras

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“Estou aqui pela resistência, pela luta, e não pelo carnaval que se tornou a parada”, diz o ator de teatro e estudante de Psicologia Cícero Reis, de 46 anos, durante a 22ª Parada do Orgulho LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersex), que lotou a orla de Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, na tarde do último dia 19. Nem o tempo nublado, com a chuva fina que começou pouco depois das 15h, dispersou a multidão.

Gay, negro e nordestino, ele conta que sente o preconceito em dose tripla no cotidiano. “Sofro vários preconceitos enraizados. Mas nunca deixei que o preconceito me diminuísse. Nós, minorias, temos que resistir diariamente e nos fortalecer”. Indagado sobre a maneira com que o preconceito se manifesta mais frequentemente em seu dia a dia, Cícero não hesita: “em um olhar, você percebe. E machuca”.

Ele e o marido usavam máscaras de Batman e Homem Aranha, em meio a uma multidão de mais de 800 mil pessoas que dançava ao som dos shows de Daniela Mercury, Valesca Popozuda, Pabllo Vittar e Preta Gil, entre outras atrações. Uma grande bandeira arco-íris era sacudida ao longo da Avenida Atlântica, onde trios elétricos levavam, além de artistas, parlamentares envolvidos com a causa LGBTI, como David Miranda (PSOL), primeiro vereador assumidamente gay da história do Rio.

Ao discursarem, ativistas bradaram pela saída do governador Pezão e do presidente Temer, e criticaram, sobretudo, o prefeito da cidade, Marcelo Crivella. Ao defenderem o Estado laico, afirmaram que o prefeito, bispo da Igreja Universal, não separa política de religião. “Resistindo à LGBTIfobia, fundamentalismo, todas as formas de opressão e em defesa do Rio” foi o tema da parada, onde “Fora Crivella” estampou faixas e a oposição ao evangélico foi forte.

“Infelizmente, o prefeito está tirando muitos direitos nossos e estamos aqui pra reivindicar direitos que não são só dos heteros, mas de todos nós”, disse o nutricionista e lutador de kickboxing Ludvick Rego, 28 anos. Ele vestia sunga, asas azuis e um arranjo sobre a cabeça, tinha o corpo purpurinado e equilibrava-se perfeitamente em um salto de 17 centímetros, mas contou que só sai “montado” no carnaval e nas paradas LGBTI, que já frequenta há seis anos, “pra chamar atenção para a causa”. Gay assumido há longa data, afirma não sofrer preconceito nos meios que frequenta. “Na minha academia de luta, todos sabem e me respeitam muito. Vivemos de forma harmoniosa”.

A transsexual Bruna Mastroiani, 45, desfilava à frente de um trio elétrico, em um macacão justo, vermelho e decotado, ostentando simpatia. “Hoje é um dia especial pra todos nós, porque é um dia de lutar pelos nossos direitos, pela igualdade, parar com esse preconceito. Somos cidadãos brasileiros, pagamos impostos como todo mundo, temos direitos”, disse.

Entre tantas fantasias e acessórios brilhantes, também havia muita gente discreta, acompanhando o espetáculo sem tanta agitação, mas muito envolvimento com a causa. É o caso da escritora Ana Luiza Libanio, 43, que participou do evento com a esposa, Letícia, e a filha, Hannah. “A gente precisa lutar pelo direito de viver. Sou casada e todos os dias vivemos a experiência de pessoas nos olharem como se fôssemos estranhas, sujeitos que não deveriam estar onde estão, sobretudo se estivermos demonstrando carinho, nada demais, mas segurando a mão uma da outra, por exemplo. São olhares muito estranhos e isso é todo dia”, contou.

“Isso machuca, porque é perceber que a nossa vida não tem valor para o outro. Machuca, porque somos seres humanos, temos amor, inclusive por aquele que nos olha com olhar reprovador. Eu vivo, tenho um coração que bate dentro de mim, tenho sangue correndo nas minhas veias, assim como essas pessoas que me olham, então eu merecemos o mesmo que elas, não somos diferentes”, disse a escritora, emocionada.

“Quero ser chamada pelo meu nome social”

A causa que levou ao evento a transexual Thayla Werneck, 25, mobiliza especialmente a população trans: o direito a ser reconhecida em todos os meios pelo nome social. “Onde eu trabalho, sou chamada pelo meu nome da certidão de nascimento, Rodrigo. Quero que me chamem pelo meu nome, Thayla, que é como me sinto bem. Por isso estou aqui hoje. Quero trocar o nome em todos os documentos”, contou.

Além da transfobia, ela ainda sofre racismo. “São dois preconceitos, por ser negra e por ser trans, então carrego muitas coisas na costas, mas vou levando”. As manifestações de preconceito cotidianas são, principalmente, “olhares, risadas e comentários” maldosos, segundo Thayla. Certa vez, um grupo de homens transcendeu a violência verbal. “Já apanhei na rua. Uns caras vieram de palhaçada, me levaram pra um canto e me bateram”.

Há dois anos e seis meses, ela trabalha como cozinheira no restaurante universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Lá, me acolheram muito bem, me respeitam muito. Só a questão do nome é que me incomoda”, explicou. É que, embora a chamem pelo nome social no dia a dia, nos documentos trabalhistas ainda consta o de registro, um drama enfrentado por muitos transexuais.

