16/04/2024 - Edição 540

Poder

Bravata golpista de Bolsonaro é mimimi vazio de quem não quer salvar vidas

Publicado em 30/04/2021 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Pela enésima vez, Jair Bolsonaro deu uma declaração vazia de teor golpista, prometendo botar o Exército na rua para acabar com as medidas de isolamento social impostas por governadores e prefeitos. Medidas que, aliás, reduziram o ritmo de mortes por covid-19 uma vez que o presidente não quis fazer isso.

A ameaça não vai se concretizar, mas o mimimi presidencial reforça a facilidade com a qual a cúpula militar permite que ele trate as Forças Armadas como seus brinquedos. E como ele encara a Constituição Federal e o respeito à democracia com a mesma deferência com a qual enxerga o papel higiênico.

Criticando quarentenas, lockdowns e toques de recolher, Jair afirmou, em entrevista à TV A Crítica, no último dia 23, durante visita a Manaus (sim, a capital em que muitos sufocaram e morreram porque, quando pediram oxigênio hospitalar, ele mandou cloroquina):

"Se tivermos problemas, nós temos um plano de como entrar em campo. Eu tenho falado, eu falo 'o meu [Exército]', o pessoal fala 'não'… Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. O nosso Exército, as nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabelecer todo o artigo 5º da Constituição. E se eu decretar isso vai ser cumprido."

O trecho mostra uma necessidade de autoafirmação que revela uma fragilidade emocional preocupante para uma pessoa que é presidente da República. Mas não termina aí, porque, no fundo do poço, há sempre um alçapão:

"As nossas Forças Armadas podem ir para a rua um dia sim, dentro das quatro linhas da Constituição, para fazer cumprir o artigo 5º. O direito de ir e vir, acabar com essa covardia de toque de recolher, [garantir o] direito ao trabalho, liberdade religiosa e de culto; para cumprir tudo aquilo que está sendo descumprido por parte de alguns governadores e alguns poucos prefeitos, mas que atrapalha toda a sociedade. Um poder excessivo que, lamentavelmente, o Supremo Tribunal Federal delegou, então qualquer decreto, de qualquer governador, qualquer prefeito, leva transtorno à sociedade."

(É um pouco confuso porque está em bolsonarês, dialeto com apenas um falante no país. Ao pé da letra, sem o acréscimo de palavras para ajudar no entendimento, ele disse que as Forças Armadas iriam às ruas para acabar com essa covardia de direito ao trabalho. É tão factível com o pensamento bolsonarista, que nem parece uma fala confusa, mas sim um ato falho.)

Bolsonaro não vai fazer nada disso. Bravata. Para botar esse bloco na rua, teria que passar por cima do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e conseguir cooptar os membros das cúpulas das três forças – o que, com a popularidade e a moral enfraquecidas, não rola nem que a vaca tussa ou a rachadinha seja legalizada.

Quando começou o zunzunzum golpista na troca do comando das Forças Armadas e do Ministério da Defesa, escrevi que ele adoraria dar um golpe, mas o máximo que conseguiria, dada a conjuntura, era colocar alguém que produziria tuítes a seu favor para ajudar na sua narrativa.

De fato, o general Braga Netto, novo titular da Defesa, já deu declarações políticas que significam pressão indevida em outros poderes, como na posse do novo comandante do Exército no dia 20. É bizarro, mas não vai além disso.

Se na entrevista em Manaus, ele ainda tivesse ameaçado interferir nos Estados através da promoção de um motim entre as forças policiais, poderia soar mais factível, considerando a adesão de praças da PM ao bolsonarismo.

Pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em agosto passado, apontou que 41% dos praças das polícias militares participavam de grupos bolsonaristas nas redes e aplicativos de mensagens, 25% defendiam ideias radicais e 12% defendiam o fechamento do STF e do Congresso.

Mas envolvendo o Exército? Improvável.

Ressalte-se que, tirando municípios como Araraquara (SP), em que o lockdown foi implementado durante um período de tempo e levado a sério, reduzindo a taxa de ocupação hospitalar e o número de mortes, o país não tem adotado nada que realmente possa se chamar de bloqueio total.

O nível de isolamento social, medido pelo deslocamento de celulares, é baixo. Qualquer marmota que tire a cabeça para fora de seu buraco é capaz de ver que a obediência às restrições é parcial – muito por culpa da promoção de aglomerações e do ataque às restrições por parte do presidente. O que ajuda a explicar, aliás, a situação trágica em que estamos.

