28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Procuradoria quer indenização e desculpas a índios por violações na ditadura

Publicado em 24/08/2017 12:00 -

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O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública na Justiça Federal do Amazonas contra a União e a Funai (Fundação Nacional do Índio) pela qual requer uma indenização de R$ 50 milhões e pedido oficial de desculpas aos índios vaimiri-atroari por danos sofridos pela etnia durante a ditadura militar (1964-1985).

O pedido de abertura da ação foi acolhido pela juíza da 3ª Vara Federal de Manaus (AM) Raffaela Cássia de Sousa na terça-feira (22). Ela ordenou a citação dos réus para apresentação de defesa.

Os procuradores da República também pedem a criação de um centro de memória para divulgar informações sobre "as violações aos direitos dos povos indígenas no país e no Amazonas" e a inclusão, no conteúdo programático das escolas do ensino médio e fundamental, de estudos sobre as violações dos direitos humanos dos indígenas durante a ditadura, "com destaque ao genocídio do povo vaimiri-atroari".

Em anexo ao relatório final divulgado em 2014, a CNV (Comissão Nacional da Verdade) calculou que 2.650 índios vaimiri-atroari tenham morrido em consequência das obras de abertura da rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR). A obra foi realizada pelo Exército de 1968 a 1977.

Na ação civil pública, os procuradores veem com cautela o número da CNV, pois há dúvidas sobre o real número de índios existentes na região antes do final da construção, mas consideram comprovado o fato de que "pelo menos centenas" de índios morreram em consequência da obra.

"[…] É possível compreender, sem sombra de dúvidas, e independentemente da metodologia empregada para os 'censos', uma atuação direcionada do Estado brasileiro para promover a extinção física do grupo em questão, ou ao menos assumir o risco de sua ocorrência, com a consequente morte de pelo menos centenas de indígenas", diz o texto da ação civil.

A ação foi ajuizada pelos procuradores Fernando Merloto Soave, Julio José Araujo Junior, Maria Rezende Capucci, Antônio do Passo Cabral, Edmundo Antônio Dias Netto Júnior e Marlon Alberto Weichert, os cinco últimos integrantes do Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar do Ministério Público Federal.

"Rajada"

A rodovia cortou ao meio o território vaimiri-atroari, que na época era uma etnia de pouco contato com os agentes do Estado brasileiro. Em 1917, a União havia "concedido" aos índios parte do território que habitavam.

Ao longo de todo o século passado, os índios reagiram fortemente à entrada de estranhos nos seus domínios. Essa reação, segundo o estudo do Ministério Público Federal, tem relação com massacres sofridos pelos indígenas ao longo de décadas. Há relatos de 300 indígenas mortos por uma expedição em 1856 e outros 283 durante um conflito armado com chamados "civilizados" em 1911, além de malocas incendiadas e indígenas tornados prisioneiros.

Após o golpe de 1964, e dentro de uma estratégia política de ocupação da Amazônica, o governo militar decidiu construir a rodovia que ligaria Manaus à capital do então território federal de Roraima. Os índios continuaram resistindo à presença de "civilizados". Dizimaram, em 1968, uma expedição autorizada pela presidência da Funai e comandada pelo padre italiano Giovanni (no Brasil, João) Calleri, e depois mataram operários da obra de construção da firma e funcionários da Funai.

No final de 1974, os índios mataram o sertanista Gilberto Pinto Figueiredo e outros membros da equipe da Funai que trabalhavam em paralelo às obras da rodovia para tentar "aldear" os índios por ordens e orientação de militares que comandavam o órgão indigenista.

A partir de 1973, quando as obras atingiram um ponto importante, com os preparativos para a travessia de um rio importante na região, segundo a ação movida pelo Ministério Público Federal, o conflito entre índios e Exército se acentuou e tropas militares do BIS (Batalhão de Infantaria de Selva) foram deslocadas para a região.

Em novembro de 1974, o responsável pelas obras, o general Gentil Nogueira Paes, então comandante do 2º GEC (Grupamento de Engenharia e Construção), subordinado ao BEC (Batalhão de Engenharia e Construção), distribuiu um memorando autorizando as tropas a "realizar pequenas demonstrações de força, para mostrar os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso da dinamite".

Depoimentos

Os procuradores da República colheram depoimentos de operários e indígenas que confirmaram essas demonstrações de força. O operário Raimundo Pereira Silva disse ao Comitê da Verdade do Amazonas que os índios "eram levados em uma caçamba para o acampamento do BEC, faziam eles descerem e davam 600 tiros. Os índios ficavam tremendo".

Em depoimento aos procuradores da República, Manoel Paulino, índio da etnia karapanã contratada pela Funai para atuar na obra, disse ter visto indígenas mortos. "Eu vi corpos dos índios trazidos em uma caçamba e serem jogados no buraco da terraplanagem. Vi cinco caçambas com índios."

Os procuradores mencionam também depoimentos e desenhos realizados pelos vaimiri-atroari a pedido do indigenista e co-fundador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) Egydio Schwade, de Presidente Figueiredo (AM). Os índios mencionaram fumaças e substâncias despejadas por aviões que causaram mortes.

"Foram realizadas agressões aos índios tanto por via aérea quanto por via terrestre. Os elementos colhidos indicam que os ataques aéreos já vinham ocorrendo mesmo antes de 1975, como demonstram os depoimentos dos índios e de funcionários, bem como a menção a bombardeio que teria ocorrido em data anterior aos ataques de outubro e novembro de 1975", afirmaram os procuradores na ação civil pública.

O MPF cita também um relatório de 1975 assinado pelo sertanista da Funai Apoena Meireles, no qual descreveu ter tomado conhecimento de indígenas mortos na região: "Em meio aos muitos 'tome cuidado', parti para a área e comecei a tomar conhecimento da verdade sobre os fatos que ocorreram ultimamente. Pude então verificar que infelizmente nós só falamos dos nossos mortos, os índios que tombaram no silêncio da mata foram sutilmente enterrados e esquecidos no espaço e no tempo".

Os procuradores da República ressaltaram que ao longo dos anos o Estado brasileiro não assumiu ter colaborado para a morte ou matado índios vaimiri-atroari durante a construção da rodovia.

"Enquanto se materializava a violência como instrumento do poder estatal durante aquele período [militar], nenhuma morte indígena nem sequer chegou a ser anunciada ou registrada oficialmente. E assim se mantém. Tais fatos foram e continuam sendo silenciados ou esquecidos, e nenhuma violência aos vaimiri-atroari foi oficialmente contabilizada."

Outro Lado

O Ccomsex (Centro de Comunicação Social do Exército) informou nesta quarta-feira (23) que "até o presente momento o Exército Brasileiro não recebeu comunicado do Ministério Público Federal". A Funai, procurada, não havia se manifestado até o fechamento deste texto.

Nos autos da ação, os procuradores anexaram uma carta datilografada e encaminhada em 1983 ao CMA (Comando Militar da Amazônia) pelo general Gentil Nogueira Paes, já falecido, que contestava uma notícia publicada na epoca no jornal "A Crítica", de Manaus. O papel foi entregue ao Ministério Público pelo CMA.

Paes comandou o 2º GEC de 1974 a 1978. Segundo o general, "o trato com os índios foi, sem dúvida, um dos mais delicados, pois sabia que estava pondo em jogo a vida de muitos homens, brancos e índios, numa luta sem inimigos, onde, aos meus, era absolutamente vedado ferir ou molestar de qualquer maneira esses nossos irmãos".

O general contestou, na carta, o número de índios existentes antes da rodovia. "Nunca a Funai ou quem quer que seja soube o número de pessoas existentes nas duas tribos. Quando assumi o comando do 2º GEC, em 1974, aquela Fundação estimava aquela população entre 1.000 e 1.500 pessoas".

Na carta ao CMA, Paes disse que as "demonstrações de força" nunca foram feitas, "por absoluta falta de oportunidade". Paes relatou que o Exército redobrou "o sistema de segurança nos acampamentos, nos canteiros de trabalho e nos deslocamentos dentro da reserva, com a ideia dominante de, ostensivamente, mostrar nossa força com o fim exclusivo de desencorajá-los a novos ataques e nos mantermos sempre atentos aos contatos amistosos".

O general disse ter a impressão, "e os fatos o confirmam, de que essa estratégia foi bem sucedida", pois "inicialmente eles desapareceram da mata por um longo período". Depois passaram a manter contatos com os militares, segundo o general, até o fim da obra. "Realmente a estrada foi construída sem a morte violenta de um só índio e eu tenho imenso orgulho disso", afirmou o militar.


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