“Quando entrei, disse que meu nome era Rodrigo, entrei sem maquiagem, com calça e blusa normais”, recordou. Mas ter que se passar por homem para conseguir o emprego foi difícil para ela. “Doeu muito, porque eu me fantasiei de outra pessoa. Isso não é legal, eu queria entrar como eu sou hoje em dia”.

Entretanto, ao falar sobre como se sente acolhida no ambiente de trabalho, Thayla abre um sorriso. “Felicidade total! Acordo de manhã com prazer de ir trabalhar, porque me sinto tão bem lá! E todas as pessoas que chegam iguais a mim, vou lá, acolho muito bem, pergunto qual é seu nome social. Eu as recebo como gostaria de ter sido recebida”.

“Tem outra vida possível pra gente”

Thayla gostaria que todas as trans tivessem “a oportunidade de sair da rua”, como ela, que foi garota de programa por seis anos e se orgulha de ter deixado aquela realidade para trás. “Hoje em dia, graças a Deus, não faço mais programa. Era horrível. Se deitar com quem você não quer, correr até risco de pegar doença, mas eu saí, graças a Deus, e consegui um emprego, de carteira assinada, e estou feliz. Muitas delas [trans] pensam que rua é a vida, como eu pensava. Não, não é vida. Respeito todos os que vendem o corpo, mas não é legal. Tem outra vida possível pra gente”.

Parada é ato cultural e de reconhecimento de identidade

“A Parada LGBT é importante, primeiro porque é um ato cultural, que dissemina valores. Por outro lado, é um ato não apenas de resistência à discussão atual dos governos municipal e estadual [sobre o ensino de gênero nas escolas], mas um ato de reconhecimento de identidade e, portanto, está ligado a direitos humanos”, diz o psicólogo Darío Adolfo Cordova, que atuou, de junho de 2011 a setembro de 2017 atendendo a população LGBT no programa Rio Sem Homofobia, da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos do Rio de Janeiro.

Ele defende, entretanto, que o evento “não pode ser uma ação isolada e necessita de respaldo de ações efetivas, tanto do governo municipal quanto do estadual”. O programa Rio Sem Homofobia cumpre o papel de respaldar o evento, que provoca essa discussão na sociedade civil, segundo Darío.

O preconceito mora ao lado

Próximo ao hotel Copacabana Palace, a poucos metros de onde aglomeravam-se os milhares de participantes da Parada LGBTI, na Avenida Atlântica, um pequeno grupo de evangélicos erguia quatro cartazes com dizeres homofóbicos. Em um deles, lia-se: “Como Deus soletra ‘Sexo Gay’?”, e um acróstico com a palavra AIDS, relacionando a homossexualidade não apenas à doença como a adjetivos altamente pejorativos, como “abominável”, “anormal”, “indecente”, “infernal”, “depravado” e “sodomia”.

Indagado sobre qual o objetivo de sua presença próximo ao evento, o porteiro Ivan Viana, de 42 anos, que segurava justamente o cartaz descrito acima, afirmou estar no local para “trazer a verdade que liberta, que cura e que salva”. Ele disse pertencer ao Projeto Missão do Brasil, da Igreja Missionária.

“Não estamos aqui para ofender”, disse o homem, a despeito de quão ofensivos eram os adjetivos contidos no cartaz. Leia a entrevista, na íntegra, abaixo:

Por que motivo exatamente vocês estão aqui hoje? Qual o seu objetivo com esses cartazes sobre o sexo gay?

Nós estamos querendo trazer aqui a verdade, a verdade que liberta, que cura e que salva. Estamos aqui para trazer essa verdade para as pessoas. O homossexual, pessoas que estão passando aqui. Estamos querendo trazer que Jesus Cristo é o caminho da verdade e da vida. Não estamos aqui para ofender, não estamos aqui contra eles, não. Estamos aqui para trazer a verdade, a essência da vida que Deus nos dá.

E que verdade é essa?

É o caminho de Deus, é a palavra de Deus, é o Criador com a criatura, que somos nós, que precisamos da verdade.

E por que trazer a “sua verdade” para a população LGBT? A população LGBT não pode estar no que você chama de “caminho de Deus”?

Olha só, querida, a palavra de Deus é a verdade e a vida, e quando nós praticamos algum ato pecaminoso contra a nossa natureza, nós nos colocamos o quê? Contra Deus. Então, infelizmente, essas pessoas estão contra Deus.

Mas por que elas estão contra Deus?

Porque elas fogem da natureza de Deus.

Mas a homossexualidade é parte da natureza.

Como assim?

A homossexualidade é um fato em várias espécies animais, como a ciência já mostrou.

Mas Deus não fez Adão e Ivo, fez Adão e Eva. Deus fez cachorro e a cachorra, a vaca e o boi. Deus fez as coisas certas. Aí as pessoas querem arrumar motivo pra dizer ‘a girafa transa com o mesmo sexo’. Os animais não conhecem o bem e o mal, mas Deus deu o entendimento à gente de conhecer a verdade, que é a palavra e a lei que ele colocou.

E aí vocês vieram…

Nós não viemos aqui para brigar, nós viemos para trazer as boas novas de salvação de Cristo, Jesus. Nós não somos contra o ser humano, somos contra o pecado.

E isso não pode soar como uma provocação?

Não, de maneira nenhuma. A palavra de Deus provoca? Não provoca. A palavra de Deus liberta o ser humano. É isso aí.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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