Nesse contexto, o que o Exército de Bolsonaro faria? Destituiria governadores e prefeitos? Prenderia fiscais das prefeituras, que são os responsáveis por monitorar o cumprimento dos decretos por parte do poder público? Bateria nas portas das pessoas e empresas dizendo: "ei, vem brincar do lado de fora, o vírus mata, mas o Jair precisa de você aqui para a economia acordar e ele ser reeleito?"

Se ele tivesse comprado vacinas em quantidade suficiente no ano passado e abraçado um isolamento duro, já estaríamos voltando à vida normal como outros países. Mas, daí, ele teria que abandonar o radicalismo, que alimenta seus seguidores, e dialogar com outros governantes. O que vai contra sua natureza.

Disse Bolsonaro também na entrevista: "Agora, eu não posso extrapolar. Isso que alguns querem, que extrapole. Estou junto com os 23 ministros, da Damares ao Braga Netto, praticamente conversado sobre isso daí: o que fazer se um caos generalizado se implantar no Brasil. Pela fome, pela maneira covarde que alguns querem impor essas medidas restritivas para o povo ficar dentro de casa. O caldo não entornou ano passado em função do auxílio emergencial".

Ele mesmo dá a deixa: a fome que está sendo sentida em muitos lugares do país é sua culpa, uma vez que suspendeu o auxílio emergencial em 31 de dezembro, recomeçando a pagar o benefício apenas em 6 de abril. Foram, pelo menos, 96 dias de vazio na panela e no estômago.

Esse atraso foi uma forma que ele encontrou para empurrar os trabalhadores pobres de volta às ruas. Afinal, pais e mães não ficarão em casa vendo seus filhos passarem fome. A outra forma é o valor do benefício. Se na primeira onda, ele começou com R$ 600/R$ 1200 por domicílio agora Bolsonaro reduziu a ridículos R$ 150, R$ 250 e R$ 375 por residência. Com o piso do auxílio, compra-se apenas 23% da cesta básica em São Paulo. Isso significa o quê? Mais fome.

Com a CPI da Pandemia, que deve investigar esse tipo de perversão que ajudou a erguer uma montanha de quase 400 mil mortos, prestes a começar, ele precisa fazer pressão para impor medo e terceirizar as responsabilidades mais uma vez. Imagine como deve ser constrangedor para ele aparecer na capa do jornal mais relevante do mundo, o The New York Times, como responsável por uma epidemia de fome que atingiu dezenas de milhões.

Declarações como essas já eram previstas. Quando Bolsonaro ataca, é sintoma de fragilidade, não de força.

O estranho será se os outros poderes ficarem com medinho por conta desse nível de bravata.

Análise

Como se sabe, Bolsonaro abdicou da prerrogativa de presidir a crise sanitária. Optou por exercer na pandemia não o papel de presidente, mas o de estorvo. Essa decisão criou dois mundos: o dele e o nosso.

No mundo dele, a pandemia era uma "gripezinha" que estava no "finzinho". E a segunda onda não passava de "conversinha". No nosso mundo, a realidade não deixa de existir porque Bolsonaro a ignora.

No mundo dele, as Forças Armadas irão às ruas se houver o "caos". No nosso mundo, os militares estão abraçados à Constituição e o caos é ultrapassado diariamente pela elevação da pilha humana prestes a bater a marca de 400 mil cadáveres.

No mundo dele, há um capitão expurgado do Exército por indisciplina brincando de Forças Armadas para animar seus seguidores nas redes sociais. No nosso mundo, há um Bolsonaro apavorado com uma CPI, que já não tem certeza se as pessoas o seguem ou perseguem.

No mundo dele, há no Planalto uma vítima de governadores e prefeitos que trancam as ruas em casa e passam a chave no comércio para derrubar a economia e o presidente da República. No nosso mundo, há estados e municípios compelidos pelo vírus a trocar medidas restritivas pela abertura de vagas nas UTIs.

No mundo dele, há um presidente que oferece ao universo exemplo de como lidar com a pandemia. No nosso mundo, há uma hedionda escassez de vacinas e uma criminosa sobra de cloroquina.

No mundo dele, há um contrato de escambo com o centrão. Prevê a troca do engavetamento do impeachment pela chave do cofre. No nosso mundo, há o desgoverno.

No mundo dele, há uma língua que fala dez vezes antes de encontrar um cérebro capaz de domá-la. No nosso mundo, há um país de saco cheio.